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Trotsky, burguesias retardatárias e a contrarrevolução preventiva: algumas notas históricas

Anderson Riedel/PR

Jair Bolsonaro cumprimenta Paulo Skaf, Presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP)

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Dir-se-ia que nasceram condenados a não serem nunca os primeiros a começar qualquer coisa, limitando-se a secundar os outros, a viver dependentes da sua vontade, a bailar conforme outros tocam; o seu destino…é cumprir o dos outros”
(Dostoievsky, em “Memórias da casa dos mortos”)

Aproveitando-se das chamadas “vantagens do atraso”, que se expressam principalmente pela possibilidade de “saltar etapas” no processo de industrialização, nações tardias como a Alemanha Itália e Japão tornaram-se econômica, política e militarmente fortes o suficiente para se lançar de cabeça na corrida imperialista. Aliás, é a própria elevação dessas nações à condição de conquistadoras em potencial das áreas “coloniais” e “semicoloniais” que marca o início mesmo, se é que se pode assim dizer, do fenômeno imperialista. Em resumo: as nações tardias, mesmo tendo realizado suas modernizações industriais com um atraso significativo se comparadas a nações como Inglaterra, França, Bélgica e até mesmo Estados Unidos, as realizaram em um momento no qual o proletariado não era ainda um sujeito político totalmente independente na luta de classes, como o viria a ser em breve, e quando a divisão do mundo entre as grandes potências imperialistas ainda não atingira uma configuração muito bem delimitada. Se, por um lado, o caminho democrático-revolucionário mostrou-se impossível de ser trilhado pelas burguesias tardias, a transição ao moderno capitalismo industrial e a ruptura, mesmo que parcial, com a velha ordem política ainda puderam ser feitas sem que a revolução proletária se tornasse iminente, e a tempo de incluir as nações tardias no rol das potências imperialistas.

Restou a essas nações assumir uma condição indiscutivelmente “colonial” ou “semicolonial” no sistema mundial de Estados.

Desse modo, o fardo do atraso cairia, porém agora de modo inescapável, sobre as costas das burguesias que somente em fins do século XIX “deram as caras” na cena histórica. Retardatárias não só em relação às burguesias dos países originários do capitalismo (Inglaterra, França, Bélgica e Estados Unidos), mas também em relação às burguesias tardias (Alemanha, Itália, Japão), essas burguesias que aqui denominamos de hipertardias não só se mostraram incapazes de realizar uma revolução “democrática”, como também se viram durante um bom tempo absolutamente subordinadas na esfera política às antigas classes dominantes, de origem agrária. No que diz respeito ao peso econômico e político destas burguesias no sistema mundial de Estados, pode-se dizer que nenhuma delas possuiu a capacidade de atribuir às suas nações um papel de protagonista na trama imperialista; na enorme maioria dos casos, entretanto, o que restou mesmo a essas nações em questão foi assumir uma condição indiscutivelmente “colonial” ou “semicolonial” no sistema mundial de Estados.

Arriscando-nos a afirmar a existência de uma espécie de “ranking do atraso” na “teoria da história” de Trotsky, podemos apresentar enquanto pertencentes ao “grupo” das burguesias hipertardias aquelas classes proprietárias industriais que apenas sob a fase monopolista do capital tornaram-se econômica e politicamente relevantes em suas nações, isto é, aquelas burguesias que só passaram a existir enquanto classes de fato quando o fenômeno imperialista já se fazia presente. Em função do demasiado atraso histórico com o qual surgiram, essas burguesias se depararam com dois elementos centrais que determinariam a trajetória politicamente contrarrevolucionária e economicamente subalterna, a qual estariam destinadas a cumprir ao longo do século XX: a existência, no plano mundial, de um proletariado politicamente independente e substancialmente temperado em suas cruentas lutas desde 1848, e a configuração de uma ordem mundial imperialista, na qual se destacavam como potências expansionistas tanto as nações originárias do capitalismo, quanto as tardias.

