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BRASIL

As faces do neofascismo do Bolsonazi (Parte 3)

Paulo César de Carvalho

A direita, com sua propaganda impressionista, sempre tratou de associar esquerda com comunismo e comunismo com ditadura e totalitarismo.
(SADER, Emir. O anjo torto: esquerda (e direita) no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 67).

A força dos discursos anticomunistas/antipetistas atuais serve de laboratório para ressaltar a relevância do tema, bem como para mostrar, mais uma vez, a sua capacidade de incendiar a imaginação da direita.
(MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Anticomunismo, antipetismo e o giro direitista no Brasil”. In: Pensar as direitas na América Latina. Bohoslavski, Ernesto et al. (Org.). São Paulo: Alameda, 2019, p. 76).

Retrato do inimigo

Não é novidade que o anticomunismo (parido na Era Vargas e crescido na ditadura militar) foi revisto e atualizado, adquirindo outras grotescas feições nestes novos velhos tempos, para se tornar quase sinônimo de “antipetismo” no discurso bélico do truculento ex-capitão terrorista e de sua tropa bolsomínica (antes, durante e depois da sórdida campanha que o conduziu ao Palácio do Planalto). Os urros da horda neofascista que acompanharam os estampidos das balas à caravana de Lula em 2018, pois, não são um fato episódico, pontual, isolado: “lincha que é comunista” é signo emblemático do quadro geral regressivo que vem se configurando desde o desastroso desfecho das jornadas de 2013, capitalizadas pela direita raivosa (encarnada, sobretudo, pelo MBL). Intensificando-se entre as manifestações reacionárias dos camisas verde-amarelas da CBF em 2015 e o impeachment de Dilma Rousseff no ano seguinte, agravando-se com a prisão do ex-presidente Lula em abril de 2018, consolidou-se – seis meses depois – com a fatídica e previsível vitória do facínora neofascista nas urnas (em 28 de outubro de 2018).

Não é novidade que os fortes ventos conservadores já indicavam a atmosfera reacionária que se desenhava nas carregadas nuvens de chumbo do céu “democrático”: a viagem de Luiz Inácio Lula da Silva até à sede da Polícia Federal em Curitiba – não se pode esquecer – enfrentou sérias turbulências autoritárias a bordo do avião Cessna 208 Grand Caravan. Não há sombra de dúvida de que não foi um voo em céu de brigadeiro: aliás, reinterpretando a expressão popular sob as condições anormais de alta temperatura e repressão, o preso político parece quase ter voado num céu de brigadeiro Burnier. O trocadilho, infelizmente, vem bem a calhar, trazendo à memória o pesadelo de 1968, quando o hediondo Plano Para-Sar do oficial terrorista da Aeronáutica previa lançar ao mar as maiores lideranças políticas de oposição ao nefasto regime fardado. Para que a analogia não soe anacronicamente disparatada, basta lembrar o vazamento de dois sintomáticos áudios dessa badtrip, que circularam pouco depois aos quatro cantos das redes sociais: no primeiro, uma voz não identificada ordena ao piloto “leva e não traz nunca mais”; no segundo, vocifera à tripulação “manda esse lixo janela abaixo”.

Não é novidade que a Força Aérea Brasileira confirmou a veracidade dos impropérios antilulopetistas, síntese trovejante dos “ventos uivantes” bestiais que sopram cinzas fúnebres de tenebrosos tempos tempestuosos, balançando o lábaro da lábia “patriotária” – sem estrelas vermelhas – no frágil anil da verde democracia (que nunca amadureceu) da República dos Bananas (verdes). Com o perdão dos trocadilhos digressivos (sempre no gatilho), eis as palavras literais da nota oficial da FAB sobre o infausto fato: “os dois áudios recentes envolvendo comunicações aeronáuticas e contendo comentários externos são verdadeiros”. Essas provas incriminadoras, enfim, estão no YouTube para qualquer cego “São Tomé” ouvir e não descrer que o absurdo é verdade – as bizarras interferências do espectro neofascista na frequência das torres de Congonhas (SP) e de Bacacheri (Curitiba) não foram forjadas pelos controladores de voo, obviamente, como parte de um ardiloso plano da Aeronáutica para salvar o ex-presidente do bombardeio incessante da mídia golpista e do frenético tiroteio de acusações inverídicas da enfurecida turba de adversários políticos, evitando assim a vertiginosa queda em desgraça do PT frente à opinião pública.

