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TEORIA

Jesus como sujeito histórico (Parte 2)

Wesley Carvalho*

Representação de Jesus Cristo

Um rei apocalíptico

 

Jesus lhes disse: “Cuidado, que ninguém

os engane. Muitos virão em meu nome

dizendo ‘Sou eu’ e enganarão a muitos.”

Marcos 13: 5-6

 

Na primeira parte do nosso texto, publicada anteriormente, mostramos problemas do Novo Testamento como fonte histórica para a vida de Jesus. Agora, veremos alguns resultados de pesquisas históricas avançadas sobre o pregador.

No século XIX, surgiram alguns estudos sobre a vida de Jesus a partir de um ponto de vista crítico sobre as fontes neotestamentárias (o que, para pelo menos dois autores, David Strauss e Ernst Renan, provocou suas demissões das universidades onde trabalhavam). Já na primeira metade do século XX, estudos foram marcados pelo ceticismo quanto à capacidade metodológica para se conhecer Jesus historicamente[1]. Entretanto, principalmente nas últimas décadas do século passado, resultados importantes foram sendo estabelecidos, muito embora divergências também sejam marcantes.

Mas como se poderia conhecer Jesus historicamente com todas as complicações (apontadas no nosso primeiro texto) que tem as fontes do Novo Testamento? Pode-se oferecer um pequeno resumo de métodos adotados pelos especialistas[2]. Um dos critérios se chama “atestado independente”. Como vimos anteriormente, a leitura mais difundida academicamente indica, além da proeminência de duas fontes mais antigas, a independência de diferentes tradições. São elas: Marcos (primeiro evangelho escrito que serviu de base para os evangelhos de Lucas e Mateus), Q (conjunto de ditos de Jesus independente de Marcos e que também serviu como base para Lucas e Mateus), M (referências próprias de Mateus), L (referências próprias de Lucas), e o evangelho de João (tardio e majoritariamente reconhecido como independente de todas as outras fontes). Assim, quanto mais um dado se repete independentemente, mais antigo ele é e mais provavelmente remete a Jesus. Pode-se, portanto, estar relativamente seguro da associação de Jesus com João Batista, de fala sobre a destruição do Templo de Jerusalém, ou da sua crucificação. Por outro lado, há elementos que aparecem apenas em uma tradição, e são entendidos como pouco prováveis.

Um outro critério é o da disparidade (ou “constrangimento”), e diz respeito à autenticidade de afirmações que não se encaixariam nas visões e mensagens valorizadas pelos cristãos, mas que mesmo assim foram veiculadas. Um exemplo é o fato de que Jesus cresceu em Nazaré. Além de esse dado estar em diferentes tradições, ele não é algo a que os cristãos estariam propensos a inventar, uma vez que se trata de uma vila desconhecida sem maior significado. Por isso, se entende como muito provavelmente certo que Jesus era nazareno. E pelo mesmo critério, usado de forma inversa, se pode descartar que Jesus tenha nascido em Belém, cidade de Davi, onde, de acordo com a tradição judaica, um messias deveria nascer. Assim, entende-se como invenção o que está no evangelho de Lucas: um censo romano (sem nenhum sentido concreto) que teria obrigado seus pais a viajarem de Nazaré para Belém, de forma que Jesus pudesse ter nascido ali [3].

Enquanto Jesus e seus seguidores eram palestinos, falantes de aramaico e de maioria camponesa, os autores dos textos estavam em outras partes do Império Romano, eram letrados em grego, urbanos e mais ricos

Outro critério é o da “credibilidade contextual”. Um elemento fundamental da pesquisa sobre Jesus é a consideração de que a sociedade onde Jesus viveu é muito diferente daquela dos escritores neotestamentários. Enquanto Jesus e seus seguidores eram palestinos, falantes de aramaico e de maioria camponesa, os autores dos textos estavam em outras partes do Império Romano, eram letrados em grego, urbanos e certamente mais ricos[4]. Além disso, em grande parte, fizeram seus registros após a guerra romana contra os judeus, próxima ao ano 70 d.C.. A importância deste evento em particular e considerações sobre o contexto de vida de Jesus serão apreciados mais à frente.

