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MUNDO

Nicolás Maduro: Dormindo com o inimigo? (Parte 3)

Leia a última parte da série publicada nos 28 anos do levante militar de Chávez contra o neoliberalismo, em 4 de fevereiro de 1992

Elio Colmenarez, de Caracas, Venezuela

Burocracia corrupta e neoliberal

Não está longe da verdade o clamor popular que indica que a alta burocracia do governo fez negócios escusos com a guerra econômica, mas o mais grave é que os grupos de mais peso na tomada de decisões econômicas do governo têm um projeto que não é socialista, e sim neoliberal. Não se trata do discurso, que convenientemente mantém uma identificação com Chávez e com o socialismo. São os quadros de uma burocracia nascida na revolução, mas crescida sob a sombra e ar-condicionado dos escritórios de governo, muito longe dos quadros que se construíram na mobilização e trabalho nos bairros, nas fábricas e comunidades camponesas. Com uma ampla formação acadêmica, uma tecnocracia a quem, citando um dirigente camponês, “falta ignorância”, e cuja formação é o neoliberalismo que pulula nas salas de aula das universidades, e não o socialismo que se debate na rua.

Ainda no ano 2018, depois da derrota da guarimba, diante do desastre econômico que a aprofundava a crise interna, Maduro anunciou que a única saída possível era acelerar a construção do socialismo, que a crise não era do modelo socialista, e sim do rentismo capitalista. Mas nos corredores do governo, a tecnocracia demonstrava a tentação por medidas de corte neoliberal. Frases como “é necessário desmontar a rigidez do sistema laboral”, “a estabilidade no emprego é uma âncora para as empresas”, “criar condições de investimento”, “os controles de preços são anacrônicos”, “concentrar o crédito em quem possa produzir e pagar, e não dispersá-lo”, “restringir o custo do Estado”, “os serviços não podem continuar sendo subsidiados”, “as empresas não rentáveis do estado devem ser privatizadas”, “as empresas e terras expropriadas improdutivas devem ser fechadas”, “é necessário atrair o investimento estrangeiro nas empresas do estado”, que eram impronunciáveis durante os anos anteriores, percorrem os corredores do governo, raramente gerando o debate político correspondente.

A duríssima situação econômica, sobretudo nos anos 2017 e 2018, significou um retrocesso diante da necessidade de resolver questões tão básicas como levar comida para casa, muitas vezes de forma individual, por causa da desorientação do governo em matéria econômica. Todo o esforço organizativo da população se centrou na formação dos CLAP e na distribuição de alimentos. Em bem poucos lugares se honrou o P (produção) dos CLAP. Apesar das instruções de Chávez e do discurso de Maduro e da direção do PSUV, a resposta à guerra econômica não foi mais revolução, mas, concretamente, sua paralisação.

A guerra econômica significou uma deterioração e quase desaparição de muitas das missões sociais e dos programas, ao se tornarem impossíveis. A ação do governo foi quase nula, e o retrocesso social foi acompanhado de um retrocesso político, o que se reflete no cansaço de vinte anos de luta que, diferentemente dos anos anteriores, não parece ter uma meta. Mas, citando Maduro em um recente discurso, “nem tudo o que acontece é culpa de Trump”. Embora ele se referisse à eficácia do governo, o problema é mais da política. O governo passou do abandono da construção do socialismo que caracterizou os anos mais duros da guerra econômica, ao desmantelamento, por apoio ou omissão, das conquistas da revolução bolivariana.

Não há dúvida de que a ameaça imperialista e o recolhimento político da revolução diminuiu a efetividade do controle social que a mobilização popular impunha à ação do governo. São poucos os dirigentes de governo que participam das assembleias de base. Alguns nem mesmo saem dos corredores do alto governo. Nas passeatas já não se veem os membros do governo, exceto aqueles que são dirigentes do partido. A migração de quadros técnicos e profissionais para o exterior e o recuo político de muitos outros permitiram a ascensão de uma tecnocracia antipolítica (em que pese serem furibundos chavistas) aos postos médios do governo, associando-se à camarilha que detém o poder nos ministérios.

Mas a consequência disso na política econômica foi mais desastrosa, ao se passar do não fazer nada a fazer neoliberalismo. Desde 2018, foi imposta uma restrição salarial no setor público, que o transformou de marcador do salário nacional durante mais de quinze anos para ser o pior pago, recrudescendo a fuga de quadros técnicos e profissionais que a migração provocou. A restrição ao gasto público afeta os programas sociais, mas, apesar disso, são feitas construções e remodelações obviamente inúteis, assim como compra de veículos e gastos supérfluos vinculados aos negócios da burocracia.

