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Pesquisador francês alerta sobre o aumento de doenças infecciosas: “A causa não é o morcego, mas a destruição de seu habitat”

Entrevista com Serge Morand*, por Manon Paulic. Tradução de Bóris Vargaftig
Wikipedia

COVID-19 e biodiversidade. “Enquanto a biodiversidade se extingue progressivamente, as doenças infecciosas e parasitárias continuam a aumentar”


As doenças infecciosas realmente aumentam no mundo?

Serge Morand: Certamente, observamos um crescimento constante do número de epidemias de moléstias infecciosas desde os anos 1920. Após a segunda guerra mundial, um conjunto de vírus, bactérias e parasitas emergiu, notadamente o tifo e as rickettsioses, doenças infecciosas transmitidas ao homem por artrópodes (piolhos, pulgas, carrapatos). Mais recentemente, foram detectados mais novos agentes patogênicos provindos da fauna selvagem.

Como explicar este fenômeno?

Esta aproximação entre animais domésticos e fauna selvagem é condição propícia para a emergência das doenças infecciosas.

Serge Morand: Minha hipótese de trabalho consiste em afirmar que a multiplicação das epidemias resulta das modificações dos contatos entre a fauna selvagem e o homem. Devido à intensificação da produção animal e como consequência, o aumento do número dos animais de criação e da superfície das terras agrícolas para nutri-los, a fauna selvagem vê seu território se reduzir. Obrigada a se locomover, ela tem mais contatos com os animais domésticos. Esta aproximação entre animais domésticos e fauna selvagem é condição propícia para a emergência das doenças infecciosas. Um micróbio ou uma bactéria (1) pode viver num hospedeiro durante milhares de anos sem provocar problema algum mas, ao mudar de hospedeiro, tornar-se patogênico.

Tomemos como exemplo o vírus Nipah, que surgiu na Malásia no início dos anos 1990. A partir da criação de porcos, o vírus se espalhou até os matadouros de Singapura. A origem do vírus era um morcego. Ora, nessa época, em Bornéo e Sumatra, as florestas – território dos morcegos – estavam sendo convertidas em culturas de palmeiras oleaginosas… Os morcegos se refugiaram em fazendas semi-industriais e se instalaram em árvores frutíferas debaixo das quais os porcos estavam gripados. Ao defecarem sobre os porcos, transmitiram-lhes o vírus e assim nasceu a epidemia.

A transmissão do coronavírus repousa no mesmo mecanismo?

Serge Morand: Sim, o primeiro coronavírus, que apareceu por volta de 2002, provinha também de um morcego. O vírus não contaminou diretamente o homem, pois passou por civetas. Esses pequenos mamíferos continuam aliás a serem vendidos no mercado asiático como comida. Porém o que é ainda mais inquietante, é a demanda crescente na Indonésia, no Vietnã e agora na Tailândia pelo “café civette”. As “coivettes’ são alimentadas por cerejas de café – que aliás são nocivas para seus estômagos – os grãos de café são recuperados em suas dejecções, antes de serem torrados. Esse café, muito popular, é relativamente caro. Esses animais, criados em fazendas que não se preocupam com as normas sanitárias, se relacionam com outros animais selvagens. Estamos assim criando novas condições ecológicas improváveis e propícias para as epidemias.

O que sabemos a respeito da nova versão do coronavírus, o COVID-19?

Serge Morand: Estamos face a um novo coronavírus muito próximo daquele que causou o SARS em 2003. Estamos quase certos que ele também provém de um morcego. Meus colegas chineses estão convencidos que a transmissão ao homem também envolve um intermediário. Primeiro falaram de um “pangolin” (foto), mas parece ser outro. Desde o início da crise, os chineses testaram um número grande de animais selvagens – morcegos, civettes, pangolins, cães, roedores – sem sucesso. Assim, não se sabe nada, por enquanto, a respeito do modo de transmissão. É preciso saber que, de maneira geral, os riscos de infecção são muito fracos. Para que ela ocorra, é preciso que os contatos sejam reais e constantes, como no caso do vírus Nipah na Malásia. O mercado de Wuhan poderia ser o lugar onde o vírus foi transmitido do animal ao homem – talvez um vendedor, mas pode também ter sido trazido ao mercado por um lavrador portador do vírus. Será difícil de determinar, com o mercado tendo sido limpado.

Essas epidemias são transmitidas do animal ao homem. Porque você defende a ideia que a biodiversidade nos protege das doenças infecciosas?

O problema portanto não é a biodiversidade, mas o fato de perturbá-la. A causa não é o morcego, mas a destruição de seu habitat.

