29 de janeiro de 2020: por visibilidade e direitos às pessoas trans no Brasil de Bolsonaro

Lucas Marques*, de Campinas, SP

Este mês de janeiro marca o aniversário de um ano desde o brutal assassinato da travesti Quelly da Silva em Campinas, que teve o seu coração arrancado e substituído pela imagem de uma santa. O que é possível dizer sobre o dia da visibilidade trans em 2020, segundo ano do governo Bolsonaro?

A situação de violência das pessoas trans no Brasil

Vamos aos números: de acordo com relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 163 pessoas trans e travestis foram assassinadas no Brasil em 2018 (importante levar em conta a subnotificação) – das quais 60,5% tem entre 17 e 29 anos. Cerca de 30% desses casos não foram noticiados em nenhum meio de comunicação, a Antra avalia que os suspeitos foram presos em apenas 15 casos (9% do total); 8 em cada 10 crimes apresentavam requintes de crueldade (uso excessivo de violência, afogamentos, esquartejamentos), a exemplo do caso da travesti Quelly teve seu coração arrancado. Os dados que temos são significativamente precários, tendo em vista que os estudos existentes são realizados por organizações da sociedade civil, não por agências governamentais como o IBGE (quantas pessoas trans existem no Brasil?), assim como a tipificação dos casos resulta em subnotificação (o Ceará notificou zero casos de transfobia em 2017, mesmo ano do caso Dandara, notório pela viralização do vídeo no qual a travesti era torturada antes de ser morta a tiros). De acordo com o dossiê da Antra, é comum a associação injustificada das vítimas com o uso de drogas e a criminalidade, assim como a publicação das imagens de seus corpos mutilados nos meios de comunicação, sem qualquer respeito ao nome social. A recente tipificação da homotransfobia como crime pelo STF (decisão de 13/06/2019) pode auxiliar na obtenção de dados mais precisos sobre a situação de violência vivenciada cotidianamente pelas pessoas trans.

A expectativa de vida de pessoas trans no Brasil é de 35 anos (a média nacional é 75 anos), evidentemente isso está relacionado com os dados de violência transfóbica aqui apresentados. A Antra estima que 90% das travestis e transsexuais utilizam a prostituição como fonte de renda. Devido à exclusão familiar, estima-se que 13 anos é a idade média na qual as trans são expulsas de casa. Em termos de acesso a educação formal, 0,02% estão na universidade, 72% não possuem ensino médio e 56% não possuem ensino fundamental (DadosdoProjetoAlémdoArco-Iris/AfroReggae). O dossiê da Antra aponta ainda que 65% dos assassinatos são entre trabalhadoras do sexo e 60% aconteceram nas ruas. O combate ao transfeminicídio está intimamente ligado à regulamentação da prostituição e garantia dos direitos das prostitutas. O recorte de raça também é essencial para entender os dados: em 82% dos casos registrados as vítimas foram identificadas como negras ou pardas, que são maioria na prostituição de rua.

A ideologia de gênero e o governo Bolsonaro

Quem militou no movimento estudantil das cidades entre 2014 e 2015 se recorda que o tema do combate à violência de gênero e à LGBTfobia nas escolas foi central. Nesse período, houve grande enfrentamento sobre o tema da existência de uma suposta “ideologia de gênero” nas escolas, que buscava transformar as crianças em queers de maneira indiscriminada. Apoiada na retirada das discussões de gênero no PNE, a extrema-direita buscava aplicar as chamadas “emendas da opressão” que excluía os debates de gênero um da educação municipal, processo vinculado ao movimento escola sem partido a nível nacional. O próprio PL escola sem partido, proposto nas câmaras de diversas cidades tem como um dos temas centrais o combate à tal “ideologia de gênero”.

O termo ideologia de gênero foi cunhado a partir de uma nota publicada na conferência espiscopal da Igreja Católica ocorrida no Peru em 1998, entitulada “La ideologia de género: sus peligros y alcances”, em resposta a uma polêmica construída entre os setores liberais e conservadores na conferência sobre as mulheres da ONU de 1997, na qual o termo “gênero” foi fonte de fortes polêmicas. Um outro documento, chamado “Carta aos bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo, publicado em 2004 pela Congregação para a Doutrina da Fé (antigo Santo Ofício) e assinada pelo então Cardeal Ratzinger (posteriormente papa Bento XVI), trata também das preocupações do alto escalão da Igreja Católica com o tema do gênero e a defesa da família nuclear hetero-cis normativa. Além da Igreja Católica, essas preocupações são centrais também para o fundamentalismo evangélico neopentecostal, que vem ganhando cada vez mais importância no cenário político brasileiro e foi ator determinante da eleição do governo Bolsonaro. O que mobiliza uma parte importante da base eleitoral do Bolsonaro é o medo irracional de que a escola “corrompa sexualmente” suas crianças, as “ensinando” a ser gay ou trans. Pânico sexual conservador difundido através das igrejas e fake news.

Essa discussão sobre ideologia de gênero é sabidamente parte da política da extrema-direita brasileira e do arsenal ideológico do setor fundamentalista à frente do MEC e do Ministério de Direitos Humanos (este último na controversa e repugnante figura de Damares Alves, ministra do “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”) do governo Bolsonaro. Há que se questionar as razões pelas quais a extrema-direita conseguiu imprimir suas pautas ultra-reacionárias sobre a chamada “questão dos costumes”, mas o fato é que dentro do combate ao “marxismo cultural” do olavismo-bolsonarista, o combate aos avanços obtidos pelas lutas feministas é peça chave, em especial o combate à livre expressão de gênero em qualquer nível.