A paralisação do aparato produtivo e a compressão do estatal, combinados à necessidade de buscar formas de obter formas de ingresso para um salário insuficiente, afetam a mobilização política. A pesar do forte subsídio nos serviços que permitem que uma família tenha água, eletricidade, gás e gasolina pagando menos de 25 centavos de dólar por mês, e da distribuição de alimentos básicos por meio dos CLAP, uma única refeição na rua pode custar 20% do salário médio pago a um funcionário público. A entrada das remessas enviadas pelos que migraram ao exterior por três vias (bolívares através do mercado negro bancário, dólares pelos “caminhos verdes” [NT: rotas de contrabando] ou envios de produtos), provocou uma migração do trabalho produtivo para o comércio legal ou ilegal, para se conseguir renda. Uma venda de hortaliças em uma rua de Caracas pode dar mais dinheiro em um mês que o trabalho de um engenheiro funcionário de empresa estatal. É a desvalorização da remuneração do trabalho em relação à do capital. Isso não é um problema econômico, mas político.

A crise do trabalho produtivo e a ineficiência da burocracia nas Delegacias de Trabalho, praticamente desmanteladas, permitiu à burguesia retomar o controle das relações de trabalho, que havia perdido em meio à ofensiva da classe operária. Foi imposta a relação individual sobre a coletiva. O patrão escolhe quem ele vai pagar para que fique e quem deixa que vá embora; as estruturas salariais são impostas individualmente e alguns empregados são pagos em dólares. As principais conquistas trabalhistas da revolução – a coletividade dos direitos, o salário integral, o salário social, a estabilidade, a desterceirização, a jornada de trabalho estrita, o direito ao descanso etc. – estão desaparecendo na prática. A LOTTT (Lei Orgânica do Trabalho dos Trabalhadores e Trabalhadoras), segundo Chávez a mais importante lei social depois da Constituição, hoje é letra morta. Novamente, não se trata de um fato econômico, é político.

Mas não se trata apenas de omissão do governo. O governo passou da permissão de uma paulatina dolarização da economia, na qual a distribuição de muitos produtos provenientes da importação legal ou ilegal fixava seu preço em base ao valor diário do dólar paralelo, ou às vezes diretamente em dólares, a tomar medidas destinadas à captação de dólares de uma economia invadida pelas remessas e pelo financiamento da guerra econômica. Isso produziu uma legitimação da dolarização da economia, visível não apenas na marcação dos preços em dólares na maioria das lojas de produtos importados, mas também pela transposição da dolarização a setores do comércio que são alheios ao mercado importador, tornando a moeda nacional quase inútil. Não se trata de um problema econômico, trata-se da independência nacional, de política.

Os dirigentes do setor camponês e das comunas vinculados aos projetos econômicos da economia comunal denunciam como o grosso dos créditos foi para o latifúndio e para a empresa privada, enquanto os projetos em mãos das organizações populares continuam tendo dificuldades para o acesso ao crédito e aos insumos para a produção. Um exemplo é que enquanto dezenas de empresas produtoras de massa, do circuito de economia comunal, estão paralisadas porque não têm acesso ao crédito e lhes é difícil obter ou não lhes destinam quotas do trigo importado pelo Estado e, quando produzem, têm problemas de distribuição, as empresas privadas produtoras de massa obtiveram dólares para a importação de insumos, recebem com regularidade suas quotas de trigo, ou o obtêm do mercado negro, e conseguem incorporar parte de sua produção aos sistemas de distribuição de alimentos para os CLAP. Não se trata de omissão, é uma agressão à economia comunal.

Somente a distribuição de alimentos garante a disponibilidade de mais de 10 milhões de quilos de massa mensalmente, que pode e deve ser produzida pela economia comunal, e isso é o que significa política revolucionária. Não pode ser que uma política social concreta, a distribuição de alimentos para a população, acabe sendo um motor para a reativação da economia capitalista e não da economia comunal. Já não se trata de omissão, mas de ação; não é um problema econômico, é político.

A mesma coisa acontece em vários setores da produção, particularmente no campo, onde está claro que a política correta de ruptura da dependência das importações de alimentos, incorretamente, fortaleceu o latifúndio e enfraqueceu os núcleos de produção zamoranos (NT: da missão Zamora, para o auxílio e incremento da produção das comunas agrícolas).

Os indícios de recuperação econômica demonstrados em dezembro podem ser enganosos, se apenas se recorre aos números da macroeconomia e não se dá atenção à política, ao contrário do método que Chávez impôs, no qual a política estava acima das regras da economia. A burocracia estatal pula de entusiasmo porque, depois de sete anos, obteve-se uma inflação e uma queda do PIB menor que os do ano anterior, mas houve hiperinflação, mais de 4.000%, embora não os 12.000% prognosticados pelos organismos econômicos internacionais, e a diminuição na queda do PIB reflita uma dinâmica do comércio e não do setor produtivo. Mas os números positivos (de fato, não tão negativos como o inimigo pretendia) ocultam uma realidade política desastrosa.