Serge Morand: Esta ideia é de fato contra-intuitiva, pois a maioria dos locais de emergência das doenças infecciosas e parasitárias se localizam nos trópicos, onde a biodiversidade é maior. Como existe uma relação reconhecida entre o número de pássaros e de mamíferos num país e o número de doenças parasitárias e infecciosas que são identificadas, é possível imaginar que para lutar contra as epidemias, a diversidade biológica não seria relevante. Entretanto, enquanto a biodiversidade se vai lentamente apagando, as doenças infecciosas e parasitárias continuam a aumentar. Descobriu-se, na realidade, que o número de epidemias de zoonoses (doenças ligadas aos animais) se correlaciona perfeitamente com o número de animais em vias de desaparecimento num determinado país. O problema portanto não é a biodiversidade, mas o fato de perturbá-la. Retomemos o caso do vírus Nepah: a causa não é o morcego, mas a destruição de seu habitat. E se formos adiante, a destruição das florestas é a consequência da forte demanda pelo mercado chinês de óleo de palma (dendê) e de suínos. O responsável é portanto a globalização das trocas.

A desmondialização seria portanto a solução para lutar contra essas epidemias?

Serge Morand: Aos meus olhos, é a única! Quando observamos as curvas das doenças infecciosas no homem e nos animais – em constante aumento nos últimos 60 anos – vemos que baixam cada vez que explode uma crise econômica (2). Se quisermos evitar as epidemias, será preciso desglobalizar. O problema da maioria das doenças infecciosas é a dispersão. É preciso terminar com estas trocas e reabilitar a economia circular. Ao favorecer novamente a agricultura local, ao relocalizar nossas indústrias em um melhor meio social e sanitário, detendo o transporte de mercadorias, ganharemos não somente no nível sanitário, mas também do ponto de vista econômico e de bem estar.

Qual sua opinião a respeito da gestão da crise até o presente momento?

Serge Morand: Cada vez que estoura uma crise, responde-se infelizmente pela biossegurança: se “bunkeriza” (3) as criações e são fabricados animais geneticamente idênticos – a melhor forma de fabricar agentes patogênicos. Nunca se coloca em causa aquilo que constitui a causa primária das crises: a criação intensa. Após o vírus Nipah, Singapura decidiu controlar as criações alugando ilhas indonésias. Estas são hoje inteiramente dedicadas à criação industrial, ninguém mais as habita. É assim que se preparam as crises de amanhã. Constata-se o mesmo desvio nos meios da pesquisa. A respeito das epidemias, somos muito poucos a nos interessarmos pelo meio ambiente. Os pesquisadores preferem listar e caracterizar os agentes, pensando que poderão prever as próximas epidemias e assim impedir sua progressão. Ora, isto é impossível, pois os mecanismos evoluem constantemente.

Você está preocupado com o futuro?

A atual crise sanitária constitui um importante alerta que deverá ser analisado quando a urgência tiver desaparecido. Devemos evitar uma outra “peste”.

Serge Morand: No que diz respeito ao COVID-19, ele não se propaga tão facilmente, não é demasiado virulento e é sobretudo perigoso para os idosos e os mais fragilizados. Se as medidas preconizadas, notadamente aquelas de distanciamento social, são bem entendidas, o vírus será controlado. O risco, se o controle for demasiado lento comparado à epidemia, é que o vírus torne-se endêmico no homem, e daí a importância de desenvolver uma vacina.

Isto não deverá ser demasiado complicado, se o vírus responsável pelo COVID-19 se comportar como os outros coronavírus que infectam os animais de criação que de fato podem ser controlados com vacinas eficientes. Não temos entretanto experiência com os SARS-CoV (o agente infeccioso que originou a epidemia de SRAS é o SARS-CoV, e o responsável do COVID-19 é o SARS-Cov-2) pois o vírus SRAS havia desaparecido devido a um controle eficaz que limitou sua expansão. Mas terá porventura sido unicamente a sorte? A atual crise sanitária constitui um importante alerta que deverá ser analisado quando a urgência tiver desaparecido. Devemos evitar uma outra “peste”. Contrariamente aos colapsólogos, penso serem capazes de reagir contanto que ataquemos as causas da emergência de doenças infecciosas e de suas disseminações globais

 

* Serge Morand é diretor de pesquisa do CIRAD (Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronôma para o Desenvolvimento), e pesquisa o vínculo entre biodiversidade e saúde. É autor do livro La Prochaine Peste, une histoire globale des maladies infectieuses (Fayard, 2016).
Entrevista publicada em 18 de março de 2020, no semanário “Le1”, número 288).

 

NOTAS

1 – NT: bactérias são micróbios.

2 – NT: estamos em crise ao menos desde 2008, e quantas epidemias não ocorreram? Será necessário provocar crises para ter saúde?

3 –  NT: referência a “bunker” edifício militar muito de alta segurança.