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‘Escassez é um mito vendido caro’: sobre o orçamento público em tempos de pandemia

Elaine Behring

Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Foi presidente da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), na gestão 2009-2010 e do Conselho Federal de Serviço Social (1999-2002). É professora associada da UERJ, na Faculdade de Serviço Social, onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS), e o Centro de Estudos Octavio Ianni (CEOI). Tem publicações na área de política social, orçamento público, fundo público e serviço social.

Andando por Santa Teresa, quando ainda se podia fazer isso, me deparei com este adesivo que dizia “escassez é um mito vendido caro”. Em tempos de fetiche dos mitos mais bizarros, talvez este seja o de consequências mais nefastas, e que adquire uma dramaticidade ainda maior com a pandemia do coronavírus. Este é o mito que o mainstream econômico quer manter a qualquer custo. Vejamos: enquanto a Rede Globo deu espaço ao panelaço #ForaBolsonaro de 18 de março de 2020, dia que seria da greve geral da educação, movimento que se somou aos arrependidos e insatisfeitos das camadas médias brasileiras e de alguns bairros populares, no dia seguinte, 19 de março de 2020 a mesma rede publicou artigo de seu “guru” econômico, Carlos Alberto Sardemberg, em que afirma que se 80% dos recursos federais não fossem para previdência e pessoal, haveria recursos para a saúde. A Globo News fala com muita tranquilidade em cortar salários dos servidores públicos para enfrentar a crise. Já Guedes se supera: para salvar empresas propõe sem pudor cortar 50% dos salários. Ou seja, pegam carona na pandemia para retomar a cantilena neoliberal de sempre e com requintes de crueldade.

Antes dessa situação inédita se instalar, acompanhávamos uma crise política que envolvia a disputa de recursos das emendas parlamentares, o que o Congresso apelidou de “orçamento impositivo”, criado supostamente para evitar o “toma lá dá cá” que vinha marcando a relação entre executivo e legislativo: se vocês aprovam nossas medidas, nós liberamos os recursos. Tudo indica que parte da liberação dos recursos vinha sendo obstaculizada e controlada a mão de ferro, gerando insatisfação da base parlamentar e uma certa insurgência, o que levou, por exemplo à derrubada do veto presidencial sobre o aumento para ½ salário mínimo (SM) do per capita para acesso ao BPC, um importante direito constitucional que vinha sendo orientado por um critério draconiano de ¼ SM per capita, deixando milhões de fora. Ou seja, o laivo de lucidez parlamentar na verdade era apenas um sinal da sua insurgência, e não de seu compromisso – ao menos da maioria dos(as) parlamentares – com “os de baixo”. O governo tratou de mobilizar o TCU contra essa reivindicação histórica dos que militam por uma ampla cobertura da seguridade social brasileira e, numa canetada, a medida está suspensa, mesmo sendo os idosos uma população de risco no contexto da pandemia. O argumento? A responsabilidade fiscal, o teto de gastos imposto pela Emenda Constitucional 95, conhecida pela alcunha de “fim do mundo” ou da “morte”.

É fato: sob seus cortes no contexto da pandemia, o que prolifera é a morte. No dia seguinte da derrubada do veto, os mercados reagiram à “gastança” com queda da bolsa e alta do dólar, com medo de perder sua parte do butim. Sobre o recentíssimo “orçamento impositivo”, temos uma compreensão que se afasta do oportunismo parlamentar. Nossa posição é de que deveria existir orçamento impositivo para políticas públicas estruturantes e centrais, como a seguridade social (previdência, saúde e assistência social) e educação, jamais para emendas parlamentares, que não deveriam sequer existir, sendo todo o recurso público destinado para as políticas públicas, cabendo aos parlamentares aprovar seu montante e monitorar sua alocação nas finalidades previstas. Isso daria um fim ao balcão de negócios no Congresso Nacional. Mas eles querem orçamento impositivo para manter suas relações clientelistas nas “bases”, atendendo a demandas muitas vezes pontuais e desvinculadas das políticas públicas.

De nossa parte, que vimos estudando o orçamento público brasileiro há algum tempo, há algumas pontuações a fazer, além das anteriores. O período da redemocratização tem sido marcado por um ambiente de ajuste fiscal permanente, o que impediu um aporte diferenciado, um boom de recursos e investimento nas políticas sociais, em especial após o Plano Real (1994) e o Plano Diretor da Reforma do Estado (1995) que já responsabilizava os servidores e a previdência por todos os males. A Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), tão incensada quanto perversa, já definia que todas as rubricas do orçamento público poderiam ser contingenciadas, menos a dívida pública e salvo em situações de calamidade pública. Com o golpe de Estado de novo tipo de 2016 e a aprovação da EC 95, entramos num aprofundamento do ajuste conhecido como Novo Regime Fiscal, onde mais uma vez os gastos primários, atacados ao longo de décadas pela figura do superávit primário, foram constrangidos de forma criminosa. Nesse contexto, enquanto permanecemos destinando parcelas crescentes do orçamento público para os credores da dívida pública externa e interna, os serviços públicos que já não andavam muito bem ou avançavam a passos lentíssimos, foram ainda mais erodidos e sucateados. Se a consistência das políticas públicas não se resume ao aporte de recursos, é evidente que com um crescimento vegetativo ou sem eles, tais políticas tendem a se deteriorar. O Sistema Único de Saúde (SUS) se constituiu lenta e vegetativamente no ambiente de ajuste fiscal permanente, e foi invadido pelas parcerias público-privadas, organizações sociais e congêneres. Ele é o que temos para a maioria da população no contexto da pandemia em curso. Uma situação que pega o país no contrapé, diga-se, em pleno ultraneoliberalismo, quando um enfrentamento real da pandemia requisita um aporte inédito de recursos no Estado, no SUS.