Deu-se um crescimento do comércio baseado em importações, ao aumentar a capacidade do comércio (não da população) para obter dólares do mercado e não do Estado, mas isso levou à dolarização de setores não importadores (produção nacional de alimentos e manufaturas). Os armazéns repletos de produtos adquiridos pela classe média e os restaurantes cheios não são um símbolo de crescimento econômico, se se compara com a situação dos bairros onde se luta para conseguir remédios, enquanto em outra parte da cidade se comemora o fácil acesso ao whisky. O que se esconde, e é muito perigoso, é que ocorreu uma estratificação econômica da população.

Enquanto nos anos anteriores 80% da população estavam localizadas entre um a três salários mínimos, diferenciação, em sua maioria, dada pela renda a partir do trabalho, atualmente há uma estratificação que vai desde os que vivem do salário-mínimo até os que recebem até mil vezes esse valor, diferenciação vinda, além de tudo, por seu acesso ao mercado de capitais e não devido ao trabalho produtivo.

É o comércio, o mercado importador, são os negócios à margem da lei, é a remuneração do capital o que cresce e se dinamiza, em detrimento do trabalho produtivo, da remuneração do trabalho. A estratificação econômica da sociedade é a marca da restauração do capitalismo neoliberal à custa da transição ao socialismo. Cresce o bolso da classe média e se esvazia o do operário no bairro; crescem os bairros elegantes e se dessangram os dos pobres; crescem as cidades e se dessangra o campo. Estamos localizados na direção contrária do rumo marcado pelo Plano da Pátria e, desde o governo, se comemora.

Se se quer uma demonstração gráfica do que estamos falando, basta um exemplo. O símbolo da existência de uma leve recuperação econômica foram as filas de gente nas lojas que anunciaram a Black Friday de produtos, no final de novembro passado. Se na Venezuela não houve Black Friday nos anos anteriores não foi pela crise econômica. Na época da bonança, em pleno governo Chávez, a intenção de propagandear uma Black Friday provocou o apedrejamento de lojas por parte dos movimentos afrodescendentes, e a atuação do governo, aplicando medidas contra a discriminação, recordou o país de que a origem da Black Friday está vinculada à escravidão da população negra. É simbólico que uma escandalosa Black Friday, ao melhor estilo do comércio estadunidense, seja também o símbolo do início da mal chamada recuperação econômica.

Maduro tem razão quando diz que nem tudo o que acontece na Venezuela é culpa de Trump. O governo está conseguindo o que não pôde a guerra econômica imperialista: destruir as bases materiais, políticas e sociais da transição ao socialismo.

Derrotar o imperialismo, mudar a política do governo

Dentro do debate sobre a situação atual, não deixaram de surgir os que dizem: “nós avisamos,Maduro não é socialista”. Mas o fazem desde a direita, apoiando Guaidó, ou desde uma posição “nem-nem” (nem Maduro, nem Guaidó), que os leva a deixar passar a agressão imperialista. Outros advertem que o inimigo da revolução está atacando e que não é hora de gerar dúvidas, “leais sempre, traidores nunca”. Não se trata de baixar a guarda, mas limitar o debate apenas ajuda o inimigo. A crítica aberta é a revolução. “Irreverência na discussão, lealdade na ação”, sempre apontava Chávez.

Para um operário revolucionário, militar em um sindicato é parte de sua atividade diária. Muitas vezes, o sindicato é dirigido por uma direção inconsequente, quando não abertamente traidora. Para o operário revolucionário essa não é razão para abandonar a militância no sindicato, que é a organização da classe, independentemente de sua direção. Ele lutará para mudar a direção do sindicato, mantendo a unidade da classe e, apesar de se opor duramente a essa direção inconsequente e/ou traidora, não permitirá que a patronal intervenha na entidade e mude sua diretoria e, muito menos, ultrapassará a linha de classe ao unir-se à patronal para derrotá-la. Trata-se da independência de classe e da unidade para derrotar o inimigo.

Isso que para um operário revolucionário tem sido parte histórica de sua militância diária, em qualquer país do mundo, tornou-se semântica e incoerência política quando cai em mãos de politiqueiros pequeno-burgueses.

Como mostra o Plano da Pátria, não se pode construir o socialismo sem independência nacional, sem construir o socialismo. Não se pode ignorar que a Venezuela está submetida a uma permanente e cruel agressão imperialista, como eixo principal para o exercício de uma política revolucionária. Não existe revolução sem uma política de independência nacional.

O governo Maduro tenta esquivar a agressão imperialista, ignorando uma das premissas do chavismo, construir o socialismo como alternativa ao capitalismo destruidor, e quer que a população acredite que se pode conseguir a paz e a estabilidade fazendo alianças com um setor da burguesia para romper o cerco imperialista, permitindo, em troca, o florescimento de uma economia capitalista sobre as ruínas da transição ao socialismo.