Não é novidade que os berros ensandecidos de “lincha que é comunista” e o grito imperativo “manda esse lixo pela janela” reverberam – da terra em transe antidemocrática ao céu de brigadeiro autoritário – sentenças sumárias de morte arbitradas pelo mesmo bárbaro tribunal bolsomínico de juízes milicianos e jurados linchadores anticomunistas. Esses episódios violentos, de caráter violentamente intimidatório, trazem mais uma vez à memória o sinistro passado da repressão militar e paramilitar. Por exemplo, as ações terroristas da organização de extrema direita MAC (Movimento Anticomunista), ainda no governo de João Goulart: em 1962, os fascistas tupiniquins metralharam a fachada da sede da UNE, no Rio de Janeiro. Além de estraçalhar as vidraças, a horda intolerante – ávida por acelerar a dinâmica golpista, propagando (propagandeando) o vírus ideológico do ódio mortal contra o “inimigo vermelho” – pichou nas paredes da entidade estudantil uma frase idêntica àquelas vociferadas impunemente em 2018 contra Lula e o PT, em particular, mas tendo por alvo, evidentemente, todas as organizações de esquerda: “Abaixo a canalha comunista – MAC”.

Não é novidade que a fúria anticomunista dos “camisas verdes” da Ação Integralista Brasileira (AIB), que espalharam terror na Era Vargas sob o comando do Mussolini dos Trópicos (o caricatural – e perigoso – Plínio Salgado), foi despertada no calor das mobilizações de massas dos anos 60 (contextualizadas nos artigos anteriores). Evocando as palavras de Haroldo Lima e Adauto Arantes, dirigentes da Ação Popular (uma das organizações de esquerda mais influentes durante a ditadura militar), “a indústria do anticomunismo, que tantos dividendos já dera às classes dominantes no Brasil, de novo foi acionada até o nível da histeria”, produzindo em série diversos grupos de extrema direita, durante o curto período que precedeu o Golpe de 64: “O empresariado de São Paulo, Rio, Minas e outros estados montou organizações para aberta pregação golpista e atuação provocadora. Eram o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), para cuja fundação 400 firmas de São Paulo e do Rio contribuíram; o GAP (Grupo de Ação Patriótica), ligado ao Almirante Sílvio Heck; o Movimento Anticomunista, o Comando de Caça aos Comunistas, que pichavam paredes do Rio com frases como: Já matou seu comunista hoje?; o Instituto de Ação Democrática, especializado em corromper pleitos eleitorais em todo o país, dirigido pelo reacionário João Mendes, etc.” (ARANTES, Aldo e LIMA, Haroldo. História da Ação Popular – Da JUC ao PCdoB. São Paulo: Alfa-Omega, 1984, p. 49-50).

Não é novidade que a febre verde-amarela habitualmente se manifesta – com muito mais abrangência e intensidade – nas condições econômicas mais desfavoráveis, podendo tornar-se epidêmica com o agravamento da crise social e política. Os sintomas dessa patologia ufanista intermitente, em que pesem as variações de contexto, basicamente são os mesmos: a exaltação fervorosa da pátria entoando hinos, levantando bandeiras e vestindo as cores nacionais; a execração pública do “inimigo vermelho”, através de violentas ofensas verbais e agressões físicas. A identificação visual da intrépida tropa anticomunista é evidente, reiterando o velho clichê histórico:o nacionalismo bonapartista de Getúlio, por exemplo, amarrava lenço branco no pescoço (herança do passado chimango, inimigo do vermelho maragato) e trajava azul (farda militar das lutas gaúchas), cáqui (uniforme militar na “Revolução de 30”) e verde (cor oficial do Exército a partir de 1931); o nacionalismo integralista de Plínio Salgado usava gorro e camisa verde (redundância quebrada pela braçadeira branca com o Sigma em preto, evocando os “camisas pretas” das milícias fascistas do Duce). Não é demais lembrar que o ufanista liderou, em 1926, o Movimento Verde-Amarelo (em reação ao modernismo pau-brasil de Oswald de Andrade): autodenominado Escola da Anta (o animal, eleito signo da “brasilidade” pelos partidários da excrescência estética, era piada pronta), propunha o anacrônico projeto de “retorno ao passado” (Bolsonazi, aliás, declarou que gostaria de fazer o Brasil voltar 50 anos). Como prova de que as semelhanças entre ontem e hoje não são mera coincidência, destacamos este trecho do manifesto do paradoxal “modernismo” proclamado pelo grupo: “Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas que faremos a inevitável renovação do Brasil” (em outro artigo mostraremos excertos de discursos do ex-secretário da Cultura e do ex-ministro da Educação que retomam essa reacionária proposta).

