No dia 20 de março, Jair Bolsonaro esteve no Programa do Ratinho, sem máscara, e fez a seguinte fala: “Tem gente que quer fechar Igrejas, o último refúgio das pessoas. Lógico que o pastor vai saber conduzir lá o seu culto. Ele vai ter consciência, o pastor, o padre, se a Igreja está muito cheia, falar alguma coisa, ele vai decidir lá”. O presidente também evocou o artigo 5º da Constituição Federal, chamando atenção para a liberdade de crença e o livre exercício dos cultos religiosos.
Sua fala veio junto da pérola: “Não podemos criar esse clima todo que está aí. Prejudica a economia”. Bingo. Um presidente que circula sem máscara em programas de televisão, em manifestações, em diversas situações de contato público, não está mesmo preocupado com as pessoas, e sim com o dinheiro. Ele, que está cercado por pelo menos 23 pessoas contaminadas com o coronavírus, que é o representante máximo do país e deveria dar exemplo, que pode ter contaminado centenas de pessoas nas últimas duas semanas… Estar sob a presidência do Messias trata-se de uma tragédia ainda pior do que a que já estamos vivendo com o coronavírus.
Sua postura está na contramão das lideranças mundiais. Age, cada vez mais solitariamente, como se estivéssemos em um momento absolutamente trivial de nossa história. O problema principal é que isso oferece respaldo a outres líderes irresponsáveis como Silas Malafaia, que teve de ser parado por liminar, após ter se pronunciado em tom arrogante: “Gostaria de avisar aos governadores e a qualquer prefeito onde tenho Igreja, que se os senhores quiserem fechar as Igrejas onde sou pastor, tratem de ir à Justiça”.
Há nesses discursos uma autoridade como se fosse uma licença que paira sobre líderes religiosos e que os(as) resguarda de obrigatoriedades, uma vez que sua condição seria tida como “especial”. Tal perspectiva é bastante antiga e encontra legitimidade no capital simbólico – como lembra Pierre Bourdieu – acumulado por essas pessoas diante de um número enorme de seguidores(as), diante de acordos que favorecem religiões majoritárias como as cristãs (como é o caso do Acordo Brasil Santa Sé), com base em uma história de séculos de alianças entre Estado e Igreja, uma história que ainda permite que Igrejas gigantes com acúmulo milionário sejam isentas de impostos. Afinal, padres, pastores(as), bispos, estariam, para aqueles(as) que comungam com sua fé, mais próximos(as) de Deus, daí sua legitimidade.
Embora a secularização no Brasil tenha se iniciado há mais de dois séculos e a laicidade de Estado seja garantida em Constituição, nossas práticas demonstram que ainda estamos distantes de estabelecer relações conscientes entre estes poderes.
Tamanho é o capital simbólico destes (as) líderes, que muitas pessoas se submeteriam a se contaminar e a seus familiares e amigos(as) para cumprir seu dever cristão e para com a comunidade da Igreja.
Há alguns dias, vários grupos religiosos ainda mantinham suas Igrejas abertas, entre elas a Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, a Igreja Mundial do Poder de Deus, liderada por Valdemiro Santiago, além da já citada Vitória em Cristo (Assembleia de Deus), sob a liderança de Silas Malafaia. No total, estes três grupos têm sedes com capacidades que somam mais de 30 mil pessoas. Outras Igrejas, como Renascer em Cristo, mantêm suas portas abertas, mesmo já oferecendo cultos online. Há medidas alternativas como orientações para manter distância entre os(as) fieis, álcool em gel nos templos e espaços de cultos, no entanto, tais ações são insuficientes para o combate ao vírus. Uma das justificativas é que a fé em Deus os(as) protege. Foi assim que se defendeu uma funcionária da Cidade Mundial dos Sonhos de Deus, ao ser abordada por telefone pela reportagem de apublica.org.
E é assim que várias pessoas cristãs reforçam seu vínculo com as religiões, demonstrando sua fé. Nesse sentido, adoecer seria um sintoma de pouca fé. Eis uma lógica que sustenta massivamente a manutenção dos cultos presenciais, a ponto de Edir Macedo chamar o combate ao coronavírus de “coronafé”, ou “aquela confiança, aquela certeza de que Deus está contigo (…). A coronafé é para aqueles que creem com todas as forças, de toda a sua alma, de todo seu coração, de todo seu pensamento, naquilo que está escrito na palavra de Deus”. Ele complementou, ainda, que gerar medo e pavor é estratégia do Satanás, e por isso, desencoraja as pessoas a terem medo do coronavírus.
A outra justificativa para manter as Igrejas abertas é, como já observado na fala de Bolsonaro, que elas teriam um papel fundamental em momentos de crise, sendo um espaço de refúgio, apoio, fortaleza e de renovação da esperança. Como justificar aos(às) fieis que justamente no momento de maior vulnerabilidade social, as Igrejas se fechem?
Nesse ponto, podemos abrir espaço para uma reflexão mais ampla. As religiões – ao contrário do que o senso comum prevê – transformam-se ao longo dos anos de modo a adaptar-se aos tempos. A fé não é destituída de racionalidade, ou seja, ela não é estritamente irracional. Envolve argumentos e convencimentos que operam com bases práticas, como melhorias de condições de vida, redes de solidariedade, mudanças de comportamento. Há uma racionalidade bastante sólida nesse tipo de vínculo. E tal racionalidade, ao mesmo tempo pode justificar adaptações das Igrejas em nome de sua sobrevivência, ou pode dar base para argumentos que negam a realidade. As Igrejas que se mantêm abertas, arriscando a vida de milhares de pessoas e contribuindo para a piora do quadro de contágio, estão no segundo grupo.
Nem só orientações perigosas estão sendo propagadas nesse momento pelas lideranças religiosas. A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por meio de pronunciamento de seu presidente Walmor Oliveira de Azevedo, orientou que brasileiros(as) fiquem em casa. Makota Celinha, coordenadora do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira – CENARAB, em pronunciamento na página oficial do Facebook no dia 18 de março, pediu a suspensão de todas as atividades públicas presenciais ligadas às religiões afro, chamando atenção para a seriedade do momento e a responsabilidade de cada pessoa religiosa.
Observamos, finalmente, que as lideranças religiosas, de posse de seu poder simbólico que tem influência sobre um número enorme de pessoas, podem contribuir ou piorar o quadro da pandemia. A cadeia do poder simbólico tem uma estruturação absolutamente vertical, e ao elegermos um presidente ideologicamente alinhado com esta estrutura, infelizmente, acabamos por reforçar o autoritarismo arrogante, irresponsável e infantil que justifica qualquer ação em nome da fé e nega o momento, as duras experiências internacionais, as orientações de órgãos como a OMS e o terror que pode se estabelecer ainda mais por aqui. O nome disso é desprezo pela humanidade com aparência de liberdade de culto.
Clarissa De Franco é psicóloga da Universidade Federal do ABC, doutora em Ciência das Religões com Pós-doutorado em Ciências Humanas e Sociais e em Estudos de Gênero. Atua com Direitos Humanos e religião. É colunista e colaboradora de algumas mídias, como a Folha de S. Paulo.
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