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Entre quem vive e quem morre: e quando o coronavírus chegar às prisões brasileiras?

Eduarda Garcia, com contribuições de Douglas Fernandes*
Wilson Dias / Ag. Brasil

Múltiplas e gravíssimas são as repercussões da chegada do novo coronavírus ao Brasil. Para além da discussão a respeito da saúde pública, planos emergenciais governamentais e campanhas de prevenção, nosso intuito é contribuir com a informação da sociedade sob um aspecto em específico.  Aqui, importa jogar luz a realidades que muito dificilmente ganham visibilidade, inclusive em momentos de relativa normalidade social.

Neste momento, nos parece existir setores sociais que possuem acesso abundante a informações, inclusive com possibilidade de realizar quarentena e tele-trabalho, entre outros cuidados recomendados pelas autoridades de saúde pública. De outro lado, há amplos setores que permanecem não só desinformados, mas sem acesso a condições básicas para reforçar cuidados de saúde como higiene pessoal e alimentação saudável, além de álcool gel e demais necessidades. É o caso das periferias (1), das populações indígenas e quilombolas (2) moradores de rua (3) e da população carcerária, aqueles cuja presença e compromisso do Estado nunca existiram de fato.

Sabe-se que o Brasil ocupa o 4º lugar no ranking mundial dos países que mais encarceram pessoas em estabelecimentos prisionais. Do ponto de vista dos Estudos de Política Criminal e de Segurança Pública, nosso país prende muito e prende muito mal. Podemos sentir a presença do Estado na reprodução de uma realidade desigual, antissocial e racializada. Dentre seus alvos preferenciais, segundo dados do InfoPen (4) e Atlas da Violência (5) estão homens negros, de baixa escolaridade, em sua grande maioria jovens. Além disso, cada vez mais a população prisional vem contando com a presença de mulheres, tendo a taxa de encarceramento deste setor crescido 698% nos últimos 16 anos (InfoPen). Trata-se de quase 800 mil pessoas presas hoje no Brasil.

Segundo Carta da Pastoral Carcerária sobre Covid-19 nas prisões, se o vírus se espalhar pelas prisões brasileiras, as consequências serão desastrosas. Prova disso é a tuberculose ter uma incidência 30 vezes maior nas prisões do que na sociedade em geral, de acordo com o MS e FIOCRUZ (6). Não por acaso foi esta doença que garantiu a concessão de prisão domiciliar a Rafael Braga, mártir das manifestações de Junho de 2013, homem negro catador de material reciclável. (7)

O Instituto de Defesa do Direito à Defesa (IDDD) ofereceu pedido liminar no âmbito da ADPF 347/2015, na qual, a pedido do PSOL, reconheceu-se a situação prisional brasileira como um “estado inconstitucional de coisas” quando considerada a integridade física e moral dos custodiados. O pedido consistia na concessão de prisão domiciliar a todos os presos que não tenham cometido crimes com violência ou grave ameaça a pessoa e que estejam nos grupos de risco à contaminação por coronavírus em todo o país, se tratando de uma questão humanitária. (8)

Em 17/03, o Ministro Marco Aurélio deferiu o pedido liminar (9), determinando que os juízos competentes analisassem a possibilidade de deferimento de uma série de medidas anti-cárcere como (A) liberdade condicional a idosos, (B) prisão domiciliar a presos soropositivos para HIV, ou gestantes e lactantes, ou que tenham cometido crime sem violência ou grave ameaça, assim como (C) substituição de prisão provisória por medida alternativas em casos de crime sem violência, (C) medidas alternativas a presos em flagrante sem violência, (D) progressão de pena para quem já atende o critério temporal e (E) progressão antecipada de pena a quem está em regime semi-aberto.

Tal decisão, importante e progressista, foi revogada pelo conjunto do Plenário do STF, após dois dias de vigência, demonstrando o papel reacionário que cumpre o órgão de controle de constitucionalidade brasileiro.

No dia 17 de março, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de maneira acertada emitiu a Recomendação nº 62 (10), a qual “recomenda aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no âmbito do sistema de justiça penal e socioeducativo”. É semelhante a liminar de Marco Aurélio, no sentido de entender que medidas anti-cárcere neste momento são cruciais para evitar uma tragédia sem precedentes dentro e fora das prisões brasileiras, além de consistirem em garantias de direitos já existentes desta população, dos familiares e dos trabalhadores em geral.

