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MUNDO

Nicolás Maduro: Dormindo com o inimigo? (Parte 2)

Passados 28 anos do levante militar de Chávez contra o neoliberalismo, em 4 de fevereiro de 1992

Elio Colmenarez, de Caracas, Venezuela
reprodução

Maduro: um governo submetido ao assédio imperialista

Não há dúvida de que a morte de Chávez, em 2013, foi um incentivo para o recrudescimento da ofensiva imperialista. Poucos previam longa vida ao governo Maduro. Um dirigente surgido da classe operária, desvinculado do mundo militar, que não tinha sido liderança de nenhum dos grupos ou camarilhas que faziam vida dentro do chavismo, tinha poucas esperanças de sobreviver às forças telúricas centrífugas que, de acordo com os analistas políticos, destruiriam o chavismo após a morte de seu líder.

A queda vertiginosa dos preços do petróleo impulsionada pelo imperialismo petrolífero, aproveitando-se do mercado negro proveniente dos conflitos na Líbia, Síria e outros países do Oriente Médio, e do desenvolvimento da técnica de tritura das rochas da superfície terrestre para obter petróleo (fracking), levou o preço muito perto de seus custos de produção. O fechamento dos mercados latino-americanos ao petróleo venezuelano devido à orientação dos EUA para que passassem a comprar das empresas transnacionais (Exxon) e não da PDVSA, reduziu a renda do petróleo, em 2014, a 932 vezes menos que a de 2010, a qual já vinha em queda.

A sabotagem à produção interna, o contrabando de extração e o ataque à moeda, a partir dos EUA e da Colômbia principalmente, colocaram o país em uma hiperinflação que superou, em cinco anos, os 2.600.000%.

A violência política se instalou desde a eleição de Maduro, quando o candidato derrotado chamou a “descarregar a raiva

A violência política se instalou no país desde o momento da eleição de Maduro, quando o candidato opositor derrotado chamou a “descarregar a raiva”, provocando mais de trinta mortos entre a população chavista, fundamentalmente habitantes das moradias distribuídas pelo governo (Missão moradia) localizadas perto de bairros de classe média, inaugurando uma nova estratégia da guarimba, que é a de assassinato e linchamento da população chavista.

Maduro demonstrou habilidade política inesperada para a oposição e o imperialismo, apoiando-se, tal como Chávez, em uma intensa mobilização popular para derrotar a ofensiva política golpista e manter a unidade do chavismo. Os EUA, diante do rosário de derrotas da oposição, decidiu passar da política de apoio e acompanhamento à de dirigir diretamente, política e organizativamente, a oposição venezuelana.

Em março de 2015, Obama assinou uma ordem executiva na qual declarou a Venezuela uma “ameaça grave e incomum contra a segurança dos EUA”, legitimando e recrudescendo todas as ações conspirativas contra o país, em particular o bloqueio econômico iniciado em 2002 de forma dissimulada, apoiando-se em um sistema bancário internacional dependente do dólar e controlado pela Reserva Federal dos EUA, que fechou o acesso da Venezuela ao sistema financeiro internacional e represou bilhões de dólares e ouro venezuelanos nos bancos de outros países. O recrudescimento do bloqueio econômico tentou limitar a possibilidade de aplicação dos programas sociais e de produção, que dependem do mercado internacional ao serem provenientes da renda petrolífera.

A situação econômica crítica levou a situações de fome, miséria e necessidades até então desconhecidas na história de um país que desde 1870 havia se tornado dependente da renda petrolífera. No entanto, isso não conseguiu deter a mobilização popular, sendo esse o segredo da resistência do governo venezuelano à maior ofensiva de guerra não convencional (guerra econômica) jamais aplicada a qualquer país desde a II Guerra Mundial.

O surgimento dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP) e das diversas formas de organização popular para enfrentar os efeitos da guerra econômica, e a permanente mobilização para enfrentar os ataques do imperialismo, levou à derrota definitiva da guarimba, em 2017.

A derrocada da frente política interna, marcada pela desaparição da Mesa da Unidade Democrática (MUD) depois da derrota nas eleições para governadores que aconteceram depois da instalação da Assembleia Constituinte, e sua incapacidade para participar de uma frente unida nas eleições para prefeitos de dezembro de 2017 e das presidenciais de maio de 2018, marcaram a consolidação do governo Maduro. Apesar de que seis anos antes poucos acreditavam nessa possibilidade, o fato é que em 2019 Nicolás iniciava seu segundo mandato.

