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MUNDO

O desastre econômico e o COVID 19: a luta de classes pede passagem

Flavio Miranda*, do Rio de Janeiro (RJ)

Protesto em Nova York, durante o movimento Ocuppy

“Come ananás, mastiga perdiz.
Teu dia está prestes, burguês”.
(Maiakóvski)

 

Quem, nesses dias de confinamento, não se deparou com a notícia de que um vírus derrubou a economia mundial? Aparentemente, tudo corria bem até que, como um raio vindo de céu sereno, a pandemia derruba os mercados, desorganiza o processo de produção, deixa milhões sem emprego, sobretudo os precarizados que todas as manhãs têm de lutar pela janta, mas não apenas. As sombrias previsões indicam que todos estão expostos, em graus distintos que correspondem às profundas desigualdades sociais, a uma situação caótica causada por algo que, a julgar pela grande mídia e o governo1, decorre de um mero fenômeno natural.

Uma pergunta que se pode colocar, dentre muitas outras que nos acossam nesses dias apocalípticos, é a seguinte: como pode uma gripe colocar em xeque todo o sistema econômico, causando uma crise econômica que se anuncia, já em primeira hora, como a pior da história do capitalismo? Acessoriamente, será o surgimento de mais esse vírus, assim como sua catastrófica disseminação global, um fenômeno puramente natural?

Todos que acompanham a evolução da economia, à direita e à esquerda, estavam à espera de uma nova recessão global.

De saída, é preciso que se afirme categoricamente: essa crise não foi causada pelo COVID 19! Todos que acompanham a evolução da economia, à direita e à esquerda, estavam à espera de uma nova recessão global. Os índices indicavam a debacle vindoura e se o volume dos negócios financeiros subia a despeito dessas perspectivas, o que transparece é justamente o caráter puramente especulativo, fictício, da seara pela qual transita o grande capital2.

Na verdade, parece seguro afirmar que vivemos mais uma etapa da crise do capitalismo contemporâneo, poder-se-ia dizer (como muito se diz), da crise do neoliberalismo. A fase neoliberal, que se abre na esteira das transformações no processo de acumulação de capital forçadas pela crise dos anos 1970, representou um continuum de destruição de direitos, de serviços públicos, de condições ambientais, enfim, de vidas. Mais do que isso, essa fase é marcada pela sucessão de inúmeras crises financeiras, características de um amplo processo de liberalização das vias especulativas para abrigar um capital cuja acumulação sufocava em suas próprias contradições.

Não há destruição que baste para o capital. Na verdade, sequer seria possível “destruir” na escala exigida para remunerar todo o capital fictício acumulado.

De modo sucinto, o capital sufocado exige a destruição para inflar suas margens de lucro e dar vazão às suas necessidades de crescimento, encontrando nos canais financeiros outro escape. Desacorrentado, o capital se multiplica em escala impressionante nas finanças. A sustentação, a cada momento, da especulação se apoia na crença de que é possível transformar aquela riqueza fictícia em dinheiro e, portanto, em parte do produto social. Cresce a necessidade de produção da riqueza excedente, de que se apropria o capital. Em outras palavras, aumenta-se a pressão pela destruição (de direitos, de serviços públicos, do meio ambiente, da vida…). No entanto, não há destruição que baste para o capital. Na verdade, sequer seria possível “destruir” na escala exigida para remunerar todo o capital fictício acumulado.

A crise de 2008, que desembocou rapidamente em uma profunda recessão global, desnudou essa contradição, esse aparente beco sem saída que o capital criou para si mesmo. Desde então, não se pode dizer, ao menos não sem parecer tão ridículo quanto um economista do mercado financeiro, que a economia mundial de fato se recuperou. A crise se desenvolveu em novas fases e a atividade econômica permaneceu estagnada, quando muito cortada por breves períodos de efêmera recuperação, acompanhados pelos suspiros aliviados de “agora vai!” daqueles mesmos economistas. A especulação financeira seguiu a todo vapor, afinal, todas as medidas dos principais governos tiveram por intuito evitar as perdas do capital e o capital não sabe fazer outra coisa que acumular.

Nesse contexto, o que poderia fazer o capital senão exigir mais destruição? E o fez, diante de uma esquerda desmoralizada por sua adesão desavergonhada ao projeto dos vitoriosos, que surfava na marola do mito da prosperidade infinita dos índices do mercado financeiro e do fim das lutas de classes, ao tempo em que prestava o serviço de retirar direitos, atacar por dentro as organizações dos trabalhadores e administrar a pobreza. O capitalismo neoliberal em crise não poderia exigir menos do que mais neoliberalismo. Com o sangue e a vida dos trabalhadores e das populações mais pobres sustenta-se temporariamente um sistema que se sabe insustentável.

