Um micro-organismo letal, uma pandemia de desespero e um presidente que é cego aos problemas reais. Cada um desses fatores é fatal e a combinação é exponencialmente pior. Sim, o novo coronavírus pode ser contido e controlado – fato provado pela China por a mais bê. O desespero popular é resolvido com propaganda e educação públicas, desde que criadas por pessoas competentes. Várias democracias no mundo já substituíram presidentes que só enxergavam problemas imaginários. No Brasil, entretanto, temos o azar de ter de enfrentar os três perigos ao mesmo tempo, sem contar com os inúmeros problemas e perigos que já se tornaram banais.
Amadores e suas comparações
É didático fazermos uma comparação dos números da atual pandemia com outras pandemias e epidemias. Entretanto, as comparações que estão circulando nas redes padecem de dois problemas graves: (1) usam dados medidos de forma muito distinta e (2) partem do pressuposto que as epidemias do passado foram pouco graves.
Primeiro, para comparar medidas de dois objetos, temos que usar a mesma régua. É estupidez dizer que um objeto de três polegadas é maior que um objeto de dois metros. Da mesma forma, dizer que H1N1 é muito menos letal que o covid-19 a partir da taxa de mortalidade divulgado pela OMS, de 0,026%, é igualmente estúpido. Essa taxa foi calculada a partir de uma estimativa do número total de casos, enquanto todas as estimativas de letalidade do covid-19 atuais se baseiam apenas nos casos confirmados.
Segundo, se, por exemplo, a epidemia constante de tuberculose mata cerca de 5 mil pessoas no Brasil todos os anos [8] e causa pouca preocupação, não podemos partir do pressuposto que isso é razoável. Com esse dado, a que conclusão chegamos: que o coronavírus não é tão perigoso e está sendo superestimado, ou que a tuberculose é muito perigosa e está sendo subestimada?
No Brasil, já estamos acostumadas à barbárie! Por isso, antes de questionar as conclusões, questione os pressupostos!
Covid-19
O novo tipo de coronavírus foi descoberto em 27 de dezembro de 2019, em Wuhan, na China, e é muito semelhante ao coronavírus SARS. O SARS surgiu na mesma cidade chinesa em 2002 e causou uma epidemia com 8.098 casos confirmados dois quais 774 (9,6%) resultaram em morte. Em 2012, surgiu outra epidemia de coronavírus no Oriente Médio cujo agente foi denominado coronavírus MERS. Desde então, foram confirmados 2.494 casos de MERS dos quais 858 (34,4%) resultaram em morte. Pelos dados do dia 18/03, na China 69.614 casos confirmados se recuperaram e 3.237 resultaram em morte, ou seja, 4,4% dos casos concluídos (considerando recuperados ou mortos).
O novo SARS não tem a mesma letalidade dos outros dois tipos de coronavírus mencionados, mas possui uma taxa de transmissão bem maior. De fato, esses fatores têm uma correlação: quanto menor a letalidade de uma doença, maior o tempo em que as pessoas permanecem doentes, o que faz com que a taxa de transmissão também seja maior. Além disso, doenças com sintomas mais graves são mais facilmente identificáveis, portanto é mais fácil isolar e impedir a transmissão.
O descaso cobra seu preço
No Brasil, na epidemia de H1N1 de 2009-2010, dos 58.178 mil casos confirmados, 2.135 (3,7%) resultaram em morte. Uma campanha de vacinação em 2010 diminuiu drasticamente a letalidade. A diminuição dessa campanha aumentou gradativamente a mortalidade por H1N1 até 2016, quando foram confirmados 4.581 casos dos quais 886 (19,3%) resultaram em morte.
Esses dados são apenas a ponta do iceberg. Por exemplo, testes sanguíneos demonstraram que, em 2009, o H1N1 infectou entre 20 e 27% da população mundial, mas o número de confirmados foi menor que 7 milhões. Já o número de mortos foi estimado entre 152 mil e 574 mil, ou seja, até 30 vezes mais do que as mortes confirmadas.
Se isso parece ruim, vamos falar da tuberculose. De 2009 a 2017, a cada 100 mil habitantes, entre 34 e 38 foram diagnosticados tuberculose por ano e entre 2,2 e 2,5 diagnosticados morreram da mesma doença. A taxa de letalidade entre confirmados no período oscilou entre 6,2% e 6,6%. Concretamente, isso significa cerca de 5 mil mortes por tuberculose a cada ano. Se isso ocorresse na China na mesma proporção, seriam 35 mil mortes por tuberculose por ano ou 3 mil mortes por mês. Ou seja, a tuberculose mataria, todo mês, quase a mesma quantidade de chineses em toda a epidemia de covid-19 em quase três meses desde que essa doença foi descoberta.
Isso por acaso não demonstra que o Brasil tem empurrado a saúde pública com a barriga? Isso não mostra que, neste país, epidemias ocorrem e causam desastres de morte sem que o povo fique sabendo? Não é uma prova de que o projeto de lei de teto de gastos aprovado pelo Congresso é um crime fatal contra o povo brasileiro?
Exagero não é a preocupação com o coronavírus. Pelo contrário, exagerada é a falta de preocupação com a saúde pública. O resultado dessa equação é simples: surge uma nova epidemia que chega ao conhecimento popular e o povo entra em pânico. A culpa não é do povo, a culpa é do governo e a mídia é cúmplice.
Bolsonarismo e o pânico
Por falar em crime contra o povo, o que dizer sobre as declarações de Bolsonaro de que o coronavírus não é um grande problema? Um presidente que simplesmente dá de ombros só aumenta o pânico e dificulta ainda mais combate à pandemia de covid-19. Tudo que não precisamos nesse momento é de alguém que diga que essa tragédia não é tragédia porque nós já passamos por tragédias piores.
A verdade é que, apesar do Bolsonaro, o Brasil é capaz de combater todas essas tragédias. O povo precisa se mobilizar e exigir que o governo tome medidas concretas sérias para impedir que a pandemia se torne (mais) uma catástrofe de morte.
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