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A dialética das panelas: esquerda, solidão e união em meio ao caos

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Quando ouvi a cidade de noite batendo panelas

(Chico Buarque, em “Pelas tabelas”)

Se é óbvio que as formas não são desconectadas dos seus conteúdos, a relação entre ambos, no entanto, é dialética, e não de identificação mecânica. Chico Buarque já cantou em verso e prosa o batucar das panelas contra a ditadura, as mesmas panelas que foram usadas há poucos anos pelos golpistas saudosistas da mesma ditadura. Criticar o uso em manifestações de objetos sob o argumento de que eles já foram utilizados por nossos adversários é uma postura absolutamente reificadora, fetichista, que toma como inerentes à essência dos objetos características que na verdade lhes são extrínsecas, atribuídas subjetivamente a eles em função das relações sociais (portanto, relações entre pessoas) em que se estão inseridos.

Nesses tempos de confinamento físico e mental, quando formação e propaganda se mostram como as tarefas centrais, e mesmo como as únicas possíveis, boa parte da esquerda, adepta da fugaz e egóica crítica lacradora, deveria se arriscar nos estudos da velha e boa crítica da crítica crítica. A dialética materialista de Marx, Engels, Lenin, Rosa e tantos outros demonstra que em uma sociedade de classes, estruturada pelo antagonismo social de determinação material, o sentido classista das ações é sempre mais importante do que os meios, e sobretudo do que os objetos, dos quais se valem. Afinal, como lembrou o revolucionário Bronstein, morto há 80 anos pelo vírus estalinista que então infectava a esquerda, “o escravagista, que com mentira e a violência agrilhoa um escravo”, não está, “diante da moral, no mesmo plano que o escravo que com a mentira e a violência quebra seus grilhões!”[1] Se não podemos sair às ruas, que gritemos. Se as panelas amplificarem nossa voz, que sejam usadas.

A dialética do século XXI, de fato, ainda vai nos dar muito trabalho, e compreender os sinuosos caminhos pelos quais objetivamente a história é feita, queiram ou não seus agentes, é fundamental. A “solidão em massa”, a qual se referiu certa feita Marx para dar conta da sociabilidade burguesa então ainda em maturação, parece, com essa pandemia viral, ter alcançado sua forma plena, universal, final, e é justamente por isso que, talvez, esteja agora colocada a possibilidade real, mesmo que por ora apenas potencial, de sua superação. A esquerda sempre defendeu ir às ruas para lutar contra o descaso social, mas é justamente quando a impossibilidade de ir às mesmas se faz presente é que tal luta começa a ganhar força. Em função das recentes e profundas derrotas da esquerda e de seu atual estado de indigência, manifestações de rua hoje, se pudessem ser feitas, seriam, acreditamos, incapazes de produzir, no curto prazo, a queda de Bolsonaro. Porém, supomos, elas poderiam ser o ingrediente decisivo capaz de despertar o temor da classe dominante e unificá-la em torno do apoio à indisfarçável ofensiva golpista do presidente bufão. Não seria equivocado ao menos conjecturar que Bolsonaro, em meio a passeatas, conflitos de rua, protestos, eventuais greves em setores estratégicos e agravamento da crise econômica e social, poderia se valer dos atos dos “vermelhos” como forma de conjurar o fantasma do comunismo, do petismo que fosse, para fazer com que, aterrorizada, a burguesia optasse logo por “um fim com terror do que um terror sem fim”. Ocorre, entretanto, que esses atos, protestos de rua e greves são hoje impossibilidades para a esquerda, em grande parte isolada e trancafiada em suas próprias casas, ou então compulsoriamente indo ao trabalho e retornando diretamente para casa, com medo. Nesse cenário, no qual nada de positivo parecia poder acontecer, e onde o candidato à Bonaparte parecia reinar triunfante e desejar mais, eis que a “astúcia da razão” do velho Hegel dá novamente as caras e apresenta novas possibilidades aos sujeitos que já pareciam ter desistido da trama, aos trabalhadores que viam a história passar “por cima de suas cabeças”[2] desde o Golpe de 2016, à esquerda que, até então, depois de ter ido às cordas várias vezes e ter sofrido alguns recentes knockdowns, simplesmente optava por assistir à luta dos outros, à luta dos de cima.

Enquanto a proximidade física entre as pessoas gerava distanciamento subjetivo, indiferença, atomização social, individualismo e apatia, agora, surpreendentemente, o apartamento entre elas – cada uma agora isolada em seu apartamento – parece produzir, de súbito, aproximação mental, coletividade intelectual, união emocional, igualitarismo e energia. O panelaço que hoje inesperadamente quebrou o silêncio ensurdecedor de um país desgovernado e à beira do caos aparece a nós como um fio de esperança, e ele tem que ser agarrado, com força, com serenidade, e com coragem. Se ontem a esperança parecia ausente, hoje ela já aparece, mesmo que por um fio, esse fio de esperança, e desse fio não soltaremos. Ainda estamos na defensiva, não nos iludamos, mas depois desta quarta, depois desse panelaço, já podemos cogitar um contra-ataque, já podemos pensar em voltar ao jogo, mesmo que ainda na retranca, mas “jogando por uma bola”. Curiosamente, e dialeticamente, talvez aquele que teve seu caminho ao poder aberto ao som das panelas possa vir a dele ser retirado sob o mesmo som das mesmas panelas, mas agora “tocadas”, é claro, por outras mãos, aliás, mais habituadas às mesmas. A terra treme, o perigo se aproxima e o medo está no ar, mas a resistência, de tanto resistir, começa a crescer, talvez sabendo que se nada fizer irá, decerto, perecer. Já que não podemos andar, decidimos, então, que vamos às janelas e usaremos as panelas como forma de gritar: “Fora Bolsonaro!”

[1] TROTSKY, L. A moral deles e a nossa. Lisboa: Edições antídoto, 1979.

[2]MARX, K. O 18 brumário de Luís Bonaparte [e Cartas a Kugelman]. Tradução de Leandro Konder e Renato Guimarães. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, p. 67.

Marcado como:
18M / Bolsonaro / panelaço