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BRASIL

Ricos e pobres no Brasil do coronavírus

Bancada Feminista* do PSOL São Paulo
Roberto Parizotti / Fotos Públicas

Como visitar minha filha em Higienópolis?

Carla não para de pensar que deveria ter comprado um apartamento para a filha perto da sua própria casa, no Jardins. O plano até agora é simples: garantir que o motorista possa estacionar no prédio da filha e passar álcool gel no carro, enquanto elas passam um tempo juntas.

A parte da família de Carla que mora no Jardins está reunida para jantar, uma mesa farta. Riem porque Carla “surtou”, comprou álcool gel e máscaras suficientes para dez meses de pandemia para toda a família. Ainda antes do contágio comunitário, Carla também garantiu um estoque de comidas e bebidas: “ninguém aqui vai passar necessidade se essa loucura continuar”. O filho adolescente pediu ifood, porque não gostou do cardápio da noite.

Todos os negócios são realizados por internet. Já era assim em boa parte do tempo para vários familiares de Carla. Com o coronavírus, foi tranquilo estabelecer a regra. Na hora do jantar, Carla garantiu que os celulares ficassem longe para poderem conversar sobre as notícias, os memes e o entretenimento durante a quarentena.

Mas em dado momento, a conversa ficou séria. O assunto foi a queda da bolsa de valores em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. Quando o tio propôs um jogo de adivinhação, as testas ficaram enrugadas. Deveriam adivinhar quanto lucro será perdido nos próximos três meses pelos bancos privados, o agronegócio e a indústria.

Outros não tiveram o mesmo direito à quarentena: o porteiro, o zelador, a babá, a trabalhadora doméstica, a cuidadora do patriarca de 85 anos, o motorista, o entregador do aplicativo. Parte dos trabalhadores dos negócios, que são controlados pela internet desde o apartamento de Carla, também.

 

Outro bairro de São Paulo, outras questões.

Morrer de fome ou de coronavírus?

Maria não consegue dormir com essa pergunta na cabeça. Há quatro anos, ela perdeu o emprego de corretora de imóveis e tem se virado vendendo roupas da feira do Brás e produtos da Avon em uma banca perto do metrô Tatuapé.

Maria mora na região de Itaquera com os três filhos. Ela e o filho mais velho, que entrega comida de bicicleta por meio de aplicativos, juntam a renda que mal dá pra pagar o aluguel, comida e transporte. Cerveja é uma vez no mês. Era. E olhe lá.

As notícias da TV só falam do coronavírus. Maria assiste tudo e lava a mão sem parar, Deus a livre dos meninos ficarem sem a mãe. Sem ter resposta, pergunta: “quando vou poder montar minha banca de novo sem risco pra saúde?”. É difícil de entender, tanto ou mais que os números da economia de 2019. Positivos? Melhorou a situação? Diminuiu o desemprego? Maria também acompanhou a novela dos índices econômicos porque queria entender se, quem sabe, se animaria a voltar a mandar currículos por aí.

Dizem que a Maria é uma empreendedora. Uma vez ela procurou no google o que isso significa para poder falar sobre o assunto do jeito mais esperto possível: “disposição ou capacidade de idealizar, coordenar e realizar projetos, serviços, negócios”. Disposição ela tem. Capacidade também. Já que é pra se virar sem carteira assinada, INSS e com muita ralação, o melhor é que pelo menos o nome tenha pompa. Só o nome pode ser.

Maria e outros trabalhadores informais carregaram nas costas os números que o governo ousa chamar de “leve crescimento”. E hoje perdem o sono como ela os desempregados, os camelôs, os entregadores e motoristas individuais, trabalhadores e trabalhadoras precarizados de toda ordem. Centenas de milhares de pessoas pelo Brasil.

Na maior parte da insônia, a Maria decidiu que ia catar suas coisas e ir pra rua no dia seguinte. O que vender já ajuda. Mas agora os meninos estão em casa. As aulas foram suspensas. E a Maria, que sempre foi elogiada por ser um fortaleza até nas horas mais difíceis, tem sentimentos contraditórios: é melhor as crianças pararem de andar pra lá e pra cá correndo risco, porém é muito difícil com elas o dia todo em casa. Nem com a merenda dá pra contar.

O whatsapp da Maria apitou às 3h da manhã. Mensagem do pai dos meninos, também com insônia. Era um aviso de que não ia conseguir depositar os R$ 300,00 da ajuda aos pequenos em março. Ela procurou na mente se já teve uma noite tão amarga. Não encontrou. Depois desistiu – era melhor se concentrar no que fazer.

O que fazer? Maria é muito inteligente, mas essa equação não dá pra resolver sozinha. A pandemia causou um curto circuito no sistema de Maria. Já Carla e sua família têm muito mais condições de sobreviver à pandemia.

