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Trotsky e o “Sul Global”: Revolução permanente, regimes políticos e opressões (nacionais e raciais)

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Por que vocês não sabem
Do lixo ocidental?

(Milton Nascimento, em para Lennon e MacCartney)

 

Toda a teoria de Trotsky sobre a Revolução Permanente foi vertebrada na ideia de que o desenvolvimento do capitalismo nas regiões atrasadas[1] continha uma historicidade própria, o que contrariava a lógica da repetição das “etapas” do capitalismo europeu clássico nos países “coloniais” e “semicoloniais”, tal como apregoava a III Internacional. A forma específica como o capitalismo se apresentava nos países atrasados (combinando dialeticamente elementos modernos com estruturas arcaicas) não seria decorrência, segundo Trotsky, de uma mera questão de “estágios” diferenciados entre estes e os países de capitalismo avançado. Essa assertiva, por sua vez, alicerçava-se numa perspectiva que compreendia o capitalismo mundial como uma totalidade contraditória, e não como uma mera soma de nações (partes) isoladas.

Justamente por serem fragmentos integrados dialeticamente em um todo (o capitalismo mundial), as regiões “coloniais” e “semicoloniais” não poderiam desenvolver a sua história em separado, e, portanto, não lhes seria possível superar seu atraso passando-se a um “estágio” superior ainda dentro dos marcos do capitalismo. O sistema capitalista, em especial a partir de sua fase imperialista, não deixaria mais espaço para esses desenvolvimentos “autônomos”, impossibilitando que a história das regiões retardatárias repetisse a história das regiões pioneiras. Do mesmo modo, o desenvolvimento histórico das nações centrais dependeu e dependia inteiramente das relações estabelecidas com as formações econômico-sociais periféricas. Essa perspectiva totalizante de Trotsky era a base de seu internacionalismo, que se opunha frontalmente à teoria do “socialismo num só país” sustentada pelos estalinistas, o que o levava à defesa de posições políticas completamente distintas desses últimos.[2]

Nos trechos a seguir, extraídos de A revolução permanente, pode-se perceber a imbricação existente entre a concepção de Trotsky acerca do desenvolvimento histórico dos países atrasados e suas propostas políticas para o proletariado destes:

“Como instituir, então, a ditadura do proletariado em vários países atrasados, como a China, a Índia etc.? Respondemos: a história não se faz por encomenda […] É preciso não tomar, nunca, como ponto de partida a harmonia preestabelecida da evolução social. Apesar do afetuoso abraço teórico de Stálin, a lei do desenvolvimento desigual ainda existe, manifestando sua força tanto nas relações entre países como na correlação das diferentes séries de fenômenos dentro de um mesmo país. A conciliação do desenvolvimento desigual da economia e da política só pode ser obtida na escala mundial. Isso significa, em particular, que o problema da ditadura do proletariado na China não pode ser considerado exclusivamente nos limites da economia e política chinesas. E estamos, aqui, diante de dois pontos de vista que se excluem reciprocamente: o da teoria internacionalista e revolucionária da revolução permanente e o da teoria nacional-reformista do socialismo num só país. Não só a China atrasada, mas nenhum país do mundo poderá construir o socialismo dentro dos seus quadros nacionais: a isso se opõem não só as forças produtivas que, altamente desenvolvidas, ultrapassam os limites nacionais, como também as forças produtivas que, insuficientemente desenvolvidas, impedem a nacionalização […].

Significará isso que todo país, mesmo um país colonial atrasado, esteja maduro senão para o socialismo, ao menos para a ditadura do proletariado? Não, não significa. Mas, então, como fazer a revolução democrática em geral e nas colônias em particular? Respondo com outra pergunta: E quem disse que todo país colonial está maduro para a realização integral e imediata de suas tarefas nacional-democráticas? É preciso inverter o problema. Nas condições da época imperialista, a revolução nacional-democrática só pode ser vitoriosa quando as relações sociais e políticas do país estejam maduras para levar o proletariado ao poder, como chefe das massas populares […] Na China, onde o proletariado, apesar da situação excepcionalmente favorável, foi impedido, pela direção da Internacional Comunista, de lutar pelo poder, as tarefas nacionais se realizaram de maneira miserável, instável e má, sob o regime do Kuomitang.”[3]

Partindo dessa interpretação acerca das possibilidades de desenvolvimento dos países atrasados na época do imperialismo, Trotsky polemizou com a proposta de uma “ditadura democrática” (sob direção da “burguesia nacional”) lançada para China e demais países “coloniais” e “semicoloniais” pela III Internacional:

“Não se pode prever quando e em que condições um país estará maduro para a solução verdadeiramente revolucionária das questões agrária e nacional. Em todo o caso, podemos afirmar, desde já, com toda a certeza, que tanto a China como a Índia só poderão chegar a uma verdadeira democracia popular, isto é, operária e camponesa, por meio da ditadura do proletariado. Numerosas etapas diferentes podem esperá-los nesse caminho. Sob pressão das massas populares, a burguesia ainda dará passos à esquerda, para depois ferir o povo de maneira impiedosa. Períodos de “dualidade de poderes” são possíveis e prováveis. Uma hipótese, porém, está completamente excluída: a de que possa haver verdadeira ditadura democrática que não seja a ditadura do proletariado. Uma ditadura democrática independente só pode ter o caráter do Kuomitang, o que significa que será inteiramente dirigida contra os operários e os camponeses. É preciso compreender e ensinar isso às massas, sem ocultar a realidade das classes com uma fórmula abstrata.”[4]

