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BRASIL

O remédio hoje para o covid 19: proteção social estatal

Josias Porto*, de Salvador (BA)
Marco Santos / Ag. Pará

Enquanto a ciência não consegue desenvolver meios para controlar a pandemia (e isso ainda pode demorar muito) não há outra saída para essa calamidade de proporções nunca vistas senão uma forte intervenção estatal para garantir que todos possam se proteger e ao mesmo tempo não morrer de fome. Isso é quase óbvio, mas contradiz frontalmente a lógica neoliberal.

O remédio nesse momento para combater as consequências sociais dessa catástrofe é, inquestionavelmente, fortalecer exponencialmente a proteção social do Estado em seu conjunto. Só há como reduzir o contágio com interrupção das atividades econômicas (com exceção das essenciais) e pra isso os trabalhadores (formais, informais, autônomos, desempregados etc) precisam estar assegurados financeiramente. Só há como reduzir as mortes com uma enorme ampliação do atendimento na saúde pública, e pra isso é preciso destinar muito mais recursos e estrutura pra o sistema de saúde. 

A seguridade social, parte importante dessa proteção social estatal, se estrutura em nosso país em três dimensões: saúde pública, assistência social e previdência. Ela é um resultado histórico e social de anos e anos de lutas dos trabalhadores. 

Grosso modo, é possível afirmar que ela tem suas raízes nas iniciativas de solidariedade das primeiras experiências de organização dos trabalhadores ainda na fase do liberalismo inicial, quando estes não tinham praticamente direito algum. Com o fortalecimento do movimento operário e a necessidade das classes dominantes em dar alguma resposta para conter a ameaça social destas lutas, essas iniciativas foram sendo incorporadas e institucionalizadas como uma dimensão do Estado. 

O neoliberalismo vem gradativamente destruindo toda essa estrutura da Seguridade Social (que teve seu modelo mais bem desenvolvido no chamado Estado do Bem Estar Social no países mais centrais do capitalismo) nos fazendo retroceder e nos aproximar, do ponto de vista dos direitos, a algo próximo do selvagem capitalismo da fase da Revolução Industrial. Num momento catastrófico como este se desnuda a insustentabilidade do neoliberalismo, e do próprio capitalismo, mas não de forma tão evidente. 

Muitos de nós assistimos, pasmos, o pronunciamento de Bolsonaro chamando o retorno da normalidade das atividades. A saída apresentada por ele pra profunda crise social que se inicia seria os trabalhadores enfrentarem de peito aberto a disseminação do vírus e as mortes para não “quebrar o país”. 

Essa estratégia tem tudo a ver com a linha ultra neoliberal que sustenta a politica econômica do projeto bolsonarista. Nas eleições ele já defendia que os trabalhadores precisavam escolher entre ter direitos e empregos. Agora precisariam escolher entre não correr o risco de se contaminar (e morrer) ou cair na miséria. É a lógica neoliberal na sua versão mais radicalizada: Estado mínimo, cada um por si, salvem-se os mais fortes (os “atletas”).

Infelizmente a linha absurda de Bolsonaro pode ter eco em uma parte da população. O retrocesso na compreensão social e ofensiva do individualismo neoliberal das últimas décadas segue muito forte na cabeça das pessoas. É muito difícil visualizar a possibilidade de uma forte proteção social estatal. Para aqueles que estão perdendo suas fontes de renda e seus empregos pode parecer, mais cedo ou mais tarde, que a única saída seja: tapar os olhos para as mortes e os riscos e seguir a vida normalmente (rezando para não ser você ou um familiar a vítima desse coveiro invisível).

Mas em muitos países o receio de uma convulsão incontrolável com o impacto de uma catástrofe de imensas dimensões tem levado políticos liberais a contraditoriamente assumir, ao menos emergencialmente e muito limitadamente, planos de proteção social. A Inglaterra, por exemplo, ensaiou adotar a estratégia da mitigação (deixar o vírus se espalhar para naturalmente os anticorpos surgirem na população). Voltou atrás diante do alerta dos cientistas para a dimensão das previsões das mortes (que poderia chegar a 250 mil). Não voltou atrás por “humanidade”, voltou por receio dos impactos disso para os que estão no poder. O governo de Milão, na Itália, região de maior contágio e mortes proporcionais hoje no mundo, também precisou reverter e inclusive se desculpar pela linha #milãonãopara no início da difusão do vírus por lá, o que incidiu decisivamente na dimensão hoje do problema nessa região.

Contudo, na contra-mão desse cenário, os EUA sinalizam uma mudança de direção. Trump também já fala na necessidade de “voltar a normalidade”. É nessa linha, numa versão mais tosca, que se inspira nosso ogro capitão. Os EUA o fazem, contudo, injetando muito dinheiro na economia e também um valor bem menor, mas bastante significativo, para uma proteção social imediata a população. A versão brasileira da guinada norte-americana (lá é uma potencia imperialista) tenta ser mais rápida e com um medidas de proteção social bem menores. Mas a contradição é que ainda assim elas precisaram ser implementadas. A aprovação da renda mínima emergencial para autônomos pelo Congresso e dos outros programas sociais emergenciais, por mais que ainda muito insuficientes, expressam uma contradição do neoliberalismo diante da crise.

Além disso, a indignação com Bolsonaro, os panelaços e as próprias divisões entre a classe dominante e os seus representantes na esfera da política expressam que a saída para a crise ainda está em disputa. Nessa disputa está em jogo quantas vidas vamos salvar hoje (e nos próximos meses) e ainda quais as conclusões a população vai tirar dessa dramática experiência: a saída diante das crises é individual ou coletiva? É mais mercado e competição ou mais Estado social, proteção e direitos? 

É preciso acompanhar as movimentações na classe dominante. Parte importante da burguesia estadunidense e também da burguesia subserviente brasileira já sinaliza certo apoio a linha da “normalização” pra evitar o colapso econômico. Os militares também até então não demonstram se opor a linha de Bolsonaro. É possível que lancem mão de um endurecimento do regime e da repressão militar para lidar com a possível convulsão social, se adotarem a estratégia da “normalização” das atividades. Mas isso ainda não é tão certo.

O momento exige unidade pra levantar a bandeira de mais SUS, mais SUAS, mais programas de renda emergencial, medidas de proteção de emprego e do salário para garantia da manutenção da quarentena. Isolamento social com proteção estatal. O desfecho desse processo ainda não está dado. É preciso seguir a disputa da consciência das pessoas, a única arma que temos.

 

* Josias Porto é assistente social e professor substituto no curso de Serviço Social na UFBA.

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