Pular para o conteúdo
Colunas

Nem toda a esquerda está morta, camarada: uma nota crítica ao artigo de Vladimir Safatle

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela;
E porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem.
(Mateus 7:13,14)

Inegavelmente, esquerda brasileira se encontra hoje em um momento defensivo, busca ar em meio a uma sufocante situação reacionária, produto da crise da concertação social petista em 2013, do golpe de classe que a solapou em 2016, e, sobretudo, da eleição de um governo neofascista em outubro de 2018. Sim, toda a esquerda brasileira foi derrotada, é verdade, no entanto, ela não está morta. Não como um todo. Não toda ela.

O arguto Vladimir Safatle, em seu sugestivo artigo “Como a esquerda brasileira morreu”, foi buscar no bravo Marighella a crítica ao projeto estratégico de colaboração de classes – isto é, a aliança dos trabalhadores com um setor supostamente “democrático” e “progressista” da burguesia em busca da realização de graduais reformas sociais de cunho popular –, o qual teria, como uma maldição secular, enredado toda esquerda brasileira tanto no pré-1964, quanto no pós-1988. A crítica de Marighella, correta, foi, entretanto, convém lembrar, uma crítica post-festum, ou melhor, pós Golpe, assim como o foi a maioria das críticas feitas por membros que deixaram o Partido Comunista Brasileiro após a derrota de 1964, e que, até ela, eram, em maior ou menor grau, adeptos da colaboração de classes. Com as massas aplastadas, Marighella e outros compreenderam a necessidade da independência de classe dos trabalhadores, e, valente e equivocadamente, tentaram resistir por eles, tentaram substituí-los temporariamente como forma de resgatá-los para a luta, e o resultado, como se sabe, foi trágico e cruento – eles foram heróis, mas foram mortos. Sua coragem nos alimenta até hoje, principalmente hoje, nesses tempos difíceis.

Safatle não assinalou, contudo, que antes, bem antes do golpe, houve aqueles poucos dentro da esquerda que incansavelmente criticaram a estratégia da colaboração de classes e afirmaram a necessidade da independência política da classe trabalhadora como o único caminho para sua emancipação. Estes poucos, também em grande parte, foram mortos, mas suas ideias sobreviveram. Assim, se toda a esquerda foi derrotada quando do golpe que pôs fim, em 1964, ao pacto social populista, não foi toda ela que foi morta. Não como um todo. Não toda ela.

Quando a luta contra a ditadura ganhou apoio de massas e a redemocratização avançou, aquelas ideias rebeldes e seus descendentes políticos lá estiveram. Igualmente, quando, no ciclo iniciado pelo novo regime de 1988, a maior parte da esquerda foi progressivamente aderindo a uma nova versão da estratégia de colaboração de classes, estiveram lá aqueles que, esgrimindo a mesma crítica de seus antepassados do pré-1964, mantiveram a defesa de que a construção de uma sociedade mais justa só poderia ser obra de uma revolução socialista, e que esta, por sua vez, só poderia ter seu caminho construído pela própria classe trabalhadora. Muitos desses resistentes ainda estão aqui, ainda estão na luta. Eles não estão mortos, absolutamente. Eles são resistentes. Suas ideias, aquelas velhas ideias críticas, ainda estão vivas. Elas são resistentes.

Hoje, depois do golpe, em meio ao neofascismo triunfante, quando a derrota nos é imposta diariamente a todos nós, não é novamente toda a esquerda que está morta. Somam-se aos velhos críticos da colaboração de classes, ainda vivos de corpo e alma, aqueles mais jovens, os quais também sabem que, se tal estratégia colaboracionista nunca foi o justo caminho, agora é impossível a ele retomar, pois, por conta de suas próprias limitações arquitetônicas, o mesmo já ruiu por completo – É a própria burguesia brasileira, toda ela, que não pode, não quer e não precisa mais de nenhuma colaboração de classes. Estes lutadores, estes verdadeiramente socialistas, estes obstinados revolucionários, não estão mortos, absolutamente. Esta esquerda não está morta. Nem de corpo nem de alma, embora ambos sofram em demasia nesses dias sombrios.

Crítico contumaz da estratégia de colaboração de classes, Trotsky, assassinado há 80 anos por um agente de Stalin, certa feita disse que era melhor um caminho estreito, mas feito por tábuas firmes, a um caminho amplo, porém composto por tábuas podres. Direta ou indiretamente, esta perspectiva esteve sempre presente em toda a esquerda brasileira que, desde os longínquos anos 1930, rejeitou a aliança com setores da burguesia como a estratégia para a efetivação de direitos e reformas para a classe trabalhadora – todas conquistas as quais, em um país dependente como o nosso, só podem ser obtidas plenamente por meio de uma revolução social.

De certa forma, pode-se dizer que mortos estão aqueles da esquerda que ainda optam pelo caminho de tábuas podres. Estes estão, definitivamente, mortos. Reeditando os erros trágicos de outrora, não passam, hoje, de farsantes. São eles, os mortos de alma, que devem enterrar seus mortos, e deixar que a esquerda que segue socialista, que permanece viva, de corpo e de alma, possa ajudar a classe trabalhadora em sua necessária resistência ao neofascismo de Bolsonaro. Enquanto houver aqueles que optem pelo caminho de tábuas firmes, a esquerda não estará morta. Não como um todo. Não toda ela.

Safatle, camarada, você está vivo, nós estamos vivos, e precisamos resistir, talvez mais do que viver. Nesses dias de fogo, sangue, miséria e dor, a esquerda socialista brasileira, inspirando-se nos poetas dos navegantes de outrora, talvez deva colocar seu corpo a navegar em meio à tempestade, guardando, lá no fundo de sua alma, a ideia de que resistir é preciso, e que viver não é preciso.