A derrota das guarimbas em 2017 e as consecutivas derrotas eleitorais (Constituinte, governadores e prefeitos em 2017, presidenciais em 2018) levaram o imperialismo a dar maior prioridade à frente externa que à interna, à qual neste momento estava em plena crise. A impossibilidade de impor uma votação contra a Venezuela na OEA pela resistência dos países do Caribe de abandonar o apoio do petróleo da Venezuela que lhes fora vital para sobreviver como países durante décadas levaram os EUA a criar um organismo paralelo, o chamado grupo de Lima, que é mais exatamente um cartel de governos associado ao negócio do fluxo de recursos para as ações contra a Venezuela.

Batizado pelo chavismo de cartel de Lima, este serviu para legitimar a ação política do governo Trump no mesmo estilo das operações contra a Nicarágua nos anos 1980, desnudados com o escândalo Irã-Contras, que envolviam lavagem de dinheiro oriundo do tráfico de drogas e do contrabando de armas, enriquecendo vários funcionários do governo dos EUA e de governos locais que advogavam pela “liberdade da Nicarágua”.

Mesmo assim, a operação “silêncio diplomático” impulsionado pelos EUA, em 2018, que previa uma ruptura massiva de relações diplomáticas com a Venezuela, caminhava rumo ao fracasso diante da negativa da União Europeia em participar dela. Essa operação foi mudada na última hora, quando foi escolhido o agente da CIA e militante do grupo de ultradireita Vontade Popular, Juan Guaidó, para assumir a presidência da deteriorada Assembleia Nacional. Os Estados Unidos partiram, então, para uma estratégia de designá-lo presidente interino, desconhecendo a presidência de Maduro iniciada em 10 de janeiro de 2019. O apoio recebido dos governos títeres dos EUA e da UE contrasta com o quase nulo apoio interno e uma oposição desmobilizada desde a derrota das guarimbas, em 2017.

A intensa campanha midiática internacional esconde o fracasso interno de Guaidó. Ele teve de se auto juramentar em uma praça com a presença de escasso público, em um bairro de classe média do leste de Caracas. Passados trinta dias, em 23 de fevereiro, quando ele deveria terminar seu suposto interinato, fracassou a tentativa de introduzir à força uma “ajuda econômica internacional)”, desde a Colômbia, cujo objetivo era montar uma “cabeça de praia”, um território liberado, que servisse de base para o governo paralelo. No entanto, tal intento veio abaixo ao não conseguir apoio interno e, pelo contrário, provocar uma contundente mobilização da população contra a ameaça de intervenção.

Em 30 de abril, a contra inteligência venezuelana zombou pública e internacionalmente dos EUA, ao envolver esse país em uma falsa tentativa de golpe de estado, ao qual se juntaram apenas dois oficiais desprevenidos e menos de 20 soldados. Em 1 ano Guaidó teve 16 convocatórias fracassadas de mobilização “até derrubar Maduro”, sendo, apesar disso, mais útil ao governo mantê-lo livre como fator de divisão na oposição do que prendê-lo e transformá-lo em mártir da mídia internacional. Guaidó, inclusive, terminou perdendo a maioria opositora para se manter na presidência do parlamento. Mais recentemente, a tentativa de retomar para a Assembleia Nacional com uma “marcha do povo” foi impedida por uma centena de velhinhas agressivas que se plantaram na frente do palácio legislativo e o obrigou a fugir. Logo em seguida, argumentou que os presentes tinham sido agredidos por coletivos armados, os quais ninguém fotografou nem filmou, apesar de estarem acompanhados por mais de 200 correspondentes da imprensa.

Não há dúvidas, então, da habilidade de Maduro para evitar e derrotar a ofensiva política imperialista e as operações de seus lacaios internos. Guaidó se tornou, mais que uma alternativa de governo, uma operação financeira de alto voo. O reconhecimento do inexistente governo de Guaidó justifica operações de roubo, por parte do setor privado, de ativos venezuelanos. Por trás da tomada de empresas venezuelanas no exterior, como a CITGO (combustíveis), Monomeros (fertilizantes) e ALUCASA (laminados de alumínio), há setores da burguesia associados aos negócios dessas empresas, incluindo o narcotráfico, como aconteceu nas operações de ataque à moeda e da apropriação e uso de reservas internacionais em ouro e dólares pelos bancos privados.

