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BRASIL

O extermínio como política de governo

Morena Gomes Marques
Marcello Casal JrAgência Brasil

Pessoa com máscara em aeroporto de Brasília

Enganou-se quem acreditou que o ministro Luís Henrique Mandetta fosse uma figura “sensata” frente ao atual cenário epidêmico. Ainda que a sua atuação inicial tenha soado como “plausível”, já que temos por objeto de comparação as caricaturas neofascistas dos ministros da economia (Paulo Guedes) e da educação (Abraham Weintraub), o que vislumbramos nos últimos dias é a crescente adequação da política de enfrentamento ao COVID-19 ao irracionalismo bolsonarista. Esta mudança de tom é verificável quando, em menos de uma semana, Mandetta altera o seu discurso de fomento às medidas de isolamento em regiões com transmissão sustentada ou comunitária (em clara sintonia com as ações dos governos estaduais do Rio e São Paulo) para o drástico e sintético veredito: “esse travamento do país é péssimo para área da saúde”(1)

Nas atuais palavras do ministro “é muito fácil falar ‘fecha tudo’, não deixe ninguém sair, quando as pessoas têm ainda muita informalidade, pouco recurso, precisa ser criado plano de alternativa econômica. […] Eu preciso muito da equipe do ministro Paulo Guedes”. Sob esta lógica, o plano em voga não tem nada de alternativo, visa nada mais do que manter intocável a agenda econômica de saque ao fundo público, baseada no tripé “reformas”, congelamento dos recursos sociais (EC 95) e o privilégio aos grandes rentistas. A exemplo, para combater os efeitos negativos da pandemia sobre o capital financeiro, o Banco Central anunciou a disponibilidade em liberar até 1,2 trilhão de reais (16,7% do PIB) aos bancos, de modo a “manter a liquidez do sistema”, ao mesmo tempo em que o governo promove o desligamento de 158 mil beneficiários do Bolsa Família.

Logo, a política sanitária que então se apresenta é a da mitigação. Segundo o virologista Átila Iamarino (2020), ao contrário da supressão (o isolamento residencial, a não circulação de pessoas e a manutenção apenas das atividades essenciais), na mitigação o parar parcialmente (o isolamento apenas dos infectados ou grupos de riscos) conduz do que poderiam ser milhares de óbitos com a supressão para 1 milhão de mortos até o fim de agosto. O Brasil cresce hoje em ritmo mais acelerado do que a Itália e o “colapso” do Sistema de Saúde está previsto pelo próprio Mandetta para o final de abril. 

Mas, como tornar a barbárie algo aceitável? São duas as apostas do governo para contenção social: a subnotificação crônica e o desprezo tipicamente fascista por aqueles considerados “grupos de risco”. Os dados que hoje se apresentam são deficitários, uma vez que o Ministério da Saúde adotou por critério de medição apenas os casos que dão entrada em unidades de saúde com sintomas de COVID-19 e diagnosticados como “síndrome respiratória aguda grave”, negligenciando a existência dos demais infectados e recém-infectados. Logo, a notificação existente expressa somente as demandas mais graves por intervenção médica e hospitalar, com a consequente sobrecarga de internações e leitos em UTI. Soma-se a isso os casos suspeitos de coronavírus registrados como “gripe“, cujo exemplo mais alarmante foi o denunciado na comunidade Cidade de Deus/RJ. Dentre as 40 pessoas que relataram diagnósticos equivocados,

Um dos casos relatados aos profissionais da UPA foi o de uma catadora de lixo, que chegou a ser internada em estado grave às 12h36 de quinta-feira, com falta de ar e taquicardia. Porém, o caso foi registrado no sistema da unidade como síndrome gripal. Após uma melhora no quadro clínico, ela foi liberada. Entretanto, segundo os médicos ouvidos pelo UOL, o nome dela foi retirado do sistema da UPA, como se ela nunca tivesse sido atendida na unidade.

No que diz respeito aos considerados “grupos de risco” – idosos, pessoas com morbidade prévia e pobres, majoritariamente negros, cujas condições miseráveis de vida são um fato comprometedor à sobrevida – nos reportamos, em geral, a um segmento sobrante em face das necessidades médias de acumulação do capital. E aqui há um fato curioso: composto por uma maioria esmagadora de trabalhadores, muitos destes são hoje os principais demandantes das políticas de proteção social, em especial, da previdência (aposentadorias e pensões) e da assistência social. Ou seja, um percentual previamente já incômodo à política econômica e alvo dos mais recentes ataques, como a contrarreforma da Previdência, as tentativas de restrição no acesso ao Benefício de Prestação Continuada (o BPC) e os cortes no Programa Bolsa Família. Isto posto, o desprezo de Bolsonaro frente as previsões de alta mortalidade possui uma natureza econômica: trata-se de indivíduos descartáveis, sobrantes e vistos como um “mal menor”.

A criminalização da quarentena e a opção pela “normalização da vida econômica” tornam ‘Bolsonaro & Companhia’ (com destaque à Mandetta e Paulo Guedes) em agentes de um assassinato em massa. Que fique claro: estamos frente a um extermínio anunciado. Contudo, esta escolha não é um consenso dentre os extratos dominantes. As crescentes desavenças da cúpula do governo com a liderança do Congresso, os governadores, ou mesmo a recente (e espantosa) fala de Meirelles de que “primeiro tem que preservar a vida, depois a economia”, tornam pautas populares em prol de uma renda mínima, a taxação das grandes fortunas, a revogação da Emenda Constitucional nº 95, e a defesa do SUS (público, universal e estatal) em temas emergenciais postos à público na ordem do dia. Com exceção de Bolsonaro, são poucos aqueles dispostos a assumir ao mundo o protagonismo de um extermínio. Deste modo, o #foraBolsonaro apenas pode se constituir vitorioso se, em simultâneo, mobilizar a derrubada de sua política econômica.

NOTAS

1 – Vale recordar que em reunião com os chefes dos poderes Legislativo e Judiciário, um dia após as manifestações de 15/03, o ministro atuou em favor da flexibilização da Lei de licitações. Em suas palavras, “a legislação seria um estorvo incompatível com a necessidade de adquirir rapidamente materiais e equipamentos para combater o coronavírus”. O resultado de tal feito foi a aquisição de insumos hospitalares até 67% mais caros, com o favorecimento em contrato milionário de uma empresa bolsonarista. Cf: <https://noticias.uol.com.br/colunas/josias-de-souza/2020/03/19/mandettaajusta-discurso-a-pregacao-de-bolsonaro.htm?cmpid=copiaecola>; e <https://theintercept.com/2020/03/22/mandetta-mascaras-bolsonarista-coronavirus/>.

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