Adaptação e pós-graduação nesses dias de verão

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

O ano começa e todos os professores das pós-graduações seguem preocupados e cobrados para que tudo seja feito dentro dos critérios e normas da Capes. Todos os relatórios devem ser preenchidos corretamente, todas as publicações devem ser precisamente comprovadas e todas as defesas devem obedecer rigorosamente aos prazos ditados. Um cobra ao outro, que cobra ao um, e todos são cobrados pelas regras que castram a criação. Com a “habilidade dos descarados”, a qual certa feita se referiu Balzac, nós, descaradamente, menosprezamos o fato de a Capes estar agora sob comando de um adepto do ensino do criacionismo nos espaços de formação científica. Nada fizemos e nada cogitamos fazer. Ontem, hoje e amanhã. Tudo como antes. Parece não haver nada de novo no front, pois parece que a guerra não nos diz respeito, ou que ela já está mesmo perdida. Indiferentes ou derrotados, seguimos. Vergonhosamente, seguimos.

Em tempos de um enorme mal, tudo parece normal. Seguimos em frente, talvez para trás, para as trevas, e o fazemos olhando pro chão – e, alguns, com o nariz ainda empinado por conta de seus títulos que, mal sabem, hoje valem tanto quanto os da bolsa de Nova Iorque numa certa quinta-feira de 1929. Como criaturas passivas, ávidas por verbas que tudo parecem justificar – pois sem elas não se pode pesquisar, dizemos – nos curvamos, agora já quase sem mediações, aos ditames do criador. Mas não o Criador do mundo, e sim o do submundo em que vivemos e pesquisamos. Não o Criador da vida, mas o da morte. Não o do céu, mas o dessa terra infernal.

Se a prática da pesquisa sob a lógica da burocracia há muito já submeteu a ciência à administração, subordinando o tempo do trabalho criativo ao tempo do trabalho repetitivo e fazendo o conteúdo das coisas se dobrarem à forma de apresentação das mesmas, agora nem sequer os rebuços de cientificidade que justificavam, para muitos, tal adaptação existem mais. Nem mais o disfarce da ciência existe, pois estamos todos nós, os justos, cientes de que agora um dos homens que decide os caminhos científicos do país é mais um andarilho decidido do obscuro caminho dos ímpios. A razão a qual nos submetemos acriticamente nos últimos anos é agora orientada pela religião, e a luz dos laboratórios é regulada pelos adeptos da escuridão. Mas, mesmo sem mais disfarces, mesmo com tudo revelado, mesmo com os adeptos da revelação no poder, nós seguimos. Adaptados, alienados, embriagados, seguimos mesmo assim, talvez esperando que no sétimo dia possamos, como o Criador, descansar. Depois de assistirmos calados à criação do mais completo caos, poderemos, quem sabe, contemplá-lo. Até lá, o show tem que continuar. “A pós não pode parar”.

Se, em nome do deus mundano, o dinheiro, nós, os pesquisadores, já sacrificamos a ciência no altar das planilhas, já acorrentamos Prometeu para que possamos ter verbas para estudar a química das correntes, e já apagamos sua tocha do conhecimento para que possamos ter bolsas para estudar sua combustão, agora chegou o momento desse mesmo deus mundano perder seus pudores racionais e mostrar, finalmente, sua faceta celestial. Se antes éramos apascentados pelos pastores da burocracia, agora o somos diretamente por uma ovelha do Senhor, a qual, sabendo da nossa adaptação e submissão à burocracia, dela lançará mão para melhor nos guiar, de modo que, até o momento em que tudo nos faltará, continuaremos a no pasto trabalhar, sob o argumento de que ainda há um edital a preservar, uma bolsa a conquistar, uma nota 7 a reivindicar.

Enquanto isso, seguimos, impávidos, fazendo tudo como antes, mesmo que agora seja o neofascismo religioso quem dê as cartas no reino de Abrantes. Muitos mestrandos, doutorandos, orientadores e orientandos seguem adoecendo na sala ao lado, e a ilusão de que estamos imunes a tal mal não é senão sinal do quão avançada está nossa enfermidade. O desespero, que já foi moda em 1973, agora atravessa todo o mês daqueles que são compelidos pela pressa de um tempo sem sentido, de pesquisas sem tempo, e de carreiras sem futuro. Já não somos tão jovens, e já não temos todo o tempo do mundo.

Se a adaptação ao meio já foi, na história das espécies, a chave explicativa da evolução, hoje é Darwin quem é, pela Capes, condenado no tribunal da Inquisição, e a nossa adaptação ao estado atual da ciência no país não faz mais do que evidenciar o tamanho da nossa corrosão e da nossa involução. A razão cega que nos faz estoicamente responder aos emails, marcar bancas, reformatar nossos periódicos e atualizar nossos Lattes apenas ilustra como, quase sem luta, vamos nos rendendo ao tacão dos inimigos da Ilustração. Nossa apatia sob a gestão dos adversários do Esclarecimento esclarece a nossa lassidão intelectual, política e moral. Como bons intelectuais positivistas, neutros e imparciais, seguimos nosso ramerrão, seguimos fazendo nosso mais do mesmo, como qualquer trabalhador, mesmo que muitos doutos sequer se considerem como tal.

Infelizmente, como uma vez disse Dostoiévski, “o ser humano a tudo se habitua”. Entretanto, nesses dias de verão, de assassinato de índios, de águas sujas e de devastação, nos habituar a esta ordem de coisas apenas expressa como, assustadoramente, estamos perdendo nossa humanidade.