Não é novidade que a horda de bolsoasnos converteu Boçalnazi em “mito” (escrito aqui sempre em minúsculo, para ficar à altura do beócio presidente) fantasiada com o uniforme da seleção brasileira: das micaretas golpistas de 2015 às coreografias aeróbicas durante a campanha eleitoral de 2018, entoando o Hino Nacional com a bandeira do Brasil enrolada no corpo, as bizarras performances “neopatriotárias” soaram como uma espécie de reedição canastrona do espírito verde-amarelista dos anos 30. Melhor dizendo, uma reedição da reedição, considerando que seu antecedente mais próximo, de fato, é a série reacionária das “marchas da família com Deus pela liberdade” que serviram de antessala para o Golpe de 1964. Como sintetizou o mestre dos aforismos La Rochefoucauld, em 1678, “as únicas boas cópias são as que nos revelam o ridículo dos maus originais”: de cópia em cópia, enfim, as marchas golpistas da extrema direita brasileira, remontando ao integralismo, revelam no fundo o próprio ridículo do fascismo italiano – o “mau original” copiado ainda mais toscamente pelos epígonos neofascistas bolsonazis. Um exemplo dessas versões caricaturais – mas perigosas – é o grupo que assumiu a autoria do atentado à bomba que incendiou a sede do Porta dos Fundos, o tal Comando Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira (para mais informações, consultar o primeiro artigo desta série).

Não é novidade que o anticomunismo dos integralistas nos anos 30 e o dos militares nos anos 60, sempre endossados pela conservadora classe média, é antiga bandeira do ex-capitão terrorista, estimulando a massa amorfa de fiéis a dizer “lincha que é comunista”, “joga esse lixo pela janela” ou “nossa bandeira jamais será vermelha”. Vale lembrar que Bolsonazi defendeu em 1º de setembro de 2018, num comício no Acre, a exclusão física dos opositores vermelhos, simulando um rifle com o tripé de apoio de uma câmera de filmagem, enquanto urrava aos fiéis bolsominions que metralhassem os adversários: “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre e botar esses picaretas para correr do Acre. Já que gostam tanto da Venezuela, vamos mandar essa turma pra lá”. . Essa criminosa ameaça – em flagrante afronta aos valores democráticos do Estado de Direito – ocorreu também no pronunciamento à torcida “CBF” que comemorava antecipadamente a sua vitória na Avenida Paulista (SP). Entre espasmos mentais e zurros, o “miliciano” convocou a corja reacionária para o ataque (não só aos reformistas do PT, é bom ressaltar): “Perderam ontem, perderam em 2016 e vão perder a semana que vem de novo. Só que a faxina agora será muito mais ampla. Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão pra fora ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”.

Não é novidade que o ex-milico, logoapós ser empossado no Palácio do Planalto, deu autorizaçãoao ministro-chefe da Casa Civil para demitir sumariamente todos os funcionários públicos “vermelhos”. OnyxLorenzoni justificou à imprensa a injustificável desmedida arbitrária com o típico arrogante sarcasmo, escancarando o caráter (a falta de caráter) de “saneamento” ideológico da perseguição política: “Sobre o episódio da exoneração, a gente brincou em ‘despetização’, o presidente gostou do exemplo, e todos os ministros estão autorizados a, dentro das suas pastas, proceder de maneira semelhante e ajustada a cada uma das pastas (…). Esse conceito que temos de rever está perpassando todo o governo, até para desaparelhar e permitir que o governo possa executar suas políticas”. Esse “conceito”, obviamente, remete sem meias palavras à ideia de extermínio:não é preciso explicar que o neologismo “despetização” faz alusão explícita ao termo “dedetização”, comparando os petistas a roedores peçonhentos que infestamtodos os espaços públicos e privados, disseminando a “peste vermelha” aos quatro cantos da nação. Nessa fábula rasa do governo neofascista, a moral imoral da história repressiva está na cara: os “ratos vermelhos” devem ser combatidos impiedosamente, eliminados um a um, defenestrados do cenário político nacional.

Não é novidade que mais uma vez, enfim, o aviso de perigo aos caçados e aos cassados pelas “arminhas” reacionárias está escancarado, escrito à bala em buracos garrafais nos cartazes com a cara dos “Procurados” pelos descarados neofascistas: as urnas eleitorais, portanto, não terão o poder milagroso de salvar a esquerda das urnas funerárias. Em outras palavras, isso tudo significa que esperar até 2022 para tentar virar o jogo(de cartas marcadas) no voto poderá ter um custo alto demais. Como há muito tempoLeon Trotsky alertara os incautos comunistas alemães sobre o vírus epidêmico do “nacional-socialismo” do devastadorFührernazista, “não há em política crime maior do que contar com a tolice de um inimigo forte” (TROTSKY, Leon. Revolução e Contrarrevolução na Alemanha. Editora Laemmart, 1968, p. 124).O tempo passa, a roda da história gira, mas a velha lição ainda foi pouco estudada e muito mal compreendida: “já perdemos muito tempo”.Resta pouco tempo, pois, para as letárgicasorganizações de esquerda despertarem do inebriante sonho desaída à direita pelas inviáveis vias democráticas, bloqueadas pelas barricadas semibonapartistas,somando todas as forças na Frente Única Antifascistaparafrear a dinâmica contrarrevolucionária que põe em risco de morte as garantias individuais e as liberdades coletivas do Estado de Direito, revertendo o curso (iminente) da derrota histórica dos explorados e oprimidos.