Pular para o conteúdo
MOVIMENTO

A memória que dói: Uma crônica da votação da Reforma da Previdência de São Paulo

Caio Nogueira de Abreu*, de São Paulo (SP)
João Zafalão

O dia nublado parecia um triste alento: não ficamos expostos ao sol por horas, e olhar para o céu era mais fácil. Mais só por que conseguíamos ver melhor os projéteis que vinham em nossa direção. Estouros, bombas e explosões de certa forma rimavam com o ambiente destacado da capital paulista, no parque Ibirapuera; em espaços amplos, vemos os indígenas que empurram, a primeira missa, Cabral de braços abertos, e o obelisco. Monumentos que exaltam a memória e os interesses de uma elite que atacava o povo de dentro de uma acovardada Alesp. Era o futuro em jogo, a aposentadoria dos servidores contra os interesses dos investidores. O povo, que do lado de dentro e de fora protestava com a força de suas convicções sofria com uma tropa de choque cheia de balas, gases e bombas, que se impregnavam nos narizes, olhos, no corpo, nos pulmões, e na memória.

Lembrar dói, sonhar não.

Lembrar dói não  por que lembramos de uma memória construída, fabricada. Lembrar dói, por quê a dor se prolonga pela história, e apesar de transformada, se faz sentir naqueles que a sentem. Acredito que os que sentem essa dor da memória é que estão do lado certo, por quê apesar de doída, ela nao é esquecida, e ainda que de uma forma contraditória, e em certa medida inexplicável, é um combustível que move os sonhos.

Uma das coisas mais impressionantes em todas as lutas(principalmente as derrotadas), é que sempre dói, mais nunca pára. Toda luta é movida por um ânimo que começa no estômago e se complementa no sonho.

A memória e o sonho são separados por um suspiro profundo, que liga um ao outro, se retroalimentam e desembocam na vida, no existir da humanidade.

Hoje guardaremos na memória uma derrota, cuja dor se propaga no corpo, na mente e no peito, e cujo efeito será sentido em próximos longos anos. Mas hoje guardaremos também a memória de que, se caímos, foi de cabeça erguida, honrando nosso sonho. Nada, absolutamente nada apaga nossa luta, nem monumentos nem discursos.

No final, o dia nublado se transformou naquela fina garoa paulistana que se entranha nos nossos ossos e fez doer nossa tristeza. A “casa do povo”, voltou a ser cercada e guarnecida pelos monumentos aos heróis colonizadores, pela memória que não dói, ao invés dos covardes fardados. Talvez os deputados da Alesp um dia sejam lembrados em nomes de avenidas, com bustos de cobre e bronze, dos quais, apesar de expostos, ninguém vai se lembrar, ou saber quem são. Já a dor que causaram… essa vai servir para explodir de sonhos nos que sentem a memória que dói.

*Caio Nogueira de Abreu é professor da Rede Estadual e militante da corrente sindical Travessia