Entretanto, sabido é que uma decisão proferida por uma autoridade judiciária da mais alta Corte Brasileira tem um poder de vinculação muito maior do que uma mera recomendação do Conselho Nacional de Justiça. Uma situação desta magnitude estar a cargo apenas de uma recomendação, dando poder discricionário aos Juízes para segui-la ou não vai de encontro ao que já de plano sustentamos no início da presente crítica: a população carcerária não é destinatária do rol de direitos e garantias que devem ser assegurados pelo Estado.

Em São Paulo (11), assim como Bogotá (12), já foram noticiadas diversas rebeliões em estabelecimentos prisionais. A tendência é que as revoltas aumentem. É de se observar o que os demais países têm feito, como o Irã que já libertou temporariamente, mais de 170 mil presidiários na intenção de conter mortes por coronavírus.  (13)

A curto prazo, são urgentes as reivindicações das entidades de direitos humanos em torno da garantia dos direitos dos presos e suas famílias, assim como fundamental a atuação das Defensorias Públicas Estaduais e Federais, bem como da Ordem dos Advogados do Brasil no sentido do ajuizamento de ações coletivas junto às Varas de Execuções Criminais, pressionando o Judiciário ao cumprimento das recomendações do CNJ.

A médio-longo prazo, acreditamos que medidas desencarcerantes são centrais  (14), não só em situações de pandemias. Na medida que prisões são estruturas de manutenção e reprodução de racismo e desigualdades sociais, estas medidas são parte dos gérmens de uma nova sociedade, organizada a partir de novas bases, valores e prioridades, no exercício da solidariedade. É preciso, por um lado, da presença do Estado com à segurança pública cidadã desmilitarizada e preventiva  (15) em conjunto e, por outro, a garantia de acesso universal a serviços públicos de saúde, educação, lazer, bem viver a todos na medida de suas diferenças.

“Estarão as prisões obsoletas?’ – pergunta que ensejou o título de um dos mais recentes livros de Ângela Davis – nos questiona o porquê de considerarmos as prisões como um aspecto inevitável e permanente em nossa vida social e propõe não sua reforma, mas um consenso mínimo em torno de sua abolição, sendo tarefa nossa concretizar a transição a “uma ordem social que não dependa da ameaça de enclausurar pessoas em lugares terríveis destinadas a isolá-las de sua família e comunidade”. É possível imaginar a vida sem elas.

*Douglas Fernandes é advogado criminalista.

 

NOTAS

1 – Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/03/18/Por-que-as-periferias-
s%C3%A3o-mais-vulner%C3%A1veis-ao-coronav%C3%ADrus
2 – Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2020/03/com-1o-caso-suspeito-na-bahia-indigenas-
reclamam-de-falta-de-apoio-do-governo-para-conter-coronavirus/
3 – Disponível em: https://www.plural.jor.br/noticias/vizinhanca/ong-pede-medidas-que-protejam-
pessoas-em-situacao-de-rua-contra-o-coronavirus/
4 – Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen
5 – Disponível em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/
6 – Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51727015
7 – Disponível em: http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2017/2017-12-12_17-32_Sexta-Turma-confirma-prisao-domiciliar-para-Rafael-Braga.aspx

8 – Disponível em: https://ponte.org/advogados-pedem-ao-stf-soltura-de-presos-para-conter-coronavirus-no-sistema-prisional/

9 – Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4783560

10 – Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf

11 – https://www.brasildefato.com.br/2020/03/17/rebelioes-atingem-4-presidios-em-sp-presos-estao-expostos-a-contagio-por-coronavirus

12 – Disponível em: https://jovempan.com.br/noticias/mundo/rebelioes-por-superlotacao-e-medo-do-coronavirus-deixam-23-mortos-na-colombia.html

13 – Disponível em https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/coronavirus-ira-anuncia-libertacao-de-70-mil-prisioneiros-1-24293718

14 – 10 medidas contra o encarceramento em massa, pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais https://www.ibccrim.org.br/medidas-sistemapenal2017/

15 – SZABÓ, Ilona; RISSO, Melina. Segurança Pública Para Virar o Jogo. São Paulo, ZAHAR, 2018, pág. 39.