Contrariamente ao que fizera a clássica burguesia francesa (em particular sua ala jacobina), as burguesias tardias viram-se impedidas de, em seus respectivos países, conduzir a “Nação” (o “povo”) em uma caminho revolucionário-democrático voltado para a destruição dos antigos privilégios feudais. O modo conciliatório e profundamente antipopular pelo qual se deu politicamente a passagem a uma sociedade industrial moderna nos países tardios foi resultado, antes de qualquer coisa, da já substantiva presença de um novo sujeito social no interior dessas formações sociais: o proletariado. Contudo, se o proletariado não era mais socialmente insignificante como à época do jacobinismo francês, a ponto de permitir a direção política burguesa sobre aquilo que se denominava “Nação” (o “terceiro Estado”), este ainda não possuía condições políticas que lhe possibilitassem seguir um caminho independente da própria classe burguesa, à qual se opunha na vida econômica diária. Acerca da revolução alemã de 1848, constatou Trotsky:

“O proletariado era demasiado débil, se encontrava sem organização, sem experiência e sem conhecimentos. O desenvolvimento capitalista havia progredido o suficiente para fazer necessária a abolição das velhas condições feudais, mas não tão suficiente para permitir que se destacasse a classe operária – o produto das novas condições de produção – como uma força política decisiva. O antagonismo entre o proletariado e a burguesia havia se desenvolvido demasiadamente no marco nacional da Alemanha para que ainda fosse possível à burguesia figurar intrepidamente com o papel de protagonista nacional; mas não havia se desenvolvido tanto para que o proletariado pudesse tomar para si esse mesmo papel.” (TROTSKY, L. L. Resultados y perspectivas. Buenos Aires: El Yunque Editora, 1975, p. 32. Tradução nossa.)

Entretanto, as décadas que separaram as modernizações industriais dos países tardios da dos países hipertardios foram suficientes para que o proletariado pudesse caminhar por suas próprias pernas. Mesmo derrotada, a Comuna de Paris de 1871 havia servido de exemplo para toda a burguesia mundial no que diz respeito à potencialidade revolucionária do proletariado. A transformação dos trabalhadores em uma classe politicamente independente e disposta a lutar violentamente pelo fim da propriedade privada fez com que, em escala mundial, a burguesia passasse a ser abertamente contrarrevolucionária. Foi nesse contexto internacional determinado essencialmente pelo antagonismo entre revolução proletária e contrarrevolução burguesa que as classes industriais das nações hipertardias subiram ao palco da luta de classes.

Segundo Trotsky, num contexto histórico no qual a burguesia, enquanto classe internacional, já agia politicamente guiada pelo signo da contrarrevolução, não restaria a essas burguesias temporãs nada mais do que se portarem de um modo claramente contrarrevolucionário. Nota-se aqui a perspectiva totalizante e internacionalista que vertebrava o raciocínio do revolucionário russo: mesmo que os proletariados dos países hipertardios não tivessem ainda um peso social expressivo e, consequentemente, uma política revolucionária, fazia-se necessária às burguesias desses países, em função de serem parcelas nacionais de uma classe internacional que já se enfrentava irreconciliavelmente com outra classe internacional (o proletariado), a adoção, mesmo que em muitos casos de um modo apenas preventivo, de uma política abertamente contrarrevolucionária. Para Trotsky, como é possível notarmos, é a inserção no todo que, dialeticamente, determina muito da dinâmica social das partes.

A burguesia, recém-surgida, percebia-se, então, frente a frente com seu antagonista histórico antes mesmo de ter amadurecido econômica, política e culturalmente enquanto classe.

Além dessa determinação “externa” na política das burguesias hipertardias, devemos chamar a atenção para o fato de que a própria dinâmica de industrialização das nações atrasadas (que, por sua vez, é também “externamente” determinada) ensejou uma correlação de forças, em termos mais estruturais, favorável ao proletariado. A “queima” de etapas presente no processo de modernização capitalista industrial dessas nações acabava por originar um crescimento rápido do proletariado e a sua concentração em grandes fábricas que operavam a partir das inovações técnicas mais recentes no plano mundial; a burguesia, recém-surgida, percebia-se, então, frente a frente com seu antagonista histórico antes mesmo de ter amadurecido econômica, política e culturalmente enquanto classe.

Essa situação social de temor do proletariado na qual se encontraram as burguesias hipertardias – situação essa constituída tanto pela etapa histórica da luta de classes na
esfera mundial, quanto pelo desenvolvimento desigual e combinado que se faz presente nas industrializações retardatárias – explica, em grande parte, não só a incapacidade revolucionária por parte dessas burguesias (tal como no caso de suas irmãs do meio, as burguesias tardias) como também a sua subordinação completa às formas de poder político de natureza autocrática, correspondentes muitas vezes a um período histórico pré-capitalista – como, por exemplo, no caso da Rússia.

