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BRASIL

O vírus do capitalismo: lições do coronavírus

Deivide de Sousa Oliveira, de Fortaleza (CE). Colaborou Damien Ribeiro Maia
Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Dentro da consciência coletiva do mundo ocidental, a ideia de infecções potencialmente contagiantes e fatais nos persegue desde, provavelmente, os idos anos do medievo europeu. A peste foi a primeira epidemia que se sedimentou nesse ideário coletivo. Muito do que entendemos de contágio e de risco biológico nos foi “tatuado” com as imagens daquela época. Com o passar dos séculos e do desenvolvimento do capitalismo como sistema econômico, outros potenciais riscos biológicos à humanidade nasceram das entranhas do sistema.

No atual contexto, a globalização informacional que vivemos dissemina celeremente eventos infecciosos que ocorram na superfície terrena, dando, muitas vezes, esse caráter midiático. Deve-se ressaltar que vivemos crises infecciosas muitas vezes não conhecidas pelo grande público, pelo público leigo. O aumento da resistência bacteriana tanto no ambiente hospitalar como comunitário, fazendo com que muitos especialistas considerem que em poucos anos viveremos uma era pós-antibiótico, o aumento de infecções por germes oportunistas em pacientes imunossuprimidos, desaceleração do desenvolvimento de novos fármacos antimicrobianos etc. No entanto, nota-se que um micro-organismo tem ganhado, particularmente, mais destaque nos meios de informação: os vírus.

Esses seres são muito peculiares e de classificação taxonômica complexa. Por muitos anos, a Ciência não entendia esses organismos como seres vivos, ficando dentro de subclassificações e gerando muito debate sobre se eles existiriam antes ou depois do surgimento do primeiro ser vivo unicelular, o LUCA (last universal common ancestor). Hoje existem linhas de entendimento biológico que consideram que esses seres tenham surgido posteriormente na evolução da vida na terra, à medida que a evolução das espécies precursoras ia se aflorando durante as eras geológicas.

Apesar de a peste ainda ser quase um atavismo na história do ocidente ter sido causada por uma bactéria, Yersinia pestis, a produção literária, de filmes e de videogames atuais tem se centrado nos vírus. Se consideramos a historicidade dos fatos, talvez essa maior presença dos vírus na nossa realidade seja devido ao impacto social da gripe espanhola. Necessitamos de mais textos sobre essa influência, mas é um ponto de vista pelo qual podemos trilhar nossa conversa.

Hoje vivemos num panorama no qual essa sensação de emergência saiu das telas para a vida real: a pandemia do novo coronavírus. Essa pandemia traz em si muitos debates, tanto do ponto de vista médico como social. Temos vivido epidemias de vírus com grande impacto local em muitos países e continentes, basta que nos lembremos da epidemia do chikungunya, do zika, da dengue e das infecções virais na África, como o ebola. A despeito dos danos econômicos e sociais, essas infecções não conseguiram perfurar a rígida superfície de gelo do lago congelado onde o mundo subdesenvolvido vive. O coronavírus conseguiu chegar à superfície e invadiu os jardins do mundo rico, especialmente da Europa.

Por um momento tentemos nos lembrar de quantas infecções de impacto midiático internacional emergiram da China nos últimos anos: gripe aviária, gripe suína, H1N1 e COVID-19. Ao pesquisar no site da OMS, temos que desde 2000 foram mais de 50 atualizações dos boletins epidemiológicos, com mais de 20 eventos infecciosos descritos, desde infecções bacterianas, como a peste – sim, ainda temos caso de peste! – até virais, como SARS, MERS, gripe suína, aviária e COVID-19. Quais os fatores que influenciam essa extrema vulnerabilidade da China?

Há um enorme conflito de informações e de percepções sobre as respostas para a questão acima. No entanto, existem três fatos que devemos debater: o superpovoamento na China, os hábitos alimentares e a precarização do trabalho. Muitos defendem que a extrema aglomeração populacional na China seja um dos fatores mais importantes para a disseminação de infecções, especialmente respiratórias. Esse ponto de vista deve ser considerado; no entanto, a Índia também é superpovoada e não é um epicentro infeccioso tão importante. Muitos alegam que os hábitos alimentares esdrúxulos para o padrão ocidental sejam causa primordial; todavia, mais uma vez a Índia… Dos três principais motivos que são elencados como fatores explicativos, a precarização do trabalho é a menos falada. Por qual motivo?

A percepção que vivemos um estranho ambiente de consumo tem crescido em alguns grupos, como nos veganos que, por um ideário de consumo consciente, optaram por direcionar o ato de consumir. Se pararmos e atentarmos para o fato de que muito do que consumimos advém da China, notaremos que quase todo nosso consumo possui algo de chinês. O capitalismo alugou a China. 

O trabalho e toda a sua “vulnerabilização” do mundo moderno têm no território chinês um ápice, posto que lá o capitalismo pode se expressar em toda sua sagacidade lucrativa. A restrição dos direitos trabalhistas, a precarização das condições de vida da população chinesa e aglomerações no ambiente urbano são fatores preponderantes para a contagiabilidade de um agente patogênico. Podemos ressaltar também que as más condições físicas e de saúde são fatores estressantes já associados na literatura médica à diminuição do potencial responsivo a agentes infectivos.

Essa nova pandemia é um evento biológico primordial para que mudemos nossa maneira de consumir e de entender que, nessa sociedade global, as barreiras e os limites do que pode ser feito com o humano para atender os ditames do “Mercado” possui repercussões globais.

Nesse momento, outrossim, devemos atentar para que afluxos ditatoriais e extremistas de isolamento podem ascender dos pântanos do medo e do pânico. O momento não é de pânico, é de reflexão! Até onde vamos com o capitalismo? Que limites aceitamos quebrar pelo bem do “Mercado”? Da mesma maneira que a vivência da peste no medievo europeu impulsionou mudanças na organização das cidades, essa pandemia deve apontar para mudanças na maneira como entendemos o consumo e o capitalismo em si.

* Deivide de Sousa Oliveira é médico hematologista e hemoterapeuta. Damien Ribeiro Maia é acadêmico de Direito da Universidade Federal do Ceará e Coordenador do Núcleo de Estudo em Ciências Criminais

 

Referências:

1 – https://www.who.int/csr/don/archive/country/chn/en/ , acesso às 12:20, 18/03/2020

2 – https://www.visualcapitalist.com/history-of-pandemics-deadliest/ , acesso às 12: 10, 18/02/2020

3 – McMillen CW. Pandemics: a very short introduction, Oxford University Press. 2016.

4 – Vineis P. Health without borders: Epidemics in the Era of Globalization. Springer International Publishing, 2017}

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