Enfim, não é o neoliberalismo, mas o capital, que tem o neoliberalismo como uma de suas fases. Não é apenas o capital financeiro, como supõe parte da esquerda, mas o capital, que tem o capital financeiro como uma de suas formas – aliás, monstruosamente inflada na fase neoliberal, como saída momentânea para os problemas da produção capitalista. É o capital que comanda a produção, que avança sobre a agricultura e a natureza seguindo sua busca ilimitada por lucros, que impõe padrões produtivos que acabam por produzir inúmeros vírus e doenças3, que determina uma distribuição espacial da população que favorece a propagação de doenças, que organiza a produção mundial em cadeias de valor que travam diante da necessidade de isolamento em diferentes níveis (nacionais, locais etc.), que exige a destruição do serviço público para vender saúde a quem puder pagar, que monta um sistema financeiro que vive da desgraça da maioria da população, que suga insaciavelmente o fundo público, mas que vira fumaça ao menor boato ou vírus, porque vive de uma ilusão cruel que só persiste sugando mais e mais, até que não sobre nada.

 

É o capitalismo que está em xeque! É preciso fomentar a síntese que produza um discurso capaz de apresentar efetivamente todos esses fenômenos como resultados do próprio capitalismo.

É difícil achar quem tenha informação sobre um fenômeno ou outro dos acima listados e não os veja criticamente, em especial nesses tempos sinistros de confinamento. É o capitalismo que está em xeque! É preciso fomentar a síntese que produza um discurso capaz de apresentar efetivamente todos esses fenômenos como resultados do próprio capitalismo. É preciso reativar a crítica radical do capitalismo no discurso da esquerda. Em suma, é tarefa da esquerda socialista fomentar uma consciência de classe anticapitalista!

As condições mudaram e a esquerda precisa urgentemente voltar a pensar radicalmente a transformação social. Mais do que isso, a lutar pela transformação social radical! Tal giro deve estar presente inclusive na proposição das soluções de emergência para a calamidade corrente. Quando o governo propõe cortar salários de trabalhadores (no setor público e privado) e anuncia a disposição infinita de socorrer o capital financeiro, é preciso deixar claro: que os bancos e o grande capital, em geral, paguem pelo COVID 19!

Assim, por exemplo, que se suspendam os pagamentos da dívida pública, que sejam canceladas as dívidas das camadas mais empobrecidas da população, que sejam taxadas as grandes fortunas. Quando o governo anuncia a irrisória “ajuda” de R$ 200 por mês para os mais pobres, devemos exigir que, com os recursos expropriados do capital, garantam uma renda mínima digna. Quando o governo indica o desejo de permitir a suspensão dos vencimentos dos trabalhadores para salvar empresas, exijamos que assumam integralmente o pagamento dos salários das pequenas empresas e dos precarizados, assim como que grandes empresas em setores chaves da economia sejam estatizadas, sem indenização, e postas sob o controle dos trabalhadores. Quando um esforço coordenado de saúde pública se torna imprescindível, que sejam estatizados os hospitais privados.

Notem que estas, dentre outras, não são propostas que rompem com a ordem capitalista, cujas fundações se situam para além do domínio da distribuição da propriedade e da riqueza. No entanto, são propostas que pretendem responder a questões prementes do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores, ao contrário das respostas apresentadas pelo capital e seus representantes no governo. Desta forma, tensionam as contradições que edificam a ordem capitalista, fomentando uma consciência de classe que um dia há de fazê-la ruir.

Que a esquerda socialista volte a lutar pelo socialismo!


*Flavio Miranda é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).


1  O Banco Central do Brasil, cujo presidente Roberto Campos Neto tem oferecido aulas gratuitas sobre “fetichismo” ao afirmar, por exemplo, que seu objetivo é manter a “racionalidade do mercado” e o movimento dos preços como organizador da economia, indica que estamos passando por uma “crise sanitária mundial”. [disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/2020/03/23/liberacao-de-liquidez-tem-impacto-de-r-12-trilhao-diz-presidente-do-bc.ghtml]

2  Verdade seja dita, a derrocada financeira era igualmente evidente. Desde pelo menos setembro está claro, até mesmo para os analistas de mercado, que sem as contínuas injeções de dólares pelo do Banco Central estadunidense (o Federal Reserve Bank), o mercado colapsaria de imediato. O “Estado mínimo” dos liberais é sempre um “Estado máximo” para o capital.

3  Precisamente o caso do COVID 19, nem fenômeno natural, nem uma coisa de chineses e seus hábitos alimentares, como supõe os odiosos racistas, mas um resultado do comando do capital sobre as necessidades alimentares da humanidade, como no caso de pandemias anteriores. http://afita.com.br/outras-fitas-contagio-social-coronavirus-china-capitalismo-tardio-e-o-mundo-natural/