Salvo em seus inúmeros escritos sobre a Rússia, nos quais os particularismos da Terra dos czares foram bastante abordados,[5] Trotsky não se dedicou a reflexões aprofundadas da “questão nacional” em outras formações sociais. Entretanto, em suas análises sobre diversos países do que hoje se costuma chamar de “Sul Global”, buscou sempre levar em conta, mesmo que por meio de pesquisas tangenciais, suas especificidades histórico-sociais, tomando-os sempre, não custa lembrar, como partes de uma totalidade, o capitalismo mundial.

Ainda em 1930 (ano da publicação de A revolução permanente), dando continuidade à sua luta contra o “etapismo” da IC, Trotsky escreveu textos referentes ao caráter da revolução em países como Itália e Índia. Afirmando o papel contrarrevolucionário de todos os setores das classes dominantes daqueles países, Trotsky mais uma vez apontou o proletariado como o único sujeito capaz de dirigir qualquer processo revolucionário que resolvesse neles as tarefas “democráticas” e/ou “nacionais” pendentes. Nesse sentido, para Trotsky, não poderia, na Itália, ter lugar um regime “democrático”, na qualidade de etapa intermediária entre o fascismo e uma eventual futura ditadura do proletariado, que fosse resultado de uma luta vitoriosa da burguesia italiana contra o regime de Mussolini. O revolucionário russo admitia a possibilidade de que, no país, pudesse vir a existir no pós-fascismo um regime parlamentar e “democrático”, o qual, em sua concepção, só poderia ser obra de uma revolução proletária “insuficiente madura e prematura” que, abortada, permitiria à burguesia, após uma crise revolucionária, restabelecer, de modo contrarrevolucionário, seu domínio sobre bases “democráticas”. De modo algum, assinalava Trotsky, uma eventual democracia burguesa na Itália poderia decorrer de uma exitosa revolução “democrática” encabeçada pela classe dominante.[6] Também a batalha pela “libertação nacional” da Índia do jugo do imperialismo inglês não poderia, segundo ele, contar com a participação dos “opressores internos”, os quais, conforme crescia a luta das massas pela independência, tinham seus “desejos” de “separar-se dos estrangeiros” diminuídos.[7]

Nos primeiros anos da década de 1930, em função do processo revolucionário espanhol iniciado com a queda da ditadura bonapartista de Primo de Rivera (1930) e a subsequente derrocada da monarquia (1931), Trotsky pôs-se a produzir uma série de escritos dedicados a analisar o papel político a ser desempenhado pelo proletariado daquele país para que a revolução viesse a ser bem-sucedida.  Constatando o caráter “débil” da burguesia espanhola, Trotsky, mais uma vez, defendeu que somente o proletariado, em aliança com os camponeses, poderia realizar as tarefas de uma revolução “democrático-burguesa” na Espanha atrasada, como a reforma agrária e a destruição dos privilégios da Igreja Católica. Por conta disso, em seus escritos do período 1934-1937 (decisivo para o destino da Revolução Espanhola), condenou violentamente a política de frente popular levada a cabo pela Internacional Comunista na Espanha.  Creditando um caráter “progressista” à burguesia espanhola e orientando a aliança dos operários e camponeses com ela, os estalinistas defenderam, à época, que a revolução deveria se encerrar nos marcos de uma república democrático-burguesa, o que impediria, segundo a IC e seus adeptos, a vitória do fascismo. A fragorosa derrota do proletariado espanhol na revolução, assim como a responsabilidade da IC e do Partido Comunista Espanhol nesse histórico fracasso, são bastante conhecidos por todos. A burguesia espanhola, depositária da confiança dos estalinistas, demonstraria todo o seu caráter “progressista” e “democrático” ao receber o general Francisco Franco de braços abertos.[8]

Em 1935, quando se encontrava dedicado a combater a política de frente popular implementada pela IC na Espanha, Trotsky escreveu ainda breves comentários acerca das tarefas do movimento revolucionário na África do Sul, então colônia da Grã-Bretanha. Mais uma vez afirmando a existência de uma dinâmica histórica própria aos países atrasados, “coloniais” e “semicoloniais”, defendeu que a superação das questões “agrária”, “nacional” e “racial” estava diretamente relacionada à luta pela implementação da ditadura do proletariado (negro e branco) no país, opondo-se, dessa forma, a qualquer aliança com os setores dominantes nativos em nome de uma plataforma “comum” de cunho “anti-imperialista”.[9]