Muitos meios já assinalaram que Guaidó é uma exitosa fraude financeira de alto vulto contra o Estado venezuelano que envolve lavagem de dinheiro do narcotráfico e do mercado negro petrolífero, aos quais estão associados importantes setores da burguesia e altos funcionários do governo dos EUA nos países latino-americanos.

De um governo sem rumo a uma considerável recuperação econômica

O sucesso político que acompanhou Maduro no enfrentamento político à oposição venezuelana não se deu no terreno econômico. À fragilidade extrema de uma economia em retração, em meio a uma mobilização popular que colocava a burguesia em debandada, somaram-se os desacertos econômicos do governo, as marchas e contramarchas, os anúncios de medidas extremas contra a estocagem, a especulação, o contrabando de extração e o ataque à moeda, mas que nunca foram aplicadas.

Parece mentira que fosse possível enganar a sacrossanta inteligência do governo dos EUA e fazê-la se meter em um golpe militar falso, mas não dirigir um operativo que consiga impedir a saída de milhões de litros de gasolina e de toneladas de alimentos que saem em direção à Colômbia. É clara a incapacidade do governo para deter a guerra econômica que permitiu que a burguesia retomasse a ofensiva perdida desde 2002, pelo menos no plano econômico e não no político.

É clara a incapacidade do governo para deter a guerra econômica que permitiu que a burguesia retomasse a ofensiva perdida desde 2002

Entre a população há um reconhecimento tácito dessa incapacidade do governo para vencer a guerra econômica, levando-a a pensar que se perdeu o rumo e de que seu único objetivo é manter a oposição sob controle para impedir que ela tome o poder. Essa é uma opinião comum entre os quadros médios do governo, do partido e dos dirigentes das comunas, dos sindicatos e das organizações camponesas. E essa opinião está marcando um refluxo cada vez mais acelerado na capacidade de mobilização popular demonstrado nas atividades de comemoração das datas de 23 de janeiro e 4 de fevereiro, que estiveram muito longe daquelas contundentes manifestações populares dos anos anteriores.

Isso não significa uma ruptura com o processo revolucionário. Como em outras oportunidades, basta uma ameaça do império para que as ruas se encham de povo para a defesa da revolução,mas é óbvio que as assembleias políticas nas organizações de base quase desapareceram e se dá mais atenção à resolução dos problemas cotidianos, à distribuição de remédios e alimentos, aos devastadores efeitos da guerra econômica.

Muitos quadros revolucionários se enterraram no “tarefismo” das organizações de base ou na inércia da burocracia governamental, deixando de participar das passeatas “rotineiras”, ou das atividades políticas formais, deixando de impulsionar a atividade mobilizadora, fazendo com esta adquira uma característica mais de desfile do que de passeata de protesto.

No entanto, o que mais influenciou na desmoralização ou apatia dos quadros médios é que os anos de crise econômica abriram espaço para negócios vinculados à estocagem de alimentos, à especulação de preços, ao comércio irregular (bachaqueo), ao contrabando de extração, roubo de remédios e alimentos da distribuição pública para levá-los ao mercado negro, à manipulação monetária, venda do dinheiro circulante para as máfias que o fazem desaparecer, atividades estas que são parte vital da guerra econômica, mas nas quais estão vinculados quadros do governo local e nacional.

Em muitos casos, a incapacidade do governo de estabelecer medidas drásticas que coloquem um freio às consequências internas do bloqueio e da guerra econômica deve-se a que grande parte dos altos funcionários do governo está vinculada a esses negócios, o que deveria ser castigado. Obviamente, a crise econômica é produto da guerra econômica imposta pelo imperialismo, mas muitas das trincheiras para essa guerra foram cavadas pela própria burocracia chavista.

O outro problema são os grupos e camarilhas no governo. Já na época de Chávez existiam muitos grupos que tendiam a se identificar com diferenças políticas em temas importantes. Essas tendências se dissolviam e se reagrupavam de acordo com o debate político, embora algumas tenham permanecido ao longo do tempo.

