*Texto contem spoiler
Ken Loach é um cineasta comprometido com as causas dos trabalhadores. No filme “Você Não Estava Aqui”, basicamente, sua proposta é nos incomodar. Abalar nossas convicções sobre as supostas maravilhas da tecnologia, da uberização do trabalho e da nossa pretensa e ingênua noção de liberdade.
O filme apresenta o cotidiano de uma família, na Inglaterra, que sofre o peso da crise econômica e das inovações da chamada Gig Economy, o mercado de aplicativos que passa a ditar a dinâmica do trabalho precarizado. De fato, o cineasta Ken Loach e o roteirista Paul Laverty conseguem nos angustiar demonstrando como essa forma de trabalho uberizado tornam Ricky Turner (Kris Hitchen), sua esposa Abby (Debbie Honeywood) e toda a família vítimas da desumanização causada pelo trabalho.
Ricky é o típico trabalhador inglês que perdeu o seu emprego no contexto da crise econômica de 2008, e encontra como grande solução para as suas dificuldades financeiras tornar-se um “autônomo”, prestando serviços a uma empresa de entregas, ao estilo da Amazon. Seu parceiro-patrão afirma pouco antes de começarem a suposta relação de cooperação: “você não é contratado, você embarca. Você não trabalha para nós, trabalha conosco. Você não dirige para nós, presta serviços”. Ao mesmo tempo sua esposa, Abby (Debbie Honeywood), vive dilemas semelhantes como prestadora de serviços, cuidando de idosos e enfermos.
Ricky e Abby são dominados por uma forma de trabalho que exige pontualidade absoluta, escalas de trabalho aleatórias, imposição dos gastos referentes ao exercício do seu próprio trabalho e metas de produtividade em detrimento de suas vidas. O que parecia liberdade, se mostra um martírio high tech. Ricky se vê obrigado a trabalhar 14 horas, não apenas para garantir o sustento, mas para custear o seu “empreendimento”. Se a tecnologia cumpre o papel de aprisioná-los ao trabalho, a ideologia do empreendedorismo obscurece os verdadeiros responsáveis por esses meios de exploração. Assim, sob o manto da culpa liberal, o cansaço, a doença física e psicológica, as brigas familiares, o desamparo social, em favor do imperativo do lucro das empresas, o filme vai nos mostrando os elementos por trás desse tipo de trabalho. É a exposição crua da exploração, mas ao mesmo tempo, da própria condição de subjugação e autoconvencimento dos trabalhadores a essa lógica. É a alienação do trabalho, no sentido marxiano, no plano histórico do trabalho uberizado no século XIX. Pois, quanto mais trabalham, mais as relações de afeto vão se deteriorando entre a família, mais vão tornando-se mercadoria. O incomodo vai numa escalada de desespero, justamente pela realização desse processo: quando Rick só enxerga como saída para os seus problemas trabalhar mais e mais, mais os problemas se ampliam. Além da família que vai se desumanizando, na medida em que entram nesse tipo de trabalho, as relações de solidariedade entre os trabalhadores também são afetadas. A competição torna-se o único meio de aumentar o salário, o que significa trabalhar ainda mais, em detrimento de qualquer união por direitos trabalhistas. Lógica esta que logo cobra o seu preço sobre Rick. Assim, a tecnologia pretensamente libertadora é desmistificada, mostrando o quanto o trabalhador torna-se um patrão cruel de si mesmo, orientado por uma tecnologia que cabe no bolso; que monitora cada passo, que conta o tempo que Rick fica fora do carro, que o impede de levar a filha ao seu trabalho, que o faz urinar numa garrafa para que suas entregas sejam mais rápidas.
A forma como a narrativa é desenvolvida demonstra as contradições deste sistema, de modo que, cada membro da família, nos revela, não apenas o drama das situações cotidianas, mas também os germes de resistência. Se Rick, por exemplo, representa o trabalhador médio atual, que acredita piamente que é um empresário empreendedor e, ao mesmo tempo, sofre com as consequências desse tipo de trabalho; o restante da família seria a expressão da contradição a esse tipo médio. Abby, ainda que seja obrigada a trabalhar nesse regime uberizado, resiste a aceitar seus desmandos quando se nega a tratar os idosos e enfermos como “clientes”. Não aceita desumanizá-los. Ela busca desesperadamente uma forma de conciliação, não aceita perder os laços da família. Já o filho, Seb (Rhys Stone), busca um destino de vida diferente daquele ao qual seu pai foi condenado, por meio do grafite e da recusa à escola. Torna-se violento como negação de um futuro que não quer viver. Enquanto isso, a filha, Liza Jane (Katie Proctor), busca se aproximar do pai e impedir que ele continue trabalhando na empresa de transportes.
Seb e Liza são expressões de um inconformismo da juventude, mas que, ao mesmo tempo, ainda é limitado pelas suas circunstâncias históricas. Parecem resistir, mas as soluções são provisórias e reativas apenas, não se apresentando como uma alternativa real aos desesperos que vivem. Por um lado, Liza é o grande elemento de esperança do filme. Ela é a mais inteligente, que está disposta a ver por trás das aparências. Docemente lembra ao seu pai que existe alguém que controla os algoritmos; o seu trabalho é penoso por alguém está ganhando com ele. Ela é a resistência, a esperança, contra a desumanização que sofre. Ela desnaturaliza a tecnologia, seu pai a admira, mas ele ainda não se convence. Ela apenas quer a sua família de volta. Por outro, Seb representa a resistência que afronta de forma violenta o sistema, mas ainda sem qualquer base mais estratégica de resolver seus dilemas.
Eles querem sonhar, amar, conviver com os seus entes familiares e amigos. Não querem fazer parte desse jogo e resistem à sua maneira. Representam, de certa forma, as aspirações ainda frágeis e inexperientes da classe trabalhadora ao modelo de trabalho uberizado. Uma reflexão sobre as formas ainda “jovens” de resistência dos trabalhadores, no que se refere ao enfrentamento desse tipo específico de exploração sobre o trabalho, que, se ainda limitadas, nem por isso, são ausentes de esperança e ímpeto transformador.
“Você Não estava Aqui” é eloquente, sensível e profundo no esforço de desconstruir o fetiche da mercadoria, sua lógica alienada e desumanizadora. Nos inquieta a repensar nossa pretensa condição de liberdade consagrada por celulares e aplicativos. O filme nos emociona, ainda que, prioritariamente, pela angústia. Ele nos incomoda a ponto de nos olhar os trabalhadores ao nosso redor de outra forma e de repensar nossa própria condição. Sem dúvida, a comida delivery terá outro gosto e as viagens no Uber terão outro clima. Esse filme nos inspira, ainda que seja pelo choque. Talvez porque Ken Loach esteja disposto a confrontar um poderoso consenso coletivo sobre as maravilhas do trabalho uberizado, que ainda é forte demais para ser derrubado, mas, nem por isso, deixa de ter suas contradições e possibilidades de superação. Que o incômodo se torne ação!
*Diretor da Aduff-SSind – Associação dos Docentes da UFF e professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF)
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