Histórias fictícias. Problemas reais.

Existem classes sociais, maiorias e minorias. Gênero, sexualidade e raça se articulam com essas classes formando pessoas de carne e osso que estão em uma encruzilhada: para o governo Bolsonaro, o que vale mais? Suas vidas ou o lucro?

Cada vez que o presidente fala que os negócios não podem parar por causa da “histeria” do coronavírus, ele escolhe que um lado vai se proteger porque consegue gerenciar os negócios, desde cima pela internet, e um lado vai se expor, com riscos letais, a caminho e no próprio trabalho. 

Cada dia que passa sem que medidas sejam implementadas para proteger o emprego e a dignidade dos 99%, Bolsonaro ri de Maria, de seu presente e futuro.

É por ela, pelos  99% dos e das brasileiras que defendemos dez medidas:

 

  1. Evitar o risco de contaminação com quarentena para todos e todas. Com exceção dos serviços essenciais e das lojas e fábricas de produtos de primeira necessidade, todas as atividades de trabalho devem ser suspensas com licença remunerada e garantia de estabilidade. Aqueles e aquelas que fazem parte do grupo de risco precisam ser liberados, mesmo que atuem em serviços essenciais.
  2. Aumento imediato do investimento na saúde para garantir a estrutura de tratamento adequada. É preciso liberar verbas ao SUS para contratação emergencial de profissionais de saúde e a compra de equipamentos e estrutura necessários, como aparelhos respiratórios, leitos de UTI, medicamentos e realização de testes gratuitos em todos os postos de saúde. 
  3. Tratamento igual para toda a população. A estrutura da rede privada de saúde tem que ser aberta para acolher gratuitamente as pessoas que necessitam de atendimento, sem distinção entre quem tem e não tem plano de saúde privado. A entrada dos hospitais deve ser coordenada pelo SUS por uma única porta. 
  4. Distribuição gratuita de remédios e tabelamento de preços. Distribuição de álcool gel e máscaras para a população, assim como o congelamento dos preços nas farmácias e mercados desses e outros itens de primeira necessidade, como alimentos, remédios, produtos de higiene, limpeza e gás de cozinha. 
  5. Auxílio vulnerabilidade para os e as mais pobres, trabalhadores e trabalhadoras informais e em desemprego. É preciso liberar imediatamente as aposentadorias e auxílio doença paralisadas por causa da “ fila” do INSS. Estender imediatamente o benefício do Bolsa Família para todas famílias de baixa renda afetadas pela crise. E garantir benefício extraordinário (de 1,5 salário mínimo mensal enquanto durar a crise) a todos trabalhadores informais e precários afetados pela crise e desempregados. 
  6. Suspensão das aulas em todos os níveis, nos setores público e privado, por tempo indeterminado. É preciso garantir licença remunerada do trabalho para todas as mães e pais que tiverem filhos com aulas suspensas e distribuir cesta básica para famílias que dependem de merenda como suplemento alimentar. 
  7. Proteção a quem cuida de nós. Medidas emergenciais de proteção à saúde de quem atua em serviços essenciais no setor de saúde, limpeza, transporte e dos demais equipamentos de uso público. 
  8. Garantir apoio financeiro a todas pequenas e microempresas ameaçadas pela crise, com investimento de bancos públicos. 
  9. Direito à informação e comunicação. O governo deve produzir material educativo em forma de vídeo, áudio, texto com orientações para a população com a atualização necessária das descobertas científicas ao redor do mundo. 
  10. Os recursos para o investimento social emergencial existem, mas é preciso escolher a vida acima do lucro! Defendemos o fim do Teto dos Gastos, taxação dos lucros dos bancos e grandes fortunas e suspensão do pagamento dos juros da dívida pública.

 

*Esse texto foi resultado de uma elaboração coletiva da Bancada Feminista do PSOL, composta por:

Silvia Ferraro, professora de História da rede municipal de ensino, mãe e ativista da frente Povo Sem Medo e do movimento feminista.

Paula Nunes, advogada criminalista, defensora dos direitos humanos, ativista do movimento de juventude Afronte e do movimento negro.

Carolina Iara de Oliveira, travesti, intersexo, negra e ativista do Coletivo Loka de Efavirenz, da Rede de Jovens São Paulo Positivo (RJSP+) e da Associação Brasileira Intersexo (ABRAI).

Dafne Sena, militante ecossocialista, vegana por um veganismo popular e integra a Coordenação Estadual da Setorial Ecossocialista do PSOL.

Natália Chaves, militante ecossocialista, vegana por um veganismo popular, integrante da Coordenação Estadual da Setorial Ecossocialista do PSOL.