E o que o governo anuncia, após uma sucessão de atitudes irresponsáveis, destacadamente dos seus setores mais bufões e pérfidos? A condição de calamidade pública, que permitiria decisões inéditas frente à pandemia, a exemplo de um aporte de recursos substantivo para fazer frente e com muito atraso, ao vírus. E, também, um pacote pífio de medidas para estimular a economia, sempre pela via do consumo, antecipando recursos já previstos para aposentados e pensionistas, mas com pouquíssimos investimentos novos. Dentre estes, R$ 200,00 para desempregados, o que não corresponde à cesta básica e sequer compra o álcool gel inflacionado que está sendo vendido no submundo, intermediado por milícias. A condição de calamidade pública é uma das poucas atitudes razoáveis desse desgoverno, mas o temor é de que esses recursos não sejam destinados devidamente à saúde e ao combate à pandemia, à defesa da vida, mas ao salvamento de empresas na crise que toma ares de recessão profunda, a exemplo do que já foi anunciado para as companhias aéreas e aeroportos privatizados. Os juros, encargos e amortizações da dívida pública, a grande gambiarra de recursos públicos, permanecem intocáveis. E Guedes fala de suas medidas ultraneoliberais – uma contrarreforma administrativa agressiva para com os servidores públicos e uma contrarreforma tributária que privilegia os ricos – como uma tábua de salvação, onde certamente vão caber muito poucos(as). As mentiras dos Sardembergs e Institutos Milleniuns e seus seguidores teimam em sustentar que a previdência e o funcionalismo são as bestas feras a serem enfrentadas, que há escassez de recursos – o mito vendido caro -, e dão sustentação ao “governo que funciona”, na opinião deles, os difusores ideológicos dos humores dos mercados.

Surfando nessa onda capitalista destrutiva e de insensatez, o coronavírus avança: por falta de testagem nos casos suspeitos que saltam aos milhares a cada dia; por falta de cuidados com profissionais da área da saúde, obrigados a trabalhar em condições precárias e desprotegidas; por falta de distribuição de itens básicos de combate ao vírus para a população, em especial trabalhadoras e trabalhadores pobres que vivem nos bairros e favelas; por falta de investimentos em ciência e tecnologia – e ainda assim alguns centros de pesquisa tem feito descobertas importantes, e a Fiocruz trabalha incansavelmente; pela obrigação de milhões a trabalhar, quando deveriam estar em casa; pela ausência de fechamento de fronteiras com os países epicentros da crise; e tantos outros sinais de incompetência, inconsistência e darwinismo social malthusiano em estado puro. Que se faça a “seleção natural” incrementada pelo horror econômico!

Tudo indica que os próximos dias, semanas, serão tristes e duros, mas nada disso é natural. A naturalização é mais um mito a ser posto a nu: a proliferação do vírus e a suposta ausência de planejamento e recursos tem a marca da decadência do capitalismo e seus arautos, que atacam o meio ambiente e a vida das maiorias. Estamos a viver um capítulo inédito da decadência desta forma de organização da vida que coloca o lucro acima de tudo e todos. É disso que se trata, não de escassez e seu remédio, o eterno ajuste fiscal. Portanto, além do necessário #forabolsonaro, panelas, tambores falando da nossa indignação, precisamos de um programa de medidas imediatas e já o temos, na contramão da mesquinhez e do individualismo dos mercados e de seus representantes no atual governo brasileiro. Remeto aqui às medidas preconizadas no Editorial do Esquerda On Line https://esquerdaonline.com.br/2020/03/16/salvar-as-pessoas-e-nao-os-lucros/ , que propõe 15 medidas centrais para o enfrentamento da pandemia, dentre elas a urgente revogação da EC 95 como condição para investir nas políticas sociais. Não podemos circular, devemos nos cuidar! Mas podemos pensar, analisar, utilizar as redes para desmistificar essas pessoas, seus aparelhos de hegemonia, os mercados nervosos e insanos, e este desgoverno, bem como exigir que o orçamento público tenha uma destinação para as maiorias. Assim vamos constituindo o momento após a pandemia, chorando cada vida perdida, mas com altivez e força para a retomada das lutas.

 

 

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