Nos anos 1980 e 1990, cerca de duzentos especialistas (inicialmente trinta) combinaram esforços para avaliar quais teriam sido os reais ditos e atos do Jesus histórico. Trata-se do Jesus Seminar, financiado pela Westar Institute [5] Encontravam-se duas vezes por ano, debatiam, e, através de uma ou mais votações chegavam à definição do grau de autenticidade dos textos (além dos evangelhos canônicos, consideraram também o Evangelho de Tomé). Chegaram à conclusão que apenas cerca de 18% dos ditos de Jesus poderiam ser mesmo atribuídos a ele (inclusive como relativamente próximo ao que ele teria dito). Em relação aos atos de Jesus que seriam autênticos, a porcentagem é semelhante, 16%. Depois de filtrar o que seria mais provavelmente vindo do Jesus real, o Seminário chegou a um entendimento abaixo resumido:

“…um mestre sábio itinerante, não preocupado em fundar uma nova religião, mas dedicado à pregação e à interpretação de questões relativas à lei e a problemas cotidianos do povo. Anunciou a vinda do Reino de Deus, cuja expectativa já era presente na sociedade judaica do  séc. I. Falou de Deus na imagem de um pai amoroso, confraternizou com marginalizados e os adversários. Partindo da premissa que Jesus não teria nada a ver com a apocalíptica, o Seminário chegou à conclusão que ele seria um mestre sábio preocupado com o melhoramento e a transformação da vida e da realidade, mais do que um profeta escatologico-apocalíptico, anunciando o fim do mundo.”[6]

Com uma atuação midática considerável do Westar Institute, as publicações ligadas ao Seminário tiveram um impacto academicamente e para o grande público. Há controvérsias, entretanto, em relação à parte de resultados da pesquisa. Vejamos algumas considerações sobre duas características discutidas sobre Jesus: sua mensagem apocalíptica e sua divindade.

Há mais de um século, a maioria dos estudiosos críticos entende que o apocalipsismo está no centro da mensagem de Jesus.

Há mais de um século, a maioria dos estudiosos críticos entende que o apocalipsismo está no centro da mensagem de Jesus. Isso significa que compreendia um mundo dividido entre o bem e o mal, sem espaço neutro, com a iminência da intervenção de Deus para acabar com a miséria e a injustiça e o estabelecimento de seu reino. Essa visão tem uma carga política direta, como as formulações religiosas na Palestina de uma forma geral[7], e não é uma peculiaridade de Jesus, mas algo amplamente difundido em seu tempo e presente em outras fontes judaicas. A negação por parte do Seminário dessa característica apocalíptica fartamente comprovável de Jesus[8] é o principal alvo de críticas ao grupo. Na verdade, de saída, como premissa de suas pesquisas, eles rejeitaram explicitamente considerá-lo dessa forma. Assim, se pode dirigir uma crítica a John Dominic Crossan, um dos principais nomes ligados ao Seminário, por abstrair Jesus dos movimentos sociais de revolta e luta armada de sua época para situá-lo como um mestre ético de impacto individual[9]. Certamente, um Jesus mais palatável.

Há um consenso muito forte entre os especialistas, e para isso os resultados do Seminário também convergem, de que Jesus não se considerava divino e nem pretendia fundar uma nova religião, mas que passou a ser entendido assim com o decorrer do tempo[10] e através do choque e da consequente vitória sobre outros entendimentos cristãos vigentes na antiguidade[11]. Não nas cartas paulinas nem nos três primeiros evangelhos, mas apenas no evangelho de João, o mais tardio e o mais teologicamente carregado, é que há referências a Jesus se declarando Deus. Não só a divindade de Jesus, mas o próprio cristianismo enquanto religião apareceu apenas posteriormente: “…a experiência cristã como algo separado do judaísmo emerge muito mais no final do século II do que no século I.”[12]

Na verdade, o título frequentemente atribuído a Jesus é Cristo, que é uma tradução grega para “messias”. Esta palavra significa mais literalmente “aquele que é ungido”, com a conotação de ser alguém escolhido por Deus para cumprir seus propósitos. Na tradição judaica, o termo foi aplicado comumente a seres humanos, especialmente, ainda que não exclusivamente, ao rei de Israel. No tempo de Jesus, e consoante com a tradição judaica, se esperava ser o messias um soberano de Israel capaz de torná-la independente do domínio estrangeiro por meio da força militar ou de uma intervenção divina direta tendo, como consequência, a criação de um estado utópico, o reino de Deus, livre de todo mal. É com essa perspectiva que Jesus se autoproclamava messias e formou seu movimento[13]. Veja-se assim que Jesus não é apenas alguém sensível com a situação de pobres e oprimidos pretendendo corrigi-la com uma crítica aos poderosos da ocasião: ele pretendia tomar o poder e ser um novo governante da Palestina. Nas palavras de Reza Aslan,

“Ele está associando-se ao paradigma do messias davídico, o rei que governará a terra em nome de Deus, que vai reunir as doze tribos de Israel (no caso de Jesus, por meio de seus doze apóstolos, que vão “sentar-se em doze tronos”) e restaurar a nação à sua antiga glória. Ele está pretendendo a mesma posição que o rei Davi, “à direita do Poder”. Em resumo, ele está chamando a si próprio de rei.”[14]