A dolarização da economia é apenas um passo prévio para a devolução das empresas do Estado para o setor privado, e a inclusão de empresas privadas da Rússia, China e Espanha na exploração do petróleo, não mais como sócios tecnológicos, mas como exploradores diretos do recurso.

No plano de ação do governo para este período, Maduro anunciou sete linhas estratégicas:

  • O diálogo, a reunificação, reconciliação e pacificação nacional;
  • Avançar em um acordo econômico produtivo para a estabilização, o crescimento e a prosperidade do país;
  • A luta “renovada e frontal” contra todas as formas de corrupção, e pelo surgimento de uma nova ética patriótica e cidadã;
  • O fortalecimento e a ampliação das conquistas do povo por meio do sistema de segurança e proteção social, implementado com o Carnê da Pátria;
  • A defesa do país e de sua Constituição diante das conspirações nacionais e internacionais;
  • A ratificação da construção do Socialismo em favor do bem-estar do povo venezuelano;
  • Atendimento em infraestrutura e serviços públicos.

Desapareceu a independência nacional, e a construção do socialismo fica relegada a um sexto lugar, como a ratificação de um desejo sem um programa concreto de aplicação. Há um divórcio do governo com a estratégia de construção do socialismo como ferramenta para derrotar a guerra econômica, a agressão imperialista.

Os dois primeiros pontos privilegiam as alianças com setores da direita, com o capitalismo: a reunificação do país e o acordo produtivo nacional. O tático se eleva à condição de estratégico e marca a política para o próximo período. O governo Maduro está sendo inconsequente com os objetivos históricos do Plano da Pátria, e é necessário mudar isso, impulsionando a revolução na política e na direção do processo revolucionário.

Não se trata de abandonar nem em um único momento a luta contra o imperialismo e a guerra econômica. Não se pode ceder nem em um só momento à direita, aos agentes do imperialismo,ao plano Guaidó e aos que impulsionam a guerra econômica. Mas não podemos continuar “dormindo com o inimigo”. Permitir que, desde dentro, se desmonte a construção do socialismo é também uma forma de permitir o triunfo do inimigo, do imperialismo. Não existe transição ao socialismo se voltamos à liberalização da economia. Esse é o caminho para que nos tornemos de novo uma colônia, como Chávez advertiu.

As organizações sindicais, camponesas e comunais devem assumir a discussão das sete linhas estratégicas propostas pelo presidente Maduro para este período. Deve-se voltar a colocar a independência nacional e a construção do socialismo à frente, como indicado pelo Plano da Pátria, e subordinar o resto da ação do governo a esses objetivos históricos. É preciso exigir mudanças na política do governo e tudo o que seja necessário para garantir a luta pela construção do socialismo como única via para derrotar a guerra econômica.

Deve-se formular um plano de ação e produção para romper o cerco imperialista. Estatizar todo o sistema financeiro e o comércio exterior. Estabelecer com as comunidades, camponeses e trabalhadores um plano especial de produção sobre cinquenta produtos da cesta básica e, em seguida, ir avançando em mais produtos. Estatizar todo o sistema de distribuição nacional. Os veículos de carga, silos, armazéns e centros de refrigeração devem passar para as mãos do Estado. Cinquenta por cento da produção de alimentos e bens de consumo massivo do setor privado devem passar aos centros de distribuição públicos. Bem-vindas as alianças com outros países para o desenvolvimento tecnológico, mas a extração e processamento de minerais (petróleo, ouro, aço, alumínio, etc.) são de domínio estatal.

Aumentar os impostos para o comércio de produtos importados e ao comércio feito em dólares. Estabelecer o monopólio do Estado sobre a importação de insumos industriais, não mais entrega de dólares para as empresas, e sim de insumos em troca de produtos finalizados. Eliminar os subsídios nos serviços para os grandes consumidores capitalistas (lojas, shoppings centers etc). Estabelecer a construção do socialismo e a independência nacional, tal como definido no Plano da Pátria, como prioridade estratégica da ação de governo. Mudar o gabinete de governo, e estabelecer a controladoria social, de comunidades, operários e camponeses sobre o cumprimento, aplicação e execução das políticas econômicas aprovadas.

Somente a construção da economia socialista poderá garantir a derrota do bloqueio imperialista, impedir a restauração do neoliberalismo e conseguir a independência nacional. É necessário impulsionar desde as bases, desde os CLAP, os conselhos comunais, os núcleos camponeses e de trabalhadores, a mudança na política econômica do governo, a apresentação de um plano para a construção do socialismo. É necessário impulsionar a revolução econômica, a mudança do rumo do governo, para conseguir a transformação definitiva da Venezuela.

 

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