Próxima estação: Cidade Cinza (poesia)

Rosa/Agência Brasil

Travesti Socialista

Travesti socialista que adora debates polêmicos, programação e encher o saco de quem discorda (sem gulags nem paredões pelo amor de Inanna). Faz debates sobre feminismo, diversidade de gênero, cultura e outros assuntos. Confira o canal no Youtube.

Vestígios

Ding dong!
Próxima estação: Cidade Cinza. Desembarque pelo lado concreto do trem.

Um bom dia, belo dia!
Faço um café bem esperto
pra começar a manhã
com o cérebro desperto.

Desço toda a escadaria,
Abro a porta de concreto,
vejo as ruas todas cheias
de carros que passam reto.
Mas se não sei do futuro,
mesmo assim é quase certo
encontrar, no chão imundo,
um papelão que é coberto
com um edredom bem sujo,
todo cinza de concreto.

Na estação do metrô,
um sussurro, um coreto,
passo firme resoluto,
ritmado, som bem certo
de um trem que não tem freio
de um relógio inquieto.
Que horas são, estou no tempo?
Será que chego ao projeto?
Entro num trem, depois noutro.
Nunca vi trem de concreto!

E no meio do vagão,
mais um pouco de comércio:
fone, drive, limpa-tudo,
um produto bem completo
a se vender e a se comprar:
“Isso limpa até concreto!”
Ouço a voz anunciar
que já estou bem perto,
ouço o som, saio do trem,
subo escadas de concreto.

A vassoura ali no canto
acanhado e bem discreto
encostada na parede
esperando o tempo certo
pra limpar essa sujeira
do pó cinza cianureto.
Vou seguindo o meu caminho,
pois eu tenho rumo reto.
E nas ruas, muitos carros
firmes, frios, de concreto.

Humanos

Ding dong!
Se você não vai desembarcar na próxima estação, se possível, não permaneça na região das portas. Obrigada!

Um bom dia, não tão belo
faço um café bem preto
tenho que andar apressada
com o passo em ritmo certo

Desço toda a escadaria,
abro a porta de concreto.
Vejo as ruas todas cheias,
pessoas que passam reto.
Mas se não sei dos humanos,
mesmo assim é quase certo
encontrar no chão gelado
alguém com frio coberto
com um cobertor bem fino,
todo cinza de concreto.

Na estação do metrô,
uma marcha, um coreto,
pessoas embriagadas
da loucura-cianureto,
os humanos já sem tempo
e um relógio inquieto.
Que horas são, estou no tempo?
Será que sou incompleto?
Entro num trem, depois noutro.
Eu já vi trem de concreto!

E no meio do vagão,
um futuro bem incerto
de alguém que oferece
um produto bem completo,
que se vende a quem comprar
por dinheiro, comida, afeto.
Ouço a voz anunciar
que estou muito perto,
mas de onde? Eu não sei!
Sigo os passos de concreto.

Mulher encostada ao canto,
segurando um objeto,
apoiada na parede,
esperando o tempo certo
pra passar toda essa gente
feita de hidrocarboneto.
Vou seguindo o meu caminho
de um modo bem discreto.
E nas ruas, corpos passam
firmes, frios, de concreto.

Olhos

Ding dong!
Próxima estação (next station): Apatia (Fuck You). Desembarque pelo seu orifício anal. (Exit up your ass!)

Hoje, esqueça o bom dia,
tome o café de concreto,
seja hoje uma máquina
com os olhos bem corretos!

Desça toda a escadaria,
abra a porta de concreto,
veja as ruas todas cheias,
olhos fitos no projeto.
Siga o exemplo dos olhos
que pouco importam, decerto,
de encontrar no chão do mundo
olhos fechados, cobertos
com pálpebras bem sujas
de cianureto-concreto.

Na estação do metrô,
olhos marcham em coreto
com um som bem compassado,
com antolhos, fitos, retos,
bem ao ritmo dos ponteiros
do maestro do concerto.
Que horas são, estou no tempo?
O meu passo está correto?
Saio dum trem, depois entro:
mais um trem de concreto!

E no meio do vagão,
um olhar todo inquieto
que tem filho a criar
que é de carência repleto.
Mas cuidado com o guarda,
o que tem o olhar reto!
Ouço a voz a praguejar:
vai pra longe, seu inseto!
Desço em minha estação,
olhos cheios de concreto.

Ding dong!
Pedir esmolas e o comércio ambulante são práticas ilegais. Colabore conosco para impedi-los de pagarem suas contas.

Os olhos tristes no canto,
mirando o chão concreto,
encostados na parede,
esperando o tempo certo
pra passar todos os olhos
que só sabem olhar reto.
Vou seguindo o meu caminho,
mas com olhos inquietos.
Será que hoje o Sol se põe?
Será coberto de concreto?

O caralho!

Abro toda a escadaria,
desço a porta de concreto.
“Um caralho de bom dia!”,
já respondo ao café preto:
Não é dia, veja a noite:
o céu está todo preto,
brilhos e luzes nas ruas,
de um colorido cinzento,
pois o cinza é o colorido
de um mundo branco e preto.

Na manhã-noite sem sol,
sem árvore, piu, sem vento,
e onde está o cobertor?
está largado ao relento:
um sinal que por aqui
já passou o faxineiro
com distinto, coldre, arma
e cassetete antipreto,
esfregando o alvejante
pra branquear o concreto!

Veja os olhos lá de cima
escondidos no concreto:
tomariam mais cuidado,
fossem pouco mais espertos:
pois um dia a chuva cai,
lava todo esse concreto
e não há colírio que cure
olho irritado de cimento!

Pois verão do que é capaz
esse exército concreto,
esses olhos tão treinados,
olhos fitos no projeto,
um exército em marcha
ritmado, no tempo certo.
Não há muralha que aguente
tantos braços de concreto!