Nos últimos dias, este é um dos principais assuntos da imprensa: Bolsonaro, em coletiva rodeada de apoiadores, difamou a jornalista da Folha de S. Paulo, Patrícia Campos Mello, reforçando o testemunho comprovadamente mentiroso do ex-funcionário de uma agência de disparo de mensagens, Hans River, na CPMI das Fake News do Congresso Nacional.
Segundo o presidente, “a jornalista queria dar um furo a qualquer preço”, ou seja, teria pedido, em troca de sexo, informações sobre o esquema de disparo de fake news na campanha do presidente nas eleições de 2018.
O que chama atenção, para além da evidente proximidade da verdade que a jornalista alcançou sobre o esquema de fraudes responsáveis pela subida de Bolsonaro ao poder, é que o episódio nos impõe a reflexão sobre os alcances, e mesmo os objetivos, da campanha contra as mulheres perpetrada pelo governo e pela sua organização neofascista em formação.
Muito menos episódico do que parece, a propaganda de ódio às mulheres — não importa se pela via da sacralização, demonização, escracho, ridicularização — é um mecanismo essencialmente constitutivo de seu projeto fundamentalista e autoritário.
Esta cruzada contra as mulheres não é exatamente uma novidade: é a recriação de um repertório histórico de longa data. Séculos e séculos atravessados, conhecemos estruturas mentais e materiais que se coincidem para determinar a sociedade a partir da repulsa moral e da desvalorização emulativa do feminino.
Bolsonaro revigora mitologias antigas, pensamentos religiosos medievais de caça às bruxas, e também flerta com as formas do ódio às mulheres assumidas nos regimes de Hitler e Mussolini. Nestas experiências, a mulher, como elo fundante da família, passa a ser o canal — o vazio a ser preenchido pela substância fálica — de perpetuação da imaginação reacionária.
Este recurso de “valorização da família” e consequentemente da função social das mulheres é altamente eficaz: foi o sentimento aferido pela população em pesquisa recente como a segunda grande qualidade do governo Bolsonaro, o que indica o temor e, ao mesmo tempo, o enorme potencial de adesão que este projeto implica, mobilizando afetos fundamentais à deriva da crise social.
Para protagonizar sua “família autoritária”, nos termos de Wilhelm Reich, Damares Alves, por exemplo, restitui o lugar da mulher e a sua única possibilidade figurativa nesse quadro de hegemonia: a grande “mãe” de trabalho pastoral, a segunda ministra mais bem avaliada, a melhor propagandista do sistema que a oprimiu. Para ela, a qualidade feminina máxima é a sujeição, a obediência estrita, a “abstinência” de qualquer dissidência comportamental. Assim, a misoginia torna-se o controle social mais próximo, mais fundante nas relações humanas.
Mas, se as úteis personagens femininas do espetáculo neofascista são replicadoras desse estado de coisas, também é verdade que suas criações se assentam em terreno fértil. O Brasil já é um dos países que mais violenta, estupra e mata mulheres no mundo. Ocorre que essas relações históricas de dominação estão sendo agora assentidas por uma representação única, geral e institucionalizada. O capitão reformado assente com a negação do corpo e da liberdade feminina enquanto, ao mesmo tempo, mostra-se obcecado por genitálias e necessidades fisiológicas. Eis a neurose fundamental herdada do nazifascismo clássico.
O caso envolvendo a jornalista foi precedido de todo tipo de ataque ao gênero feminino, da “fraquejada” por ter uma filha mulher à adoração por Brilhante Ulstra, torturador que estuprava presas políticas berrando-lhes “putas terroristas”. A reação dos grandes veículos da imprensa é positiva, mas é preciso imputar a responsabilidade necessária àqueles que flertaram com a tese de “segmentos civilizados e fundamentalistas no governo” desde o início, com pretensões de inocentar Paulo Guedes e seu projeto econômico das aventuras autoritárias.
Pupilo do pinochetismo, Guedes entra na roda da ciranda misógina, aplicando-lhe ainda mais sentido concreto, quando se atemoriza com a “farra” das supostas viagens de empregadas domésticas à Disney. Nada deve causar mais terror a esta ordem neurótica que a imagem de um exército de milhões e milhões de mulheres negras e pobres no Brasil invadindo o templo de consumo preferencial da burguesia brasileira.
Fato é que a finalidade última deste projeto misógino é a fabricação de ressentimento contra as mulheres trabalhadoras que vem se tornando ainda mais chefes de família, ainda mais responsáveis pela reprodução social com o esfacelamento das políticas públicas, e também ainda mais vítimas da violência de gênero.
Comentários