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MUNDO

Mudar o sistema, não o clima?

Eduardo Sá Barreto*
Divulgação / Imperial College London

Jovens protestam durante Conferência da ONU para o clima

Essa palavra de ordem, que recentemente vem ganhando alguma tração nos círculos de esquerda, é portadora dos valores corretos.

Por um lado, a mudança climática nos lança em um mundo desconhecido da espécie humana, com impactos que, nas melhores hipóteses, impõem riscos inaceitáveis para contingentes imensos da humanidade. Deveria, portanto, ter sido evitada.

Por outro lado, é possível demonstrar que o sistema – ou, sendo mais preciso, a sociedade capitalista – é “geneticamente” incapaz de interromper sua marcha de destruição da natureza. Não pode parar de crescer e, por isso, não pode admitir a moderação do consumo. Não comporta o emprego de tecnologias inviáveis economicamente e, consequentemente, tecnologias apenas tecnicamente viáveis permanecem sem efeitos práticos, mesmo que tenham potencial ecológico desejável. Pior,essas tecnologias só se tornam economicamente viáveis se forem capazes de contribuir para a expansão do capital que as emprega; i.e. só podem sair do limbo se forem capazes de viabilizar crescimento. [1] Em suma, o capitalismo sustentável é um oximoro. Sendo assim, evitar a mudança do clima pressupõe não uma calibragem diferente desse sistema, mas sua completa superação.

Infelizmente, contudo, apesar de expressar sintética e corretamente a relação entre sistema e clima e de apontar corretamente o programa mínimo que deve animar nossos esforços (mudar o sistema), essa palavra de ordem traz de contrabando uma esperança impossível de sustentar. A mudança do clima não pode mais ser evitada.

Os principais climatologistas com alguma projeção pública ainda afirmam que podemos evitar os piores efeitos. O IPCC ainda propõe uma meta de limitação do aquecimento global que seria capaz de diminuir os piores riscos. No entanto, indo além do sentido nominal de afirmações/proposições como essas e avaliando o que é de fato sugerido para evitar ou diminuir os impactos, nota-se com alguma facilidade um cenário de irreversibilidade. É como se a comunidade científica estivesse afirmando, há pelo menos 13 anos: “Olha, você saltou de um penhasco de 1000 metros, sem paraquedas. Você agora está a 30 metros do chão, caindo a aproximadamente 200 km/h. Mas ainda é possível evitar o impacto ou os piores efeitos do impacto. Basta criar asas.”

A anedota acima é um pouco mais completa do que parece à primeira vista. Certamente o primeiro entendimento do leitor é perceber a impossibilidade de criar asas, tanto por limites biológicos quanto por limites de tempo. Porém, mais que isso, ainda que fosse possível criar asas instantaneamente e que esse feito fosse alcançado pelo nosso personagem de maneira igualmente instantânea, o iminente impacto e seus piores efeitos já seriam fisicamente inevitáveis. Para entender porque enfrentamos uma situação análoga, deixemos a metáfora de lado.

Tomando como referência o tempo em que a espécie humana existe no planeta (estima-se que aproximadamente 350 mil anos), é possível afirmar, a partir de dados paleoclimáticos, que a química atmosférica nunca teve tamanha concentração de gases de efeito estufa, que a temperatura média do planeta nunca foi tão elevada, que os oceanos nunca estiveram tão quentes e ácidos. Colocando em outras palavras, nós já vivemos em um planeta sem precedentes para a nossa espécie. [2]

E os efeitos mais visíveis começam a se multiplicar. Os incêndios de proporções bíblicas na Austrália, incêndios sem precedentes na Groelândia, Sibéria e Alaska, emissões massivas de metano da permafrost siberiana, tornados no Canadá, furacões de categoria máxima no Caribe, quebras de safra por todo o mundo. Completar essa lista é esforço em vão, mas esse parágrafo e o anterior servem para indicar o seguinte: as mudanças climáticas já estão em curso e estão se acelerando. Mais que isso, ainda que nossa influência sobre o sistema climático fosse magicamente suspensa integral e imediatamente, as mudanças continuarão ocorrendo por séculos ou, possivelmente, até mesmo por milênios.

A esta altura, as implicações e os desafios já devem estar claros. Para qualquer escala de tempo que nos importe, o sistema climático não está simplesmente transitando para um novo estado mais hostil, porém estável. Está, na verdade, em uma trajetória de transformação que desafiará crescentemente nossa capacidade de sobreviver e, ademais, viver de alguma forma que valha a pena. Nossos esforços devem portanto estar direcionados, por um lado, a nos anteciparmos aos impactos, isto é, à adaptação profunda. Por outro, a suprimir completa e definitivamente o motor dessa desestabilização geológica, o capitalismo.

Por tudo isso, proponho uma alteração da palavra de ordem: “Destruir o sistema, não a vida!”

 

* Eduardo Sá Barreto é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador do NIEP-Marx e autor do livro “O Capital na Estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas”.

 

NOTAS

[1] Uma demonstração muito mais cuidadosa e rigorosa pode ser encontrada em: https://www.academia.edu/40899023/_LIVRO_COMPLETO_O_capital_na_estufa_para_a_cr%C3%ADtica_da_economia_das_mudan%C3%A7as_clim%C3%A1ticas.

[2] Para uma discussão mais detalhada desses dados e suas implicações, cf. https://www.academia.edu/39190277/Mudan%C3%A7as_clim%C3%A1ticas_e_a_tarefa_do_campo_cr%C3%ADtico_pelo_abandono_do_voluntarismo_geol%C3%B3gico.