“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
(Eduardo Alves da Costa)
Sou negra, feminista interseccional, educadora popular, de esquerda e socialista. Tenho trajetória construída a partir da atuação junto aos movimentos sociais, às mulheres negras, ao povo da favela, à população LGBT, à escola pública, às organizações e comunidades que lutam contra o desmonte das pautas socioambientais. Para nós, é sempre um orgulho dizer de que lado estamos e ressaltar a nossa opção por lutar em defesa de um povo que historicamente teve seus direitos negados.
Vivemos um momento da história que precisamos, mais do que nunca, reafirmar o nosso desafio pela construção de uma nova sociedade, livre do racismo, do sexismo, da divisão de classes e de todas as opressões. Momento também de sermos enfáticos em defender as liberdades democráticas, já tão frágeis e negadas para a maioria da população.
Na nossa caminhada, aprendemos que existe uma característica na história da humanidade, em todos os tempos: os explorados e os oprimidos, mais cedo ou mais tarde, se levantam contra os que exploram e oprimem. Na maior parte das vezes a força dos poderosos os esmagam, os desanimam, os cooptam e a História Oficial os esquece.
Numa conjuntura marcada pelo avanço do fascismo e da aniquilação do pouco de direitos conquistados e pela busca de derrotar aquelas e aqueles que resistem, pergunto: a quem interessa suprimir a memória das revoltas e revoluções populares? Ou julgar processos de séculos atrás com as lentes do presente, cometendo anacronismo histórico? Essas revoluções e revoltas populares devem ser entendidas considerando o contexto das sociedades contra às quais se insurgiram, nos respectivos momentos históricos.
Uma esquerda, para que assim possa ser chamada, deve estar comprometida com a “história dos de baixo”. As revoltas brasileiras, desde a Colônia ou as que tomam as ruas e incendeiam ônibus quando a polícia mata negros e pobres na favela, devem ser julgadas, em primeiro lugar, pelo grito de justiça e liberdade que representam.
Podemos, como exercício, fazer a seguinte reflexão: se estivéssemos na Rússia de 1917, estaríamos ao lado do Czar e da Duma, do Governo Provisório de Kerensky, que mantinha a guerra, ou com Lênin e os Soviets, que propunham paz, pão e terra? Ou ainda: na África do Sul, estaríamos do lado do Mandela na luta armada, ou ao lado do Apartheid? Com o povo do Vietnã, que matou 50 mil soldados estadunidenses, ou com as tropas dos EUA?
As revoluções burguesas, como a Francesa, não foram um passeio no parque em tarde ensolarada. Não esqueçamos o Período do Terror implantado por Robespierre na França, nem tampouco as milhares de mortes provocadas pelo colonialismo contra os povos originários das Américas, da África e do Oriente. O capitalismo, para se impor, vem produzindo, ao longo dos séculos, inúmeros períodos de terror e violência. Basta olharmos para as mais de 1800 pessoas mortas pela polícia do Rio de Janeiro no ano passado para entender que, por meio do Estado, o capital criminaliza a pobreza, institucionaliza o racismo e produz desigualdades. Portanto, ser de esquerda, para nós, é entender a diferença entre processos revolucionários voltados para emancipar o povo e garantir-lhe uma vida digna e aquelas ações voltadas à manutenção do poder nas mãos da mesma elite de sempre.
À esquerda permanecemos com o horizonte ecossocialista. Todos os movimentos, todas as revoluções cometem erros, às vezes graves, indefensáveis. Outras são traídas ou degeneram. As que se tornam vitoriosas, mesmo que por pequenos períodos, mergulham em um mar de contradições na luta por sua sobrevivência, atacadas de todos os lados pela ordem dominante. Se, por isso, as invalidamos como experiência histórica, como símbolo de que as pessoas e os povos se revoltam e lutam, nos somamos ao coro dos contentes e à história contada pelos vencedores. Valorizar apenas as resistências derrotadas e jogar na lata do lixo as que tiveram que lidar com as contradições da vitória, nos tornaria uma esquerda que não pode e não quer vencer. Utopistas e não revolucionários. Isso não nos compromete no presente com os equívocos do passado. Nosso projeto de mundo atual se ampara na resistência dos explorados e oprimidos do passado, mas busca superar seus erros à luz das questões e das lutas atuais.
Transformar o projeto de esquerda em realidade, vai muito além da tentativa de agradar uma suposta “opinião pública” ou uma audiência eleitoral. É preciso fazer a ligação entre a utopia e a ação efetiva. Elaborar uma estratégia política concreta que mobilize as pessoas para lutar é o primeiro grande desafio, se queremos chegar mais longe do que à auto satisfação da defesa de valores e princípios puros, belos, mas irrealizáveis. Partir da indignação que domina a existência dos oprimidos e explorados, das cidadanias de segunda categoria, daqueles que, com fome, servem os banquetes dos abastados; construir uma compreensão ampla e difundi-la pedagogicamente sobre as causas dessas mazelas, da catástrofe cotidiana que é o capitalismo, da sua história brutal de colonização, imperialismo e morte; agir em direção à uma estratégia emancipadora, que usurpe o poder político e econômico das classes dominantes e os distribua, democratizando-os; e que, por fim, saiba resistir aos ataques que virão tanto no âmbito militar como no ideológico, buscando derrotar e desmoralizar a transformação. São passos mais ou menos inevitáveis de quem quer levar adiante uma transformação anticapitalista séria.
No momento em que a mentira impera, os fascistas se tornam cada vez mais poderosos e as máquinas profissionais de comunicação dominam as narrativas nas redes sociais, como agir? Não viemos parar nessa situação porque mantivemos as bandeiras levantadas e seguimos reivindicando a memória das revoltas e revoluções. Foi justamente o contrário. As esquerdas majoritárias no mundo e no Brasil venderam o sonho de que moderando o discurso, abrindo mão de símbolos e princípios históricos, conciliando com o liberalismo e com a burguesia e praticando a inclusão social através do mercado, alcançaríamos um mundo mais justo. O resultado foi outro. Cada passo dado atrás ou não dado adiante foi acompanhado por um passo à frente das classes dominantes e, infelizmente, da extrema-direita. E o pior é que, de todo modo, mesmo a esquerda mais rósea foi taxada de comunista radical e assassina. Abrir mão dos símbolos, das propostas e da memória da esquerda radical, ao invés de significar “sair da bolha”, pode significar o apagamento, a desmoralização e a derrota completa.
Só sabe pra onde vai quem sabe de onde veio. A esquerda anticapitalista não deve se envergonhar de sua história. Deve saber tirar delas as lições para construir as revoluções do nosso tempo, dos nossos povos e dos nossos territórios. Deve encarar de frente o fascismo e revelar a todos como ele é grotesco e assassino. Deve revelar a hipocrisia dos liberais que “fazem a egípcia” diante da barbárie. E deve ter a coragem de dizer que os privilégios políticos e econômicos dos de cima devem acabar se quisermos pôr fim aos sofrimentos dos de baixo.
Nossa revolução será preta, feminista, ecológica e fruto das lutas de todas as pessoas exploradas e oprimidas de todos os tempos, ou não será!
*Talíria Petrone é professora e deputada federal (PSOL-RJ).
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