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Coronavírus: Plano de Guedes não protege o trabalhador informal e de aplicativos

Fernanda Carvalho / Fotos Públicas

Economia para os 99%

É difícil afirmar que o capitalismo deu certo vivendo em um país onde mais de um quarto da população vive abaixo da linha da pobreza. Mas se você fizer parte do “1%” mais rico por que não achar que está “tudo bem, obrigado”? Esta coluna se preocupa com temas econômicos do cotidiano: desemprego, renda, passagem de ônibus, inflação, aposentadoria e um longo etc., mas sempre na perspectiva dos 99%, afinal de contas, nenhuma análise econômica é neutra.

Eric Gil Dantas é economista do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (IBEPS) e doutor em Ciência Política. É militante da Resistência/PSOL.

Cada vez mais vivemos em uma economia informal e sem proteção. Se contabilizarmos o trimestre de novembro de 2019 a janeiro de 2020, a partir dos dados da PNAD-IBGE, enquanto que 33,71 milhões trabalham formalmente com carteira assinada, temos outros 36,25 milhões de trabalhadores privados sem carteira ou que trabalham “por conta”. No primeiro dado disponível para esta série histórica, de maio a julho de 2016, estes valores eram inversos, enquanto que 34,3 milhões trabalhavam na iniciativa privada com carteira, 32,8 milhões trabalhavam por conta ou sem carteira.

Gráfico 1 – Somatória de trabalhadores privados sem carteira de trabalho e trabalhadores por conta própria por trimestre

Fonte: PNAD/IBGE

A formalidade não é um fetiche do trabalhador, que, por um capricho, quer uma carteira de trabalho para colocar no bolso. A informalidade carrega uma série de fatores negativos, como menor renda, instabilidade, condições precárias de trabalho, etc.. A nova situação econômica mundial põe em xeque mais uma vez o novo modus operandi do mercado de trabalho brasileiro, que a isto ainda acrescentaria o trabalho intermitente, criado pela Reforma Trabalhista, e que pode ser classificado como uma semi-informalidade – que, segundo dados do DIEESE, em média o trabalhador intermitente, em 2018, foi remunerado o equivalente a 57% de um salário mínimo e garantiu trabalho apenas por 5 meses no ano.

E a tudo isto ainda se soma a fraca organização política, não tendo forças para reivindicar proteção para si. A inexistência de sindicatos, associações ou qualquer tipo de organização corporativa, faz com que o governo – com o agravante deste governo ser um verdadeiro capacho empresarial – olhe com um grande desdém para esta parcela dos trabalhadores.

Isto ocorreu mais uma vez nesta segunda-feira, 16, quando o ministro Paulo Guedes anunciou uma série de medidas para “conter” a crise econômica causada pelo Covid-19.

Segundo anúncio do governo, Guedes preparou um pacote de R$ 147,3 bilhões contra a crise. No entanto, quase tudo isto, na verdade, são adiantamentos ou prorrogações de pagamentos e recebimentos. Ou seja, o pacote não tem quase nada de “estímulo”.

Em dez pontos, o governo prometeu:

(i) adiar prazo de pagamento do FGTS por três meses (com valor estimado de R$ 30 bi);
(ii) pagar primeira parcela do 13º de aposentados e pensionistas do INSS em abril (R$ 23 bi);
(iii) pagar segunda parcela do 13º de aposentados e pensionistas do INSS em maio (R$ 23 bi);
(iv) diferir parte da União no Simples Nacional por três meses (R$ 22,2 bi);
(v) transferir valores do PIS/Pasep para o FGTS, para novos saques (R$ 21,5 bi);
(vi) antecipar pagamento do abono salarial para junho (R$ 12,8 bi);
(vii) dar crédito adicional do Proger/FAT para pequenas e microempresas (R$ 5 bi);
(viii) destinar saldo do fundo do DPVAT para o SUS (R$ 4,5 bi);
(ix) incluir mais 1 milhão de pessoas no Bolsa Família (R$ 3,1 bi); e
(x) reduzir 50% nas contribuições do sistema S por três meses (R$ 2,2 bi).

Poderia discorrer aqui sobre os limites, efeitos e vieses deste pacote, mas quero focar aqui na total ausência de preocupação com os trabalhadores mais frágeis neste período de crise, citado no início deste texto.

Alguém desavisado poderia dizer que o Bolsa Família daria conta de parte desta população. Então aumentar em 1 milhão os beneficiários (que seria apenas o suficiente para voltar ao patamar de benefícios de um ano atrás, como podemos ver no gráfico 2, quando a crise econômica estava bem menor) os contemplaria. Lembremos que o critério de recebimento do Bolsa Família é que uma família seja classificada ao menos como em situação de pobreza, o que no Brasil é quem recebe em termos per capita o valor de R$ 178. Um trabalhador do setor privado sem carteira recebeu, em média, R$ 1.470, de novembro a janeiro de 2020, enquanto que o trabalhador por conta própria recebeu uma média de R$ 1.734 (se considerarmos os trabalhadores por conta sem CNPJ este valor vai para R$ 1.355). Em termos per capita este trabalhador recebe mais do que o dobro do exigido por este benefício. Ou seja, em nada tem a ver o aumento do Bolsa Família com a proteção para este tipo de trabalhador.

Gráfico 2 – Número de beneficiários do Bolsa Família em dezembro de cada ano (em milhões)

Fonte: Ministério da Cidadania

Estamos falando de trabalhadores de aplicativo (Uber, 99, Ifood, Rappi, etc.), de pessoas que vendem produtos em ruas ou feiras, de pedreiros, diaristas, atendentes de bares e várias outras profissões que grande parte não assinam carteira. Enfim, de pessoas que se não trabalharem de dia não comem a noite, se não trabalharem uma quantidade mínima de dias no mês não podem pagar o aluguel.

Se uma política econômica anti-crise não contempla essa parcela, não contempla metade da classe trabalhadora brasileira. Além de exigirmos a formalização destes trabalhadores, também devemos exigir que emergencialmente seus verdadeiros empregadores e o governo banquem os dias que eles não possam trabalhar.