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TEORIA

Jesus como sujeito histórico

Nesta primeira parte do nosso texto, veremos um pouco da história da Bíblia e das dificuldades que se tem para se conhecer Jesus a partir das principias fontes escritas. Na segunda parte, veremos as leituras trazidas por algumas pesquisas sobre o Jesus histórico.

Wesley Carvalho*

Representação de Jesus Cristo

Novo Testamento como fonte

Uma grande dificuldade para se conhecer quem foi Jesus é que não se dispõe dos originais dos livros antigos que vieram a compor o Novo Testamento. Há computados 5.700 manuscritos gregos (língua original do Novo Testamento) e essas cópias foram na maioria das vezes feitas séculos depois dos originais, além de todas serem diferentes entre si. O volume dessas diferenças é enorme. Se, no início do século XVIII, um estudioso pôde computar algo em torno de 30 mil ocorrências de variações nos textos do Novo Testamento, hoje, a depender do critério de contagem, chega-se entre 200 mil e 400 mil.

A alteração destes textos era bastante comum na antiguidade e foi denunciada várias vezes tanto por cristãos como por seus adversários. Escribas religiosos chegaram inclusive a incluir maldições sobre copistas que acrescentassem ou suprimissem algo. Um dos trabalhos de teólogos e estudiosos há séculos é justamente comparar as cópias antigas e procurar estabelecer o que seria o escrito original ou o fato verdadeiro.

Algumas passagens são facilmente identificáveis como adições posteriores, como é o caso da famosa história da mulher adúltera trazida a Jesus. É seguro dizer que a passagem não pertence ao Evangelho de João pois não está presente nas suas cópias mais antigas, além de ter um estilo, termos e frases que destoam bastante do restante do livro. O mesmo se conclui para os versículos finais de Marcos, acrescentado por copista para dar melhor acabamento a uma história que, caso contrário, terminaria de forma abrupta (amedrontadas testemunhas da ressurreição de Jesus que não contaram a ninguém o que tinham visto).

Há alterações acidentais. Por exemplo, se trocou a palavra “perversidade” por “imoralidade sexual”, que tem grafias semelhantes em grego. A abreviação de palavras, prática comum entre os escribas, também gerou alteração entre “beber do mesmo espírito” e “beber da mesma bebida”, ou entre “servir ao Senhor” e “servir ao tempo”. Por incúria, copistas pularam linhas e deixaram de incluir versículos inteiros.

Para as alterações deliberadas, houve muitos motivos. Elas poderiam ser a mudança de uma palavra por outra –, que, para o escriba, expressaria melhor o sentido do texto – ou a correção de uma localidade indicada. Ao notar que o Evangelho de Marcos atribui a Isaías algo que não está escrito no livro deste profeta, alguns copistas, percebendo o erro, e sabendo que a fonte de informação são outros livros distintos, mudaram a frase original para “Assim como está escrito nos profetas…”. Suprimiram passagem onde se lê que Jesus não saberia quando viria o fim (afinal, ele deveria ser onisciente). Também, mudaram a genealogia de Jesus, acrescentaram informações de um evangelho em outro e fizeram vários ajustes para que as histórias dos diferentes evangelhos estivessem em maior harmonia factual.

O cristianismo não esteve pronto desde o princípio [1]. Nem o que entendemos como bíblia. Marcião, um cristão do século II, montou um cânon sagrado que incluía apenas um evangelho, além de dez epístolas. Irineu, um bispo da Gália (onde hoje é a França), perto do final do século II, foi desenvolvendo a ideia de que deveriam ser quatro os evangelhos. O seu argumento incluía dizer que quatro eram os cantos da Terra e quatro eram os ventos principais, portanto quatro deveriam ser também as biografias de Jesus. A primeira vez que um cristão listou vinte e sete livros para o Novo Testamento, número que se tem hoje, foi no século IV, ou seja, cerca de trezentos anos depois da vida de Jesus. Trata-se de um bispo de Alexandria chamado Atanásio, que escreveu às igrejas sob sua jurisdição definindo o que comporia as escrituras sagradas.

Os elementos básicos da doutrina cristã foram se estabelecendo ao longo dos séculos em meio a outras concepções que foram derrotadas. Essas disputas teológicas (que também são disputas políticas) marcaram as mudanças nos textos bíblicos.

Não apenas os livros, mas elementos básicos do que hoje é a doutrina cristã nas principais igrejas foram, na verdade, se estabelecendo ao longo dos séculos em meio a outras concepções que foram derrotadas. Essas disputas teológicas (que também são disputas políticas) marcaram as mudanças nos textos bíblicos. Um exemplo é a que envolveu os hoje chamados adocionistas, que entendiam que Jesus era humano, e não um ser divino. Adversários dos adocionistas, na primeira carta a Timóteo, aproveitando uma pequena mudança possível na grafia grega, incluíram a ideia de que Jesus era Deus manifestado em carne quando os manuscritos antigos e melhores diziam apenas de Jesus “que” se manifestou na carne.

