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BRASIL

As faces do neofascismo do Bolsonazi (Parte 1)

Paulo César de Carvalho

Quando se comparam seus pronunciamentos de um ano atrás com os que foram feitos quinze anos antes, o que impressiona é a rigidez da mente, o modo como sua visão de mundo não evolui. É a visão fixa de um monomaníaco, não suscetível de ser muito afetada pelas manobras temporárias da política do poder.
(ORWELL, George.
O que é fascismo e outros escritos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 27-28). 


Mas quem são na verdade os comunistas? (…).
Todo mundo que tem profissão liberal: artistas, advogados, sociólogos, sociólogos então… temos que desflorestar essa raça até a terceira geração (…).
(VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 216).

Não há em política crime maior do que contar com a tolice de um inimigo forte (…). Tanto mais que ele precisa estar em guarda.
(TROTSKY, Leon.
Revolução e Contrarrevolução na Alemanha. Editora Laemmart, 1968, p. 124). 

Retrato do inimigo

Não é novidade que Bolsonazi foi condenado em 1988 pelo Conselho de Justificação Militar (CJM), reconhecido como mentor do plano de uma série de atentados terroristas em vários quartéis e locais públicos: uma das bombas seria colocada na Adutora do Guandu, que abastece de água o município do Rio de Janeiro. Na sentença, foi “declarada sua incompatibilidade para o oficialato”: desde então, passou a ser chamado de “bunda suja” pelos oficiais de alta patente (apelido jocoso dado aos milicos rasos que não seguem carreira). No mesmo ano em que foi promulgada a Constituição Federal (que rasgaria, três décadas depois), o tosco capitão, já na reserva, resolveu “ganhar a vida” fácil como político, candidatando-se a vereador pelo Partido Democrata Cristão (PDC). Trocando a farda pelo terno, enfim, a criatura asinina iniciou a saga de coices na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Desenho do plano de explosão da tubulação do Guandu, reproduzido pela revista Veja, em 1987.

Não é novidade que o plano terrorista do ex-capitão tem um mórbido antecedente histórico, protagonizado pelo brigadeiro João Paulo Burnier. No fatídico ano que marcou o endurecimento do regime, com a decretação do AI-5 (assinado em 13 de dezembro de 1968), o chefe de gabinete do ministro da Aeronáutica do general Costa e Silva se reuniu com cerca de 40 oficiais para explicar as novas tarefas do Para-Sar: caberia ao grupo de paraquedistas – especializado em operações de socorro e salvamento – a missão criminosa de lançar ao mar, a 40 quilômetros da costa, “líderes estudantis e outros que sejam considerados inconvenientes”. Para completar as abjetas diretrizes, com o propósito de legitimar a repressão aos olhos da opinião pública, a outra parte do maquiavélico plano consistia em promover uma série de ações de terrorismo de Estado em locais públicos de grande circulação: uma vez tributada aos “cruéis terroristas vermelhos” a responsabilidade pelas mortes de milhares de civis inocentes, estaria “oficialmente” aberta a longa e brutal temporada de caça aos comunistas.  

Não é novidade que o plano terrorista do então capitão Bolsonazi, rascunhado em 1988, não tinha o mesmo objetivo que o do então brigadeiro Burnier, arquitetado em 1968: a estratégia do terrorista do baixo clero do Exército – com uma reivindicação corporativa de natureza estritamente econômica – era coagir o generalato a conceder aumento salarial aos subalternos. A do terrorista da alta cúpula da Aeronáutica, em contrapartida, cumpriria papel tático – de ordem ideológica – na ofensiva contrarrevolucionária dos militares: o brigadeiro tinha fé em que a demonização dos “vermelhos” (na propaganda dos algozes, é a cor que sinaliza o perigo, é a cor do sangue das vítimas civis, é a cor do “inferno”) funcionaria como um antídoto para neutralizar as manifestações massivas contra o regime autoritário (cujo estopim foi o assassinato do secundarista Edson Luís pelos fuzis das tropas governamentais, em 28 de março de 1968, na bárbara invasão do restaurante estudantil Calabouço).   

Não é novidade que existe farta documentação – reproduzida e analisada em artigos, ensaios, pesquisas e obras acadêmicas – atestando a veracidade do projeto criminoso do oficial da Aeronáutica no governo ditatorial do general Costa e Silva. Na tese de doutorado do cientista político José Roberto Martins Filho, por exemplo, uma das provas testemunhais do plano conspirador homicida – que também propunha a “eliminação de líderes de oposição ao regime” – é o depoimento do então comandante da 1ª Esquadrilha Aeroterrestre de Salvamento (Para-Sar), citado parcialmente neste esclarecedor trecho da obra: “Mais especificamente, [envolvia] a tentativa de empregá-la [a Para-Sar] ‘à paisana, com identidades falsas, armas com números raspados, portando granadas de mão defensivas’, em operações paramilitares, bem como planos de destruição de vários prédios, no Rio de Janeiro, com o uso de explosivo plástico, para iniciar ‘uma escalada de terror progressivo, que seria atribuída aos comunistas’. O chefe da unidade impediu a ação [o capitão paraquedista Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho]”. (MARTINS FILHO, João Roberto. O palácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas na ditadura (1964-1969). São Paulo: Alameda, 2019, p. 194).   

Não é novidade que o plano do brigadeiro Burnier fracassou, depois da corajosa denúncia feita pelo comandante Sérgio Miranda, que recusou a indecorosa proposta de dirigir os paraquedistas na execução da operação assassina. Conforme relatou o jornalista Zuenir Ventura, detalhando a operação, as ações macabras começariam com “pequenos incidentes”, “já que a escalada terrorista deveria ser gradativa”: “cargas na porta da Sears, do Citibank, da embaixada americana, com pequeno número de mortes”. O clímax do terror seriam as explosões simultâneas do gasômetro e de Ribeirão das Lajes, com as bombas detonadas por controle remoto: se o plano se consumasse, obviamente, provocaria um grande número de mortes. Para se ter uma ideia da extensão da barbárie, vale recordar a síntese de Zuenir: “Começava a ser desvendado (…) um dos mais sinistros planos terroristas da nossa história contemporânea. Se tivesse tido sucesso, a operação provocaria (…) a morte de cerca de 100 mil habitantes, já que previa a explosão de um gasômetro no início da avenida Brasil, às 18 horas, isto é, na hora do rush, e a explosão da represa de Ribeirão das Lajes. A responsabilidade pelos atentados seria atribuída aos comunistas”. (VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 210).

Não é novidade que o plano incendiário do ex-capitão também fracassou: em entrevista à revista Veja, em 27 de outubro de 1987, o milico amador confessou com a habitual arrogância – já sofrendo de delírios megalômanos – que explodiria bombas em banheiros da Vila Militar (da Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende-RJ) e em outros quartéis. Além disso, o aprendiz de terrorista também havia desenhado um croqui definindo o local em que seria colocada uma bomba na Adutora do Guandu: a explosão, evidentemente, comprometeria todo o abastecimento de água da cidade do Rio de Janeiro. A tragédia só não se consumou porque o incauto terrorista – com a incontinência verbal característica dos ególatras, que pecam por soberba, se creem “blindados” e acabam punidos – entregou o plano ao órgão de imprensa, que tratou de enviar rapidamente o material ao então ministro do Exército do governo José Sarney (na farsesca “transição democrática”): o general Leônidas Pires Gonçalves (aliás, prova do engodo da “Nova República”, o titular da pasta foi comandante do genocida I Exército nos anos de chumbo) confirmaria, após quatro meses de investigação, a veracidade das “bombásticas” informações sobre a operação batizada de Beco Sem Saída – que, por curiosa ironia onomástica, já anunciava o fim do caminho verde-oliva para o explosivo conspirador da ralé fardada (que acharia outra saída, todavia, escapando pela trilha oportunista da carreira política).    

Não é novidade que 1968, enfim, era bem diferente de 1988: o brigadeiro voava em céu plúmbeo, sob as condições anormais de temperatura infernal e alta repressão do obscuro regime militar; o ex-capitão cavalgava de ré em pasto verde, sob o sol amarelo e o céu “azul anil” da “transição democrática”, às vésperas da “bonança” das primeiras eleições presidenciais, depois de vinte e cinco anos de terríveis tempestades autoritárias. Apesar das diferenças entre os contextos históricos e dos distintos objetivos de cada plano (além, obviamente, da baixa patente de Jair e da alta patente de João e das cores das fardas), há muito mais semelhanças entre João Burnier e Jair Bolsonaro do que faria supor o mesmo “J” dos nomes e o óbvio “B” dos sobrenomes. Não é por mera coincidência que a dupla terrorista tenha sempre rezado o mesmo credo anticomunista no templo paramilitar da extrema direita: nas páginas “tintas de sangue” do “evangelho” autoritário das duas mentes inescrupulosas e cruéis, o genocídio de 100 mil é “apenas” uma estatística, que “vale a pena para livrar o Brasil do comunismo” (como disse Burnier, como diria Bolsonaro). As ações táticas do brigadeiro tinham o objetivo estratégico de destruir a esquerda (o mesmo desejo confesso do ex-capitão): nas palavras de Zuenir Ventura (com persistente sabor amargo de chumbo grosso na boca do inferno do presente), “para quem – como os radicais de direita – buscava um pretexto para dar início à caça às bruxas, nada mais diabolicamente perfeito”. 

Não é novidade que o plano terrorista do brigadeiro Burnier era ainda mais maquiavélico do que o famoso antecedente que lhe serviu de inspiração: o Plano Cohen foi uma farsa armada pelo Exército para incriminar os militantes do PCB, legitimando a brutal repressão aos opositores de Getúlio Vargas e preparando o terreno para o golpe do Estado. Para ficar mais claro, convém uma breve viagem “de volta para o passado”, recordando o princípio (sem princípios): em 30 de setembro de 1937, o general Góis Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército, anunciou em rede nacional – no noticiário radiofônico estatal Hora do Brasil – a descoberta de um plano terrorista, que havia sido arquitetado pelos comunistas para derrubar o presidente. Como os próprios farsantes admitiriam anos depois, o falso texto fora redigido pelo capitão fascista Olympio Mourão Filho: “Em setembro de 1937, o pretexto que faltava para o golpe surgiu, ou melhor, foi forjado. Elaborado toscamente pelo chefe do serviço secreto da AIB [Ação Integralista Brasileira] (…), o Plano Cohen era um documento que indicava um suposto plano de tomada de poder por parte dos comunistas brasileiros com o apoio do Komintern. Apresentado a Vargas e Eurico Gaspar Dutra (ministro da Guerra) por Góis Monteiro – um dos primeiros a alimentar a ideia de um golpe de Estado –, o documento falso foi considerado pelos três como providencial, já que poderia funcionar como um acicate golpista para as Forças Armadas” (DEMIER, Felipe. O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): um ensaio de interpretação histórica. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013, p. 141).

Não é novidade que o Plano Cohen criou uma atmosfera favorável ao golpe: no dia seguinte ao alarme pelas ondas da Rádio Nacional, o Congresso Nacional decretou Estado de Guerra, atendendo prontamente à solicitação de Vargas. Valendo-se dos discricionários poderes que lhe foram concedidos pelo Legislativo, o chefe do Executivo intensificou a caça às bruxas vermelhas: em 10 de novembro, enfim, o bonapartista instauraria o Estado Novo, autorizando o Exército a cercar o Congresso para outorgar a autoritária Constituição de 37. Com os superpoderes da “Polaca” (assim apelidada pela semelhança com a Constituição semifascista polonesa, como sublinhou o historiador Felipe Demier), foi decretada a ilegalidade de todos os partidos políticos, inclusive da AIB: o astuto ditador bonapartista, evidentemente, não queria correr o risco do fortalecimento da versão verde-amarela do fascismo italiano, precavendo-se da possibilidade de ser deposto pelos milicianos integralistas. Abrindo um breve parêntese para contextualizar a estratégica oportunista, o capitão (que não se chamava Jair) confessou que redigira o texto a pedido de Plínio Salgado, dirigente da organização fascista: como os “camisas verdes” apoiaram – física e ideologicamente – o golpe, a caricatura tropical de Benito Mussolini esperava, pois, não só ser nomeado ministro da Educação do Estado Novo, mas também que o “Bonaparte” dos pampas reconhecesse oficialmente a AIB como coluna de sustentação do novo regime.

Não é novidade que a horda de hunos do “Sigma” (a letra grega foi usada pelos milicianos tupiniquins como símbolo equivalente à suástica dos nazistas), sentindo-se traída por Getúlio, tentaria realmente, em 1938, dar um golpe no golpista: “O plano era neutralizar e desarticular o inimigo, organizando grupos para prender elementos civis do governo e autoridades policiais; tomar estações de telégrafo, telefones, rádio, luz, pontes e organizar o policiamento da cidade. Deveriam ainda ter grupos de incêndio, de terror, de neutralização e de assalto. Os incêndios deveriam ser provocados na Polícia Civil, na Academia de Comércio, na Praça XV, no antigo Ministério da Justiça, na Praça da República e no Pavilhão Mourisco. Eram locais que não prejudicavam as operações planejadas e levariam os bombeiros para esses pontos” (VIANNA, Marly de Almeida Gomes. “Rebeliões integralistas – 1938: março e maio”. In: Militares e política no Brasil. Barbosa, Jefferson Rodrigues et al. (Orgs.). São Paulo: Expressão Popular, 2018, p. 452-453). Depois de uma série de ações terroristas fracassadas e a derrota da conspiração, muitos fascistas tupiniquins acabariam presos – entre eles, o capitão Olympio Mourão. 

Não é novidade que o escriba oficial do Plano Cohen, o oficial escriba que ajudou Getúlio a dar um “golpe dentro do golpe” (o golpe de 1937 foi um golpe dentro do golpe de 1930), é o mesmo que tentaria em vão – junto com as milícias verde-amarelistas de Plínio Salgado – dar um golpe no “golpe dentro do golpe” do Estado Novo: o mesmo Olympio Mourão que, passados vinte e seis anos da Intentona Integralista, voltaria triunfante à cena política, cavalgando – com a soberba exacerbada pela patente de general – à frente da tropa de extrema direita do Exército, na vitoriosa cruzada anticomunista do golpe de 31 de março de 1964. O pesquisador Jefferson Rodrigues Barbosa sintetizou o percurso histórico do golpista fardado: “Olympio Mourão Filho, além da redação e preparativos do Plano Cohen e do Estado Novo exerceu também papel significativo nas articulações do Golpe de Estado de 1964 divulgando e organizando o envio dos soldados da 4ª Divisão de Infantaria, sob seu comando na cidade de Juiz de Fora, para que seguissem para a ocupação do estado da Guanabara, na cidade do Rio de Janeiro. Somando-se com tropas de Minas Gerais e do Rio de Janeiro no contexto de deposição de João Goulart”. (BARBOSA, Jefferson Rodrigues. “Integralismo e defesa do intervencionismo militar: da apologia e colaboração à nostalgia da ditadura”. In: Militares e política no Brasil. Barbosa, Jefferson Rodrigues et al. (Org.). São Paulo: Expressão Popular, 2018, p. 416).   

Não é novidade que os planos terroristas de Mourão e Burnier – bem guardadas as devidas diferenças históricas – brotaram da mesma raiz ideológica: foi o paranoico espírito anticomunista, tão enraizado nas Forças Armadas, que alimentou as maquinações explosivas do capitão e do brigadeiro, “motivados pela certeza de que estavam testemunhando um avanço irreprimível de um movimento multifacetado e solapado que se ‘infiltrava’ pelos resquícios mais inesperados” (BOHOSLAVSKI, Ernesto e BROQUETAS, Magdalena. “Os congressos anticomunistas da América Latina (1954-1958): redes, sentidos e tensões na primeira guerra fria”. In: Pensar as direitas na América Latina. Bohoslavski, Ernesto et al. (Org.). São Paulo: Alameda, 2019, p. 450). Nos regimes de crise, em governos bonapartistas civis ou ditatoriais militares, as frações da direita tupiniquim – a despeito de suas divergências de interesses – sempre combateram unidas o inimigo comum, a “ameaça” ou “perigo vermelho” à preservação de seus privilégios de classe: “À direita estão os grupos que (…) se organizam e lutam para manter o status quo, e no sentido de beneficiar as classes que estão no poder. De modo geral, expressam posições ideológicas que têm no anticomunismo seu principal foco” (VIANNA, Marly de Almeida Gomes. “Rebeliões integralistas – 1938: março e maio”. In: Militares e política no Brasil. Barbosa, Jefferson Rodrigues et al. (Org.). São Paulo: Expressão Popular, 2018, p. 438). 

Não é novidade que a estratégia do Plano Cohen e do Plano Para-Sar – através da demonização das organizações de esquerda e da glorificação dos “heróis patrióticos” – era que as farsas armadas servissem de combustível para acelerar a dinâmica de fechamento do regime: o discurso do anticomunismo funcionava como álibi para tentar justificar a “inevitabilidade” do Estado de Exceção, como pretexto para legitimar todas as medidas arbitrárias dos golpistas contra as garantias individuais, as liberdades democráticas e as conquistas sociais do Estado de Direito. Em outras palavras, é o que sublinhou o historiador