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Coronavírus: ganância e irresponsabilidade na produção da tragédia

Rovena Rosa/Agência Brasil

Rua 25 de Março, em São Paulo, durante a quarentena.

Gilberto Calil

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui.

Há exatos 16 dias, a 11 de março, a Organização Mundial da Saúde declarou pandemia mundial decorrente do avanço descontrolado do novo coronavírus. Naquele dia, registravam-se 126.214 casos e 4.628 mortos. Agora estes números crescem minuto a minuto e às 14h do dia 27/03 são 575.967 casos (aumento de 346%) e 26.369 mortes (aumento de 470%), sendo que só na Itália nas últimas 24 horas foram mais 969 mortes).

Temos diante de nós uma tragédia de enormes dimensões, e que, ainda tende a crescer muito mais. Como é possível explicar isto, considerando que desde janeiro o mundo acompanhava a luta da China contra o novo vírus? Uma das razões, paradoxalmente é o êxito do governo chinês que, depois de uma série de erros nos primeiros dias, conseguiu impor medidas muito rigorosas, paralisou completamente a atividade econômica e conseguiu controlar o vírus. Os 3.000 mortos, em um país gigantesco, fizeram com que muitos acreditassem que a escala atingida pelo novo vírus não iria muito além disto. Até o final de fevereiro, mesmo com a expansão para diversos outros países, a curva evolutiva seguia em um ritmo aparentemente controlado. Foi então que se multiplicaram iniciativas e campanhas que modificaram completamente o cenário e impulsionaram uma nova dimensão à tragédia: interesses capitalistas construíram discursos sustentando que os prejuízos econômicos seriam maiores caso fossem tomadas medidas similares às impostas pelo governo chinês, e que era possível enfrentar a pandemia seguindo estratégias distintas. As duas estratégias propostas favoreciam a expansão da pandemia, em ritmos distintos. A primeira foi a da mitigação, uma tentativa de reduzir o crescimento dos casos parando apenas algumas atividades, com as aulas, mas mantendo no essencial as atividades econômicas. A segunda, ainda mais trágica, conhecida pela bizarra denominação de “imunização do rebanho”, propunha que se imunizasse rapidamente. A forma de chegar a isto era simplesmente se abster de tomar medidas que diminuíssem o ritmo de propagação do coronavírus. Desta forma, em curto prazo a maior parte da população teria sido infectada e estaria assim imunizada. O primeiro-ministro britânico Boris Johnson foi o principal propagador desta estratégia até dia 16 de março, quando voltou atrás e pediu desculpas, pressionado pela informação de que sua política levaria à morte de 500.000 britânicos.

Milano no si ferma

O marco mais importante – e extraordinariamente trágico – da produção capitalista do desastre foi a campanha lançada no dia 26 de fevereiro, denominada Milano no si ferma (Milão não para), que sustentava que o prejuízo econômico decorrente da paralisação das fábricas e do comércio seria maior do que aquele representado pelas mortes produzidas pela expansão do vírus. A campanha, impulsionada pelas associações empresariais, rapidamente impulsionou a retomada das atividades econômicas rotineiras da população e foi encampada pela prefeitura da cidade, que revogou as medidas de isolamento social. Um dos argumentos mais utilizados era que seria necessário manter a normalidade para que o fluxo de turistas não se interrompesse – o que implicou na multiplicação dos focos pelo mundo todo. A região da Lombardia – da qual Milão é a capital e principal cidade – hoje está arrasada e é evidente que mesmo em termos estritamente econômicos o prejuízo será muitíssimo maior do que se tivesse observado por algumas semanas normas rigorosas de isolamento. Mas, evidentemente, não há comparação eticamente aceitável e o grande prejuízo é humano. No dia de lançamento da sórdida campanha, a Itália registrava 26 mortos. Apenas 27 dias depois, a Itália contabiliza 86.498 casos (dos quais 5.909 nas últimas 24 horas) e 9.134 mortes (das quais 919 das últimas 24 horas). Apenas na Lombardia, são mais de 37.000 casos e de 5.400 mortes. Infelizmente, os interesses capitalistas não recuam e medidas contraditórias como a redução dos transportes coletivos sem paralisação da produção levam à absurda superlotação dos transportes públicos, como se vê em vídeo do metrô de Milão de ontem.

O Brasil não para

O quadro enfrentado hoje no Brasil é gravíssimo. Oito dias depois da primeira morte decorrente do coronavírus, o Brasil contabiliza 77 mortos*, com tendência rapidamente ascendente, e dezenas de outros em investigação. E as perspectivas são de piora, já que mesmo as limitadas medidas que vinham sendo tomadas estão sendo confrontadas pela política genocida de Bolsonaro. Os dados disponíveis são muito insuficientes, pois em relação ao número de casos há uma enorme subnotificação, intencionalmente produzida, e mesmo em relação ao número de mortos existem muitos indícios de que o número real seja muito superior, considerando que há diversos óbitos ainda em investigação e outros aos quais foram sumariamente atribuídos a outras causas, sem testagem. Mas mesmo considerando-se apenas os dados oficiais, temos um ritmo de expansão que já é superior ao da Itália, e inclusive ao dos Estados Unidos, que hoje está no epicentro mundial da pandemia.

Evolução de óbitos a partir da primeira morte


Fonte: https://www.worldometers.info/coronavirus/country/   

  •  O número de casosno Brasil atualizado às 17h40 é de 3417 casos, com 92 mortos

Ou seja, antes mesmo do criminoso pronunciamento de Bolsonaro em rede nacional, da campanha de disseminação de fake news nas redes sociais e do lançamento da ainda mais criminosa campanha publicitária O Brasil não pode parar, já estávamos em uma expansão em ritmo superior ao da Itália e dos Estados Unidos.

Se considerarmos o número de mortos já confirmados em relação à população da Lombardia (5.400 para uma população de 10 milhões habitantes, portanto 540 mortos por milhão), isto significaria no Brasil mais de 108.000 mortos. Não é possível saber se chegaremos a uma tragédia destas dimensões e claro que se pode objetar que é indevido aplicar o índice de uma região para um país inteiro. Mas ao mesmo tempo, diferentemente da Itália, temos já desde o início da pandemia diversos focos regionais, o que coloca uma perspectiva de rápido agravamento da situação e iminente colapso do sistema de atendimento.

O mais grave, certamente é que no momento mais decisivo do enfrentamento à pandemia, quando todos os esforços são fundamentais para o achatamento da curva e diminuição do ritmo de crescimento, enfrentamos a sabotagem explícita e sistemática, pensada e disseminada pelo gabinete do ódio diretamente ligado ao presidente da República. Trata-se de uma ação criminosa e que deixa o cenário muito mais incerto. A campanha publicitária lançada pelo governo é um plágio da campanha milanesa, omitindo evidentemente sua inspiração e os resultados que lá produziu. A promessa de uma cura milagrosa, em um ato de verdadeiro charlatanismo presidencial, difunde uma falsa sensação de segurança. Mais ainda, nos deparamos hoje com as caravanas da morte, carreatas impulsionadas pelo empresariado.

De fato, frente a esta catastrófica perspectiva, o Brasil não pode parar. A mais essencial das atividades, que não pode parar em hipótese alguma, é o isolamento social. O Brasil não pode parar de tomar cuidados, não pode parar de construir condições que possibilitem a continuidade do isolamento social. Mas, sim, o Brasil precisa parar Bolsonaro!

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