Coronavírus e o Fim do Mundo

Não há espaço para capitalismo às portas do apocalipse

Pedro Salgado*, de Uberlândia (MG)
Fernanda Cruz/Agência Brasil

A crise pandêmica atual nos faz, de alguma forma, encarar o apocalipse. Não se trata de alarmismo, mas de reconhecer que o mundo que conhecemos não é possível em tempos de isolamento físico. Essencial para impedir o contágio, esse distanciamento inviabiliza a maioria das formas de trabalho que conhecemos, principalmente aquelas diretamente ligadas à produção e viabilidade das nossas formas de vida. O medo da escassez ajuda a promove-la, como se verifica nos avisos que chegam pelas redes sociais de supermercados com as prateleiras vazias ao redor do mundo, falta de produtos específicos (como álcool em gel, máscaras, papel higiênico, medicamentos). Na direção contrária, vários avisos para a população não estocar mercadorias que podem ser essenciais a outras pessoas.

Abundância é utopia. Escassez é apocalipse.

Ou seja, o consumo induzido por pânico agrava a crise. Em tempos de produtividade reduzida, resulta na acumulação de bens essenciais pelos que tem mais facilidade em adquiri-los. Assim o apocalipse não é apenas produzido, mas terceirizado. A classe trabalhadora é a que fica sem álcool, e sem máscara.

E sem ser testada, também. Ao mesmo tempo que uns são testados por precaução, mesmo sem sintomas, outros já morrem trabalhando, sem nem estarem em suspeita de contato com o vírus. A divisão entre os dois grupos é o acesso a serviços de saúde e atendimento preventivo, um corte de classe. O vírus não pergunta CEP. Por isso a terceirização do apocalipse através da proteção individual pode agravar a situação ainda mais. “Fazer a sua parte” é essencial, mas não é suficiente. Mais do que nunca, faz-se evidente a necessidade de saúde pública. Testar a todos para salvar o máximo possível.

Por isso as respostas dadas à crise pelas autoridades públicas são extremamente importantes, em vários níveis. De imediato, agravam-se os efeitos de embargos comerciais desumanos, principalmente nos casos do Irã e da Venezuela. Ficam também evidente a importância de medidas anticíclicas para proteger vidas. Não evidentes apenas para nós, que frequentamos o Esquerda Online. É evidente para o governo Trump, que fala em enviar cheques emergenciais de US$1 mil para a maior parte da população estadunidense, para facilitar as medidas de quarentena. É evidente para a Europa, onde muitos países se mobilizam para proteger os trabalhadores durante a crise, seja através de renda direta, ou proibindo despejos, e cobrança de contas.

Só não parece evidente para um grupo muito pequeno de pessoas, dentre as quais nosso presidente e seu círculo imediato. Pela desfaçatez e irresponsabilidade com que ignoram as recomendações das autoridades sanitárias nacionais e internacionais. E pelo sadismo sociopata com o qual colocam a proteção à propriedade (e ao próprio governo) acima da proteção a pessoas. Interessa mais a Bolsonaro permitir que salários sejam cortados, e mascarar as projeções de mortes, caos na saúde pública, desemprego, e recessão, do que tomar medidas a respeito. 

Até Paulo Guedes parece ter percebido que a situação é excepcional (mesmo sem demonstrar disposição para uma resposta à altura). O crucial está ali: o apocalipse não requer morte em massa, basta que cesse o trabalho. O que falta é perceber que, quando se está às portas do apocalipse, não há condições pra se preocupar com lucro. Basta que a ameaça à sobrevivência coletiva seja uma possibilidade para que o capitalismo se torne o que é: uma brincadeira pueril e cruel, orquestrada pelos poderosos, contra nós. Basta que eles percebam que precisam de nós, para mudarem as regras do próprio jogo. Nesse sentido, Benjamin tinha razão ao corrigir Marx: o ato revolucionário não é a locomotiva da história, mas o freio de mão necessário quando aceleramos rumo ao apocalipse.

Esse apocalipse, diferente do bíblico, pode ser cancelado. Impedir o avanço desta Besta é salvar as pessoas, e não os lucros.

 

Pedro Salgado é Pós-doutorando do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia. Mestre e Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Sussex. Escreve sobre Relações Internacionais, História Global, e Formação do Brasil.