Para Trotsky, na modernização capitalista dos países mais atrasados verificava-se, com toda a clareza, não só a dissociação completa entre desenvolvimento industrial e revolução “democrático-burguesa”, como também a sua associação inquebrantável à contrarrevolução política efetivada por parte das burguesias nativas, o que abria caminho ao bonapartismo e a outras formas de dominação política não norteadas pelo ideário do liberalismo político. Seja abraçando e revitalizando instituições tirânicas de matriz aristocrática, seja optando pela implementação das formas repressivas mais modernas de regime político existentes no cenário mundial – e normalmente combinando aquelas com estas – as burguesias hipertardias estiveram estruturalmente impossibilitadas de instaurar, a não ser de modo parcial e efêmero, regimes políticos democrático-liberais. Vale registrarmos o caso das modernizações industriais ultra-retardatárias ocorridas nos países latino-americanos (que se deram, de modo substancial, apenas a partir da crise de 1929), quando algumas burguesias nativas implementaram formas autocráticas de dominação política que mesclavam tradicionais traços autoritários das suas formações socais a novos expedientes ditatoriais, então em voga na Europa. Não por acaso, Vargas e Perón, por exemplo, estiveram à frente de regimes bonapartistas que, preservando algumas estruturas tradicionais de dominação, sobretudo no campo, continham traços da mais moderna experiência ditatorial da Europa de sua época, o fascismo.

Na obra de Trotsky, a saga trágica da burguesia russa adquire um caráter paradigmático no que diz respeito às (im)possibilidades políticas das classes proprietárias industriais que muito tarde fizeram-se presentes historicamente. Deparando-se, praticamente desde seu alvorecer, com operários que a ela se “opunham rancorosamente na vida cotidiana e que, muito cedo, aprenderam a dar um sentido mais geral aos seus objetivos”, a burguesia russa, hipertardia, viu-se incapacitada de protagonizar até mesmo qualquer tarefa de cunho “reformista”. A presença do proletariado a levou a reforçar ainda mais seus laços com a nobreza proprietária, cerrando fileiras com ela na defesa da inviolabilidade da propriedade privada. Fraca, temerosa de qualquer abalo social, organicamente atrelada à aristocracia e economicamente dependente do Estado promotor da industrialização, a burguesia russa não teve outra escolha senão a de, docemente constrangida, submeter-se a uma estrutura política de cunho medieval, o absolutismo czarista.

O caso das burguesias latino-americanas também pode ser tomado na obra de Trotsky enquanto exemplo da natureza política abertamente contrarrevolucionária das classes industriais hipertardias.

O caso das burguesias latino-americanas também pode ser tomado na obra de Trotsky enquanto exemplo da natureza política abertamente contrarrevolucionária das classes industriais hipertardias. Ainda mais retardatárias do que a burguesia russa, e também subordinadas às classes dominantes rurais e aos Estados-sujeitos da modernização capitalista, as burguesias industriais latino-americanas assistiram, em função da “queima” de etapas constituinte da dinâmica industrial das nações atrasadas, a um crescimento extremamente acelerado de “seus” proletariados. A existência, nas sociedades industriais em formação na América Latina, de uma correlação de forças relativamente favorável aos trabalhadores, gerada, precipuamente, por essa desproporção de peso social entre as classes fundamentais da cena política, fez com que as burguesias nativas lançassem mão, quase que constantemente, de regimes não democráticos como forma possível de dominação política de classe.

A história latino-americana do século XX, até pelo menos meados da década de 1980, foi uma prova incontestável da validade do raciocínio de Trotsky no que se refere à relação, inversamente proporcional, entre desenvolvimento industrial capitalista e democracia burguesa nas nações atrasadas. Se nos últimos 30 anos, quando regimes democrático-liberais, conquanto limitados, grassaram no continente, tal raciocínio deu a impressão de, obsoleto, ter sido guardado nos arquivos empoeirados da teoria revolucionária, a conjuntura atual nos obriga a de lá, mais uma vez, retirá-lo.