O pânico sexual enquanto uma das armas da extrema-direita faz com que um de seus principais alvos seja a população trans, que vem avançando da conquista de alguns poucos direitos de cidadania – como a recente decisão do STF que facilita a retificação dos documentos via cartório. Um dos principais campos de batalha é justamente a educação: banir os debates de gênero nas escolas é perpetuar esta violência em suas piores formas, mas para as pessoas trans significa a interdição simbólica de seus corpos no ambiente escolar, da maneira mais frontal possível. A negação do caráter científico dos estudos de gênero também é parte da ofensiva no terreno da educação.

Contra a transfobia e Bolsonaro, lutemos por direitos!

A saúde e a educação são terrenos importantes de enfrentamento a este governo transfóbico de extrema-direita e balizam uma série de demandas históricas da população trans brasileira. Na saúde é preciso lutar pela atenção integral à saúde da população trans: equipes multidisciplinares nos postos de saúde, a facilitação do acesso a hormonioterapia, a ampliação do número de cirurgias de readequação de gênero realizadas pelo SUS, etc. A educação se mostra um terreno onde o enfrentamento adquire grandes proporções, uma evidências anedótica da sensibilidade do tema foi a decisão do governo Dória (SP) de recolher livros didáticos que tratavam do tema da diversidade sexual em 2019. É preciso lutar pelos debates de gênero e sexualidade nas escolas e combate à opressão e ao bullying no ambiente escolar, isso é passo fundamental para a redução da exclusão escolar das pessoas trans. Nesse sentido, vale recordar o papel lamentável cumprido pelo governo Dilma, que vetou o kit “escola sem homofobia” (o famigerado “kit gay”), refém do setor fundamentalista evangélico que foi ganhando espaço ao longo dos governos do PT.

Quando tratamos de uma população sujeita a um nível tão profundo de vulnerabilidade social, de negação de reconhecimento pela maior parte da população pela exclusão dessas pessoas no espaço público enquanto sujeitos de direitos (vale conferir a história da criação do Jardim Itatinga, bairro de Campinas e uma das maiores zonas de prostituição do mundo[1]). Trata-se de pessoas a quem é imposta uma espécie de apartheid (genocídio, privação da cidadania pela via dos documentos, segregação espacial, negação ao direito de emprego formal, invisibilidade simbólica). A implementação de cotas para pessoas trans nas universidades públicas pode ter um impacto significativo na forma como se estruturam as relações de gênero e o processo de marginalização dessas pessoas, seja por meio de representatividade, da possibilidade de formas de obtenção de renda que não sejam a prostituição, ou até pela possibilidade de disputar a construção de conhecimento científico e de políticas públicas. Além da luta por direitos das pessoas trans, é importante ressaltar a importância que pode ter, de um ponto de vista epistemológico, a presença dessas pessoas na universidade para a construção de conhecimento a partir de olhares não hegemônicos. O próprio projeto de universidade é colocado em questão na medida que, de um ponto de vista político, a existência e presença desses corpos considerados abjetos subverte uma determinada visão do mundo.

É notável o atraso da esquerda em geral em relação ao tema dos direitos das pessoas trans, raros são os casos que se encontra uma pessoa trans entre seus quadros dirigentes, ou que a luta contra a transfobia ocupe um papel relevante em suas formulações. É preciso compreender a necessidade de garantir direitos para pessoas trans, pauta que ganha caráter ainda mais urgente quando se compreende o papel mobilizador que a LGBTfobia e a “ideologia de gênero” tem para as bases da extrema-direita brasileira, sendo parte de uma ofensiva articulada e total contra a classe trabalhadora brasileira [2].

Nesse dia da visibilidade trans devem ocorrer atividades na maioria das grandes cidades brasileiras, é preciso ir às ruas com nossas demandas, em defesa dos nossos direitos e das nossas vidas: é preciso derrotar esse governo transfóbico nas ruas. Apesar de sabermos que nossa luta vem de longe, hoje a extrema-direita é o maior obstáculo para a obtenção de direitos e promove a escalada da violência LGBTfóbica no Brasil. Contra Bolsonaro, somos todos Quelly!

[1] Por isso, a partir de 1966, com o apoio da opinião pública, a polícia começou um processo chamado de “Operação Limpeza”, que consistia em perseguir as prostitutas que trabalhavam de forma independente nas ruas da cidade e fazer acordos com as casas de prostituição para se mudarem para o novo terreno.

Nessa “cruzada” contra a prostituição, as profissionais do sexo foram deslocadas para uma “ilha” de estrutura precária em uma área na periferia da cidade, próxima ao Aeroporto Internacional de Viracopos. A região antes abrigava uma antiga fazenda de café chamada Pedra Branca, Itatinga em tupi-guarani.”

[2] Existe um contexto no qual, de fato, os absurdos de Damares se tornam cortina de fumaça: quando não disputamos a pauta democrática dos oprimidos com um programa anticapitalista. Toda essa análise construída até aqui aponta como os elementos da realidade se imbricam para formar uma ofensiva global do governo Bolsonaro e apenas um programa anticapitalista é capaz de disputar esse processo total. Apenas esse programa é capaz de combinar a luta por direitos sociais e econômicos com a guerra cultural no terreno dos “costumes” e forjar um campo político que dê a batalha até as últimas consequências. Os oprimidos são quem mais sofrem com o retrocesso de direitos como a reforma da previdência. Exemplos como o feminismo dos 99% são mais urgentes e atuais do que nunca, as mulheres já vêm apontando o caminho.”

*Lucas é ativista do Afronte e primeira pessoa trans na diretoria da UEE-SP