Outra disputa teológica nos primeiros momentos do cristianismo se dava com os docetas, que entendiam que Jesus não era um ser humano de carne e osso, mas um ser completa e exclusivamente divino. Contra os docetas, alterações foram feitas para ressaltar o caráter de sacrifício humano de Jesus, como a ideia de que uma morte fisicamente sofrida fora central para trazer a salvação. Inserções nesse sentido são observáveis no Evangelho de Lucas.

Sobre a trindade, outra concepção teológica envolta em disputas no cristianismo primitivo, há uma passagem chave em 1 João 5, 7-8, que é a única em toda a Bíblia que delineia explicitamente a doutrina segundo a qual há três pessoas na divindade com todas as três constituindo um só Deus. Sem essa passagem, a doutrina deve ser inferida a partir da combinação de várias outras partes da Bíblia. Acontece que 1 João 5, 7-8 está ausente dos manuscritos mais antigos do Novo Testamento grego, a concluir-se, portanto, que se trata de uma adição posterior. Estes mesmos versículos estiveram no centro de uma acirrada discussão no século XVI, quando Erasmo publicou o Novo Testamento grego em versão impressa pela primeira vez, suprimindo a passagem, assim como nos debates que desembocariam no Grande Cisma de 1054.

O machismo também contribuiu para motivar corrupções no texto bíblico. Há muitos indícios que nas comunidades cristãs primitivas as mulheres tinham uma posição mais forte do que era comum. No entanto, com o passar do tempo, sobreveio esforço para suprimir o papel que tinham. Entre os efeitos textuais está a alteração para um nome masculino da única mulher citada como apóstola no Novo Testamento (Júnia, na epístola aos romanos) [2].

As informações mais diretas sobre Jesus provêm do Novo Testamento.

Fora do Novo Testamento, não há quase nenhuma menção a Jesus. A melhor referência não bíblica está no historiador judeu Flavio Josefo, pelo ano 94 d.C., que menciona brevemente Jesus como o irmão de Tiago, que fora apedrejado por transgredir a lei. As informações mais diretas sobre Jesus provêm, portanto, do Novo Testamento. Os textos mais antigos nele são as epístolas de Paulo, que provavelmente começaram a ser escritas duas décadas após a morte de Jesus. Nestas epístolas, há apenas três cenas da vida do pregador (última ceia, crucificação e ressurreição).

Os evangelhos como fonte, por sua vez, têm problemas para além do histórico de interferências que demonstramos. Eles não são relatos de testemunhas oculares, e nem foram pensados para ser documentos históricos, mas expressões de fé. À possível exceção de Lucas, nenhum dos evangelhos foi escrito pela pessoa que o nomeia (o que não significa que foram falsificações, já que era comum nomear um livro que pudesse refletir as crenças do homenageado).

O primeiro evangelho a ser escrito foi o de Marcos, por volta de 70 d.C. (quatro décadas depois da morte de Jesus). Talvez o autor tivesse à sua disposição alguns escritos originários. Entre 90 e 100 d.C., os autores de Lucas e Mateus fizeram seus registros de forma independente um do outro, mas tendo Marcos como modelo. Há uma base comum entre Lucas e Mateus que não está em Marcos, que deve ter sido uma compilação de ditos de Jesus. Muito embora dela não haja nenhuma evidência física, os estudiosos consideram sua existência e a chamam de Q (do alemão Quelle, que significa fonte). Essa é a leitura que compõe a “teoria das duas fontes”, a mais fortemente aceita: Marcos e Q são os registros mais antigos e confiáveis para o conhecimento sobre a vida de Jesus.

O evangelho de João, escrito entre 100 d.C. E 120 d.C., é bem menos valorizado como fonte sobre Jesus, ao lado de vários outros evangelhos escritos nos anos posteriores [5]. Alguns pesquisadores o descartam como fonte. E sobre sua formação há menos consenso: discute-se se seu autor conhecia os outros três evangelhos ou se bebia em uma tradição independente [4].

Na segunda parte de nosso texto veremos os diferentes resultados de alguns dos estudos históricos mais avançados sobre Jesus.

* Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

 

NOTAS

[1]             Inclusive, como veremos na segunda parte deste texto, pesquisas indicam Jesus como um pregador dentro do judaísmo, sem intenção de desenvolver uma nova religião.

[2]             Todas as informações trabalhadas até aqui tem como base EHRMAN, Bart. O que Jesus disse? O que Jesus não disse?Quem mudou a Bíblia e por quê?. São Paulo: Prestígio, 2006. O título original do livro é mais elegante: “Misquoting Jesus”. Ehrman é um pesquisador experimentado e uma das principais vozes no debate público sobre história do cristianismo antigo.

[3]             ASLAN, Reza. Zelota. A vida e a época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. pp 17-21

[4]             MEIER, John P. A marginal jew. Rethinking the historical Jesus.Nova Iorque: Doubleday, 1991.