Algum tempo depois, em janeiro de 1937, Trotsky desembarcaria no México, então governado pelo general bonapartista de esquerda Lázaro Cárdenas. Não obstante o acordo de não interferência na política interna firmado com o presidente, Trotsky, desde sua chegada, não se furtou a realizar análises relativas à luta de classes naquela país e ao papel que deveria nela desempenhar o proletariado. Com menos intensidade, voltou seus olhos também para outras experiências políticas da América Latina, buscando compreendê-las com partes constitutivas de uma grande realidade periférica e atrasada do sistema capitalista mundial, que atravessava uma profunda crise desde o crash da bolsa de Nova Iorque, em outubro de 1929. Em terras mexicanas, escreveu Trotsky:

“A sociedade latino-americana, como toda sociedade – desenvolvida ou atrasada – está composta por três classes: a burguesia, a pequena-burguesia e o proletariado. Na medida em que as tarefas são democráticas em um amplo sentido histórico, são tarefas democrático-burguesas, mas aqui [na América Latina] a burguesia é incapaz de resolvê-las, como o foi na Rússia e na China.

Neste sentido, durante o curso da luta de classes pelas tarefas democráticas, opomos o proletariado à burguesia. A independência do proletariado, inclusive no começo desse movimento, é absolutamente necessária, e opomos particularmente o proletariado à burguesia na questão agrária, porque a classe que governará, no México como em todos os demais países latino-americanos, será a que atrair para ela os camponeses.”[10]

Assassinado pela GPU (polícia política soviética) a mando de Stálin em 1940, Trotsky acabou por ter na América Latina não só seu último local de exílio, mas também o último local para observação de sua lei do desenvolvimento desigual e combinado e de sua teoria da revolução permanente. As suas interpretações das possibilidades históricas da América Latina sob o capitalismo contrapuseram-se a qualquer perspectiva evolucionista e “etapista” quanto aos rumos econômicos, políticos e sociais do continente. Tais interpretações, datadas de fins da década de 1930, representam, portanto, um contraponto teórico e político tanto às teses produzidas desde a segunda metade da década de 1920 pelos partidos comunistas vinculados à IC, quanto às de perspectiva “nacional-desenvolvimentistas”, provenientes de instituições como a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e similares de escopo nacional. Nesse sentido, consideramos que Trotsky, ao reconhecer uma historicidade própria aos países dependentes, e em particular à América Latina, lançou as bases teóricas do que posteriormente ficaria conhecido como “teoria da dependência”.

 

 

[1] Faz-se necessário apontarmos aqui que a própria noção de atraso é passível de ser problematizada, pois, de algum modo, pode levar a um entendimento de que há uma espécie de linha histórica evolutiva a ser seguida pelas nações. Neste livro, utilizamos tal conceito na acepção trotskista do mesmo, isto é, de modo que este tenha como seu eixo estruturante a dimensão histórico-temporal das modernizações industriais capitalistas dos países aos quais se refere.

[2] Quanto ao método internacionalista de Trotsky, ver “Totalidade e internacionalismo em León Trotsky”. Marx e marxismos, vol. 6 (nº. 10), 2018 (http://www.niepmarx.blog.br/revistadoniep/index.php/MM/article/view/252) e BIANCHI, Alvaro. “O marxismo de León Trotsky: notas para uma reconstrução teórica” in Idéias, nº. 14. Campinas, 2007, p. 57-99.

 

[3] TROTSKY, l. A revolução permanente. 2ª edição. São Paulo: Kairós, 1985, p. 120-121.

[4] Idem. As reflexões de Trotsky acerca dos rumos da revolução chinesa de 1925-1927 podem ser encontradas também, entre outros escritos, nas correspondências que trocou, à época dos eventos, com bolcheviques como Radek, Alsky e Preobrazhensky (contidas na coletânea TROTSKY, L. La teoria de la revolución permanente. Compilación. Buenos Aires: Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones León Trotsky [CEIP León Trotsky], 2000, p. 369-394) e no artigo, escrito em 1938, intitulado “La revolución china” (idem, p. 524-535).

[5] Quanto a isto, ver DEMIER, F. “A lei do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky e a Revolução Russa” in ____ e MONTEIRO, Márcio Lauria (orgs.). 100 anos depois: a Revolução Russa de 1917. Rio de Janeiro: Mauad X, p. 135-166.

[6] TROTSKY, L. “Problemas de la revolución italiana” in ____. La teoria de la revolución permanente. Compilación. Op. cit., p. 552-553.

[7] TROTSKY, L. “Tareas e peligros de la revolución en la India” in ____. La teoria de la revolución permanente. Compilación. Op. cit., p. 541.

[8] Os escritos de Trotsky acerca da Revolução Espanhola podem ser encontrados em TROTSKY, L. La revolución española. S.l: El Puente Editorial, s.d.

[9] TROTSKY, L. “Sobre las tesis sudafricanas” in ____. La teoria de la revolución permanente. Compilación. Op. cit., p. 561-567.

[10] TROTSKY. León. “Discusion sobre America Latina” in ____. Escritos latinoamericanos. 2ª edição. Buenos Aires: Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones León Trotsky (CEIP León Trotsky), 2000 p. 123-124. O texto em questão é um resumo transcrito de uma conversa realizada entre Trotsky, seus militantes-seguranças norte-americanos e o trotskista Charles Curtiss, também norte-americano.