À medida que se consolidou o governo de Chávez, muitos grupos se articularam, mais que por diferenças políticas, pela capacidade de lobby para influenciar nas decisões políticas na difícil nomenclatura da tomada de decisões no governo. Com o tempo eles derivaram em camarilhas que apostavam na colocação de um dirigente em algum posto de poder político. De tal maneira que uma mudança de ministro ou de diretor de uma instituição ou empresa acabava sendo mais traumática que uma mudança de governo. Cada novo “chefe” vinha acompanhado de uma corporação que deslocava os quadros da administração anterior, desaparecendo até os planos que se desenvolviam como parte da ação de governo, para impor outros que apareciam como uma “nova gestão”. O apoio a uma “gestão”, mais do que suporte a uma posição política, significava a identificação com um determinado quadro para o qual se previa uma carreira política de sucesso.

Com Chávez no governo, existiram dezenas de grupos, mas ele mantinha uma liderança por cima deles, e as constantes mudanças no governo, de acordo com as estratégias políticas, impediam a consolidação de um determinado grupo. Em quatorze anos de governo, Chávez teve mais de trezentos ministros, quase mil vice-ministros, e os presidentes de instituições ou empresas passaram de 3.000 pessoas. Foram poucos os quadros que se mantiveram constantes no alto governo durante os quatorze anos de Chávez, e os que o fizeram passaram por diferentes organismos e níveis.

As diferenças internas, a dissidência e afastamento de velhos quadros, inclusive a própria crise econômica e política, fizeram diminuir drasticamente a quantidade de grupos ou camarilhas nos espaços do governo de Maduro, mas os que existem ou sobreviveram são mais fortes, mais permanentes, que transformaram as mudanças no governo em “roques” de quadros, como em jogos de xadrez, para garantir o equilíbrio de forças entre as diferentes camarilhas.

Para muitos, diferentemente de Chávez, Maduro é um prisioneiro dos grupos de poder.

Para muitos, diferentemente de Chávez, Maduro é um prisioneiro dos grupos de poder. Mas a característica mais grave desses grupos é que não se tratam de diferenças políticas, mas sim de quotas de poder. Não é o debate político o que enche os corredores do governo como acontecia nos momentos de maior ascenso da mobilização bolivariana, mas as intrigas palacianas para o domínio das quotas de poder. Inclusive, entre os quadros médios da revolução há sérias dúvidas sobre o caráter socialista dos grupos encastelados na vice-presidência executiva e na vice-presidência econômica. Alguns até mesmo duvidam do compromisso chavista da ex vice-presidente Delcí Rodríguez, uma vez que ela foi retirada do governo de Chávez em 2006 e não voltou a ocupar nenhum cargo de governo, até depois da morte dele.

A realidade é que esses grupos dominaram as decisões, ou melhor, as indecisões, que impossibilitaram que se derrotasse a guerra econômica. Contraditoriamente, não sendo grupos políticos, no terreno da luta política eles permitiram a indiscutível liderança de Maduro, mas no terreno econômico, chave para aquilo que Chávez chamou de revolução econômica por trás da revolução política, eles se tornaram a trava fundamental para o enfrentamento à guerra econômica com uma política revolucionária. A certeza de que Maduro está rodeado de gente incapaz, ou como diz o dito popular, “anda dormindo com o inimigo que está metido na cama”, é quase absoluta entre a população chavista.

No final de 2018, depois do triunfo eleitoral de Maduro, teve início uma forte mobilização de diversos setores, exigindo uma mudança total de governo e, em alguns casos, exigindo a saída dos grupos de poder. O momento culminante foi a “marcha admirável”, uma mobilização de camponeses em direção a Caracas por mais de 500 quilômetros, que terminou em uma enorme assembleia em Miraflores, com a presença de Maduro, o qual escutou da população a dura crítica a seu governo e a exigência de mudança. Infelizmente, esse processo se paralisou devido a que, em janeiro, os EUA colocaram em marcha o plano Guaidó, e a derrota do plano imperial ocupou vários meses o centro da mobilização popular, mas desde novembro do ano passado voltaram a soar as vozes de protesto contra a ação de governo que permite o desmantelamento das conquistas da revolução. Trata-se de um claro sinal de alerta.