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EDITORIAL

A compulsão misógina do neofascismo

Editorial de 21 de fevereiro de 2020
Reprodução

Presidente repetiu ataques à jornalista da Folha de S. Paulo

Nos últimos dias, este é um dos principais assuntos da imprensa: Bolsonaro, em coletiva rodeada de apoiadores, difamou a jornalista da Folha de S. Paulo, Patrícia Campos Mello, reforçando o testemunho comprovadamente mentiroso do ex-funcionário de uma agência de disparo de mensagens, Hans River, na CPMI das Fake News do Congresso Nacional.

Segundo o presidente, “a jornalista queria dar um furo a qualquer preço”, ou seja, teria pedido, em troca de sexo, informações sobre o esquema de disparo de fake news na campanha do presidente nas eleições de 2018. 

O que chama atenção, para além da evidente proximidade da verdade que a jornalista alcançou sobre o esquema de fraudes responsáveis pela subida de Bolsonaro ao poder, é que o episódio nos impõe a reflexão sobre os alcances, e mesmo os objetivos, da campanha contra as mulheres perpetrada pelo governo e pela sua organização neofascista em formação. 

Muito menos episódico do que parece, a propaganda de ódio às mulheres — não importa se pela via da sacralização, demonização, escracho, ridicularização — é um mecanismo essencialmente constitutivo de seu projeto fundamentalista e autoritário.

Esta cruzada contra as mulheres não é exatamente uma novidade: é a recriação de um repertório histórico de longa data. Séculos e séculos atravessados, conhecemos estruturas mentais e materiais que se coincidem para determinar a sociedade a partir da repulsa moral e da desvalorização emulativa do feminino.

Bolsonaro revigora mitologias antigas, pensamentos religiosos medievais de caça às bruxas, e também flerta com as formas do ódio às mulheres assumidas nos regimes de Hitler e Mussolini. Nestas experiências, a mulher, como elo fundante da família, passa a ser o canal — o vazio a ser preenchido pela substância fálica — de perpetuação da imaginação reacionária. 

Este recurso de “valorização da família” e consequentemente da função social das mulheres é altamente eficaz: foi o sentimento aferido pela população em pesquisa recente como a segunda grande qualidade do governo Bolsonaro, o que indica o temor e, ao mesmo tempo, o enorme potencial de adesão que este projeto implica, mobilizando afetos fundamentais à deriva da crise social.  

Para protagonizar sua “família autoritária”, nos termos de Wilhelm Reich, Damares Alves, por exemplo, restitui o lugar da mulher e a sua única possibilidade figurativa nesse quadro de hegemonia: a grande “mãe” de trabalho pastoral, a segunda ministra mais bem avaliada, a melhor propagandista do sistema que a oprimiu. Para ela, a qualidade feminina máxima é a sujeição, a obediência estrita, a “abstinência” de qualquer dissidência comportamental. Assim, a misoginia torna-se o controle social mais próximo, mais fundante nas relações humanas.  

Mas, se as úteis personagens femininas do espetáculo neofascista são replicadoras desse estado de coisas, também é verdade que suas criações se assentam em terreno fértil. O Brasil já é um dos países que mais violenta, estupra e mata mulheres no mundo. Ocorre que essas relações históricas de dominação estão sendo agora assentidas por uma representação única, geral e institucionalizada. O capitão reformado assente com a negação do corpo e da liberdade feminina enquanto, ao mesmo tempo, mostra-se obcecado por genitálias e necessidades fisiológicas. Eis a neurose fundamental herdada do nazifascismo clássico. 

O caso envolvendo a jornalista foi precedido de todo tipo de ataque ao gênero feminino, da “fraquejada” por ter uma filha mulher à adoração por Brilhante Ulstra, torturador que estuprava presas políticas berrando-lhes “putas terroristas”. A reação dos grandes veículos da imprensa é positiva, mas é preciso imputar a responsabilidade necessária àqueles que flertaram com a tese de “segmentos civilizados e fundamentalistas no governo” desde o início, com pretensões de inocentar Paulo Guedes e seu projeto econômico das aventuras autoritárias. 

Pupilo do pinochetismo, Guedes entra na roda da ciranda misógina, aplicando-lhe ainda mais sentido concreto, quando se atemoriza com a “farra” das supostas viagens de empregadas domésticas à Disney. Nada deve causar mais terror a esta ordem neurótica que a imagem de um exército de milhões e milhões de mulheres negras e pobres no Brasil invadindo o templo de consumo preferencial da burguesia brasileira.

Fato é que a finalidade última deste projeto misógino é a fabricação de ressentimento contra as mulheres trabalhadoras que vem se tornando ainda mais chefes de família, ainda mais responsáveis pela reprodução social com o esfacelamento das políticas públicas, e também ainda mais vítimas da violência de gênero. 

Por isso, “as intrusas” do neofascismo também, dialeticamente, são fonte de todo tipo de esperança de destruição desse projeto de ódio. As mulheres avizinhavam o significado da luta contra esse avanço desde a primavera feminista em 2015, que se insurgiu contra a bancada fundamentalista que pavimentou o processo de golpe. Em 2018, o #EleNão selou esta guerra permanente entre as mulheres e a extrema-direita. Apoiadas nas lutas feministas do nosso continente, marcharemos no 8 de março, no 14 de março – para lembrar de Marielle, que é o símbolo antagônico mais acabado à família Bolsonaro – e em todo o calendário de lutas da classe trabalhadora, lembrando que qualquer libertação dessa situação em que vivemos, mais do que simplesmente antimisógina, será feminista. Ou não será.