“E uma vez que o reino de Deus é construído sobre uma inversão completa da presente ordem, na qual os pobres tornam-se ricos e os humildes tornam-se poderosos, que melhor rei para governá-lo em nome de Deus do que aquele que incorpora a nova ordem social já assim invertida em sua cabeça? Um rei camponês. Um rei sem lugar para reclinar a cabeça. Um rei que veio para servir, não para ser servido. Um rei montado em um jumento.”[15]

O messianismo de Jesus é material, concreto, terreno e imediato. Significava uma sublevação contra a associação entre a opulenta e pecaminosa classe dominante judaica com o Império Romano. A ideia de um reino de Deus celestial, de sentido mais estritamente espiritual, é uma deturpação posterior. Na próxima parte do nosso texto, trataremos das leituras sobre Jesus que valorizam o contexto de dominação e resistência na Palestina sob domínio romano, isto é, o meio que gerou seu movimento messiânico e apocalíptico. Veremos também por que foram se dando as alterações no cristianismo primitivo que domesticaram o real caráter do seu ministério.

 

* Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

 

NOTAS

[1]             CHEVITARESE, André & FUNARI, Pedro Paulo. Jesus Histórico. Uma brevíssima introdução. Rio de Janeiro: Kline, 2016. p. 42-8

[2]             Para uma breve exposição de métodos de especialistas, ver o capítulo 3 de EHRMAN, Bart. Como Jesus se tornou Deus. Editora LeYa, 2014. Para uma exposição mais detalhada, ver o sexto capítulo de MEIER, John. A marginal jew. Rethinking the historical Jesus. Nova Iorque: Doubleday, 1991.

[3]             Sobre a narrativa do censo romano e do nascimento em Belém, ver ASLAN, Reza. Zelota. A vida e a época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. pp 54-6.

[4]             Idem. p. 197

[5]             Cujos nomes dos financiadores, entretanto, não são revelados. De acordo com uma diretora do instituto, os doadores de recursos do Westar são pessoas comuns, e manter a privacidade de seus nomes seria importante já que dois pesquisadores teriam perdido suas posições em universidade por conta de sua ligação com a organização (talvez algo não muito diferente do que se passou com Strausse e Renan no século XIX). Segundo ela, não há grandes corporações ou grandes organizações por trás.  Em matéria do ano 2000, se constata que a organização se sustentava também com venda de livros. A iniciativa do Jesus Seminar foi de Robert Funk, que financiou sozinho os primeiros encontros do grupo. Cf. BURGER, John. “Funding the Jesus Seminar” IN: Crisis Magazine. https://www.crisismagazine.com/2000/funding-the-jesus-seminar Acesso em 25 de janeiro de 2020.

[6]             SCHIAVO, Luigi.”A busca pelas palavras e atos de Jesus: o Jesus Seminar” IN: Caminhos. Goiânia. v. 7 n. 1 jan/jun 2009. O texto inclui um balanço de contribuições e também faz críticas ao Seminário.

[7]             Sobre o sentido político das expressões religiosas na Palestina, ver ASLAN, Reza. Zelota…

[8]             EHRMAN, Bart. Como Jesus se tornou Deus…. op. cit.

[9]             Esta é a avaliação que está em SCHIAVO, Luigi “A busca pelas palavras…” op. cit.

[10]           Ver principalmente o capítulo 3 de EHRMAN, Bart. Como Jesus se tornou Deus…op. cit..

[11]           Brevíssimamente mencionados no nosso primeiro texto.

[12]           CHEVITARESE, André. “Entrevista com André Leonardo Chevitarese: um novo olhar sobre o estudo do Jesus Histórico e do Paleocristianismo.” IN: Romanitas. Revista de Estudos Grecolatinos, n. 1, 2013.

[13]           Uma outra expressão usada por Jesus, “filho do homem”, é objeto de debate entre especialistas. Há muito discrepantes divergências sobre o que ela significaria e se Jesus a teria ou não aplicado a si mesmo. Ver RIBEIRO, Osvaldo Luiz. ““Este é o rei dos judeus” – o título “filho do homem” na camada histórico-traditiva pré-pascoal como referência à tradição veterotestamentária do rei” IN: Revista Jesus Histórico e sua recepção. Ano IV. N. 6. 2011.

[14]           ASLAN, Reza. Zelota…p.164

[15]           Idem. p. 163. Sobre Jesus como autoproclamado rei, ver também EHRMAN, Bart. Como Jesus se tornou Deus…. op. cit.