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MUNDO

O imperialismo chinês na África

Ana Barradas, no site Cem Flores*

Aos que se esmeram em demonstrar que o socialismo segue imparável o seu belo curso na China, gostaria de recordar, num registo muito mais terra-a-terra do que o deles, alguns dados concretos, todos referentes à expansão da influência daquele país em África, que não batem nada certo com essas suas análises, todas mais baseadas em idealizações do que em factos e acontecimentos concretos.

Longe de apresentar postulados ou enunciados de wishful thinking como vejo fazer a alguns entusiastas das atuais maravilhas chinesas, limitar-me-ei a falar com a máxima clareza daquilo que sei e vi nas minhas inúmeras estadias nos países que aqui mencionarei. Contraponho esta minha experiência real e vivida às considerações mal informadas que recorrem acriticamente a dados duvidosos e não comprovados de uma vasta literatura apologética que por aí circula, desinteressada de fazer demonstrações de veracidade.

África é o principal campo de disputas interimperialistas protagonizado pela China fora do seu espaço “natural” (Ásia-Pacífico) pela simples razão de que é rica em matérias-primas muito necessárias à economia chinesa e tem uma disponibilidade grande para aceitar a importação de capital chinês, negociar contrapartidas, estabelecer consórcios e joint-ventures, vender direitos de exclusividade e permitir a exploração desenfreada de recursos naturais.

A partir dos anos 1960, a República Popular da China, ainda interessada nos princípios de solidariedade internacionalista advogados pelo maoísmo, apoiou os movimentos de libertação nacional em África, concorrendo com as influências imperialistas norte-americana e soviética. Contudo, enterrado o maoísmo e proclamada a “via capitalista para o socialismo”, a China protagoniza hoje em África aquilo a que alguns chamam o “sino-imperialismo”. Recorrendo a investimentos e pondo empréstimos à disposição, com as empresas chinesas a verem-se facilmente adjudicadas grandes obras públicas, Estado e empresários chineses, armados com uma mão-de-obra própria, que levam consigo, e tecnologia avançada para os padrões africanos, têm investido fortemente nas ferrovias no Quénia, Uganda, Sudão do Sul, Tanzânia, nas minas no Congo e Zâmbia, nas infraestruturas e rodovias na Etiópia, em Moçambique, Serra Leoa, Sudão do Sul, Guiné-Bissau, etc., e na construção civil e telecomunicações em Angola. Depois de gastar 124 mil milhões de dólares em África entre 2000 e 2006, e na última década 251 mil milhões, prometeu perante o Fórum da Cooperação China-África em 2018 investir mais 60 mil milhões de dólares até 2021, mais do dobro do que investiu em cada um dos anos anteriores.

A China investiu 6.400 milhões de dólares (5.640 milhões de euros) em negócios localizados em África em 2016 e 2017. As trocas comerciais entre a China e os países africanos cifravam-se em 190 mil milhões de dólares em 2017. 12 por cento da produção industrial do continente é assegurada por empresas chinesas, a maior parte dela tendo a exportação como propósito. Um exemplo são os projetos de mineração apoiados pela China na Zâmbia, com salários abaixo dos da concorrência, e onde ocorreram disputas laborais violentas entre trabalhadores locais e empregadores chineses, ao ponto de em 2012 os mineiros terem morto um gerente chinês.

A China tem mais de 720 projetos estratégicos em 49 países africanos, com 10.000 empresas suas a operar no terreno, um terço das quais registou margens de lucro de mais de 20%. Aplica capitais seus em sectores como extração de matérias-primas, construção civil e telecomunicações. O petróleo é um caso à parte: segundo a Agência Internacional de Energia, em 2030 as importações de petróleo da China serão iguais às dos EUA. Prevê-se que a demanda suba para 14,2 milhões de barris diários, em 2025. Aliás, os maiores investimentos chineses estão localizados nos três maiores produtores de petróleo: Sudão, Angola e Nigéria.

Sabendo como África está cansada da dominação e dos desaforos do imperialismo ocidental, a China oferece condições muito vantajosas para competir com os seus concorrentes. Exemplo: Angola tinha uma dívida ao Banco Mundial, que pagava penosamente a 18% de juros. A China ofereceu à cabeça um milhão de dólares e novo empréstimo a 4%. Em troca, acesso privilegiado ao petróleo, madeiras exóticas, construção civil, para não falar do comércio ilegal de pontas de marfim, chifres de rinoceronte, diamantes e outras pedras preciosas, peles de animais bravios em vias de extinção, etc. Não é isto imperialismo?

Com efeito, convém visitar África para ver ao vivo e em ato o imperialismo chinês, ousado e triunfante. Aí não há que enganar, é tudo à vista. Não falo por ouvir dizer, falo de ciência certa, de ter visto e comprovado. Por exemplo, na Serra Leoa: as razões dos americanos (e também dos ingleses, antiga potência colonizadora neste país) para preferirem a facção vencedora da burguesia nacional [o partido que estivera na oposição e acabou por ganhar as últimas eleições há três anos] está relacionada com os 10 anos de relações cada vez mais estreitas entre a China e o governo do partido vencido, que favorecera investimentos chineses de vulto, em troca de favores, presentes, comissões, luvas [propinas], comércio ilegal de diamantes e empréstimos a baixos juros. Esta jogada dos americanos, com os ingleses a acolitar, obrigou os chineses de negociar tudo de novo com os novos dirigentes, subindo a fasquia das concessões que estão dispostos a fazer, através de acordos assinados Estado a Estado.

Sob o regime anterior, a reabilitação da rede de infraestruturas e rodovias da cidade capital, Freetown, estava concessionada a um cunhado do primeiro-ministro, que por sua vez contratara uma empresa chinesa para o efeito, sendo que havia nove anos se arrastavam os trabalhos na via pública, esburacada, enlameada e por vezes vedada à circulação, causando os maiores transtornos aos milhões de trabalhadores que precisavam de se deslocar entre as suas casas da periferia e os seus locais de trabalho no centro citadino, num percurso infernal que podia durar horas. Em 2018, o governo anulou o acordo fechado pelo governo anterior com a China para a construção de um novo aeroporto, considerado projeto de prestígio desnecessário.

No Sudão do Sul, a companhia petrolífera estatal chinesa é um dos principais exploradores do petróleo daquele país, dantes totalmente entregue ao Sudão e principal causa da guerra que durou 50 anos até ao início deste século. Mas não se importa nada em destruir desbragadamente o meio ambiente, num país que até há dez anos era talvez o último reduto da África quase intocada pela lepra colonial: recém-nascidos com malformações, terras agrícolas e pastagens de gado envenenadas e poluição nos rios. Em troca do petróleo, constrói rodovias que abrem o país ao exterior, ligando-o no futuro à ferrovia de construção chinesa que une Djibuti, Etiópia, Quénia e Tanzânia (que aliás decidiu entregar aos chineses o controle do porto de Mombaça por não ter como pagar a sua dívida). Nestes caminhos-de-ferro, quase tudo é chinês: as carruagens, os protocolos e especificações, o pessoal técnico, a manutenção e o funcionamento.

Aliás, em toda a África, o pessoal que as empresas chinesas empregam vem com elas e é todo chinês, apenas contratando pessoal local não especializado. Vivem em “compounds” próprios, muitas vezes acompanhados pelas famílias. Só falam chinês, comem chinês, vestem chinês e nunca se misturam com a população local. Formam pequenas Chinatowns por toda a parte, ainda mais fechadas ao exterior do que os antigos colonatos brancos europeus. Em Bissau, um desses “compounds”, rodeado de muros altos que não permitem ver o que se passa lá dentro, viceja mesmo ao lado do grande complexo governamental guineense, de construção chinesa.

Os chineses tendem a estabelecer más relações de trabalho com o pouco pessoal local. à semelhança do que se pratica em muitas zonas do seu país de origem. Assim, em 2018 um patrão chinês foi expulso de Moçambique por ter açoitado um a um os trabalhadores moçambicanos que não compareceram ao serviço às 9 da manhã, depois de terem feito horas extraordinárias até às primeiras horas daquele dia. Alguém fez um vídeo que se tornou viral e foi com essa prova que o governo se viu justificado para exigir a retirada do indivíduo. Mas sabe-se que esta prática não é inédita e faz muito lembrar os piores tempos do colonialismo. Novos conflitos deste tipo e outros (assédio sexual, descontos indevidos, excesso de horas de trabalho) se têm registado na província de Cabo Delgado.

No plano financeiro, o Banco da China e o China Construction Bank International (CCBI) compraram uma percentagem significativa do Standard Bank, um dos bancos sul-africanos de maior projeção internacional, e aliaram-se ao Ecobank Transnational, banco pan-africano com filiais em mais de 30 países do continente.

No plano da segurança, em 2017 a China instalou em Djibuti a sua primeira base militar em África, ao lado das bases americana e francesa. É a primeira base da marinha chinesa no exterior e ocupa uma posição estrategicamente importante à entrada do mar Vermelho, no estreito por onde passam diariamente cerca de 3,8 milhões de barris de petróleo. Nos últimos anos, a China tornou-se um importante fornecedor de armas e equipamento para os exércitos africanos. A Rússia continua a ser o primeiro exportador de armas, mas a China já ocupa o segundo lugar, fornecendo tecnologia militar moderna e barata.

É verdade que África tem mais dívida com países e instituições ocidentais que com a China. Os projetos financiados pela China trouxeram um enorme desenvolvimento de infraestruturas em menos de vinte anos. Mas a que preço? Entre as massas em África não existe nenhum sentimento positivo em relação à presença chinesa. Antes pelo contrário: em países como Etiópia, Quénia, Tanzânia, Uganda e Zâmbia acentua-se a hostilidade em relação à política laboral que favorece os técnicos e mão-de-obra chinesa, em detrimento dos trabalhadores locais, que são contratados precariamente a baixo preço e sem direitos para obras de construção civil, infraestruturas viárias e exploração de matérias-primas.

O colonialismo chinês é diferente dos anteriores, tem características próprias, que decorrem do ideário atual dos dirigentes de Pequim e do próprio contexto económico que procuram modificar. Não querem interferir ou intervir na política interna africana, não querem mudanças no regime político em presença e ignoram todas as questões relacionadas com luta de classes e repressão, considerando que esses são problemas associados à soberania nacional sobre os quais não têm que tomar posição, mas na realidade África é o principal campo de disputas interimperialistas protagonizado pela China fora do seu espaço “natural” (Ásia-Pacífico). Enquanto os países imperialistas ocidentais investem no curto prazo, numa atitude de pilhagem rápida, não planificada e em força, mobilizando, se necessário, meios militares e despoletando guerras, a China tem uma visão de longo prazo, veio para ficar e prepara uma permanência no continente que seja duradoura e em troca traga alguns benefícios apetecíveis às oligarquias e burguesias africanas. O continente negro é uma peça essencial do seu grande plano mundial e por isso investe em infraestruturas concebidas para servir os seus intentos (dentro da lógica do megaprojecto One Belt, One Road, estratégia de desenvolvimento de infraestruturas e investimentos em países da Europa, Ásia e África).

Porém, o namoro com as economias locais tem os seus arrufos: África é também um importante destino dos sobreproduções industriais da China, como carvão, cimento, aço, vidro, alumínio e construção naval. No Quénia, as importações de cimento chinês aumentaram dez vezes em 2016 com relação a 2015, enquanto em 2017 as exportações quenianas do mesmo produto para a região diminuíram 40 por cento. Em 2018, as exportações chinesas de aço para a Nigéria aumentaram 15 por cento, e triplicaram na Argélia. Em 2019, as exportações chinesas de alumínio para o Egito, Gana, Quénia, Nigéria e África do Sul aumentaram 20 por cento. Tanzânia e Uganda eram os principais destinos das exportações globais quenianas, mas a supremacia passou a pertencer à China, cujas exportações para aqueles países aumentaram 60 por cento. Os industriais e comerciantes quenianos, insatisfeitos, em 2017 acusaram também a China de importar matérias-primas da China e de recorrer preferencialmente a mão-de-obra chinesa.

Isto nada tem a ver com qualquer internacionalismo ou ideias socialistas, antes assenta na conjunção de dois fatores: a) a planificação de um crescimento económico neocolonial de tipo novo que não dispute diretamente o modelo ocidental mas seja instrumental para um plano maior de dominação global; b) a fraqueza relativa do capitalismo chinês extrafronteiras que, não podendo ainda concorrer em termos de igualdade com os seus rivais do ponto de vista militar e político, procura em África as matérias-primas que a ajudem a crescer e a aguentar o boicote económico ocidental (a guerra tarifária promovida pelos EUA e outras manobras concorrenciais) assim como vai ocupando posições estratégicas mais vantajosas na disputa com os grandes poderes imperialistas. A sua vantagem é a aparente não-ingerência e permitir às oligarquias locais apresentarem aos seus povos alianças ou contratos que “fomentam o desenvolvimento”.

Todavia, é claramente uma expansão de tipo imperialista, com todos os contornos de qualquer imperialismo, antigo ou moderno. A China está em África porque precisa de importar a bom preço as matérias-primas que lhe escasseiam e que são indispensáveis para o seu desenvolvimento (sobretudo ferro, cobre e petróleo, mas também ouro, têxteis e fibras têxteis, metais não ferrosos, chá, café e tabaco) porque pode vender-lhe infraestruturas com grande lucro e porque os planos que tem para África fazem parte da sua cadeia de projetos de expansão mundial. E a África recorre à oferta aliciante da China porque necessita dos seus empréstimos e investimentos, além de poder substituir os produtos terminados que importa do Ocidente por produtos chineses de grande consumo e baixa qualidade. A troca é muito desigual: o saldo positivo é para a China e reforça-se o subdesenvolvimento africano.

Neste início de ano que surge sob a sombra funesta do assassinato pelos EUA do alto dirigente iraniano Qassam Soleimani, a China está a participar, associada ao Irão e à Rússia, em exercícios navais nos quais recorre à sua frota militar estacionada no Índico, num aviso musculado aos Estados Unidos. Tudo se passa no estreito de Ormuz, por onde circula um quinto de toda da produção petrolífera do mundo.  Sem a base africana de Djibouti não seria possível.

 

*Publicado originalmente em http://cemflores.org/index.php/2020/02/14/imperialismo-chines-na-africa-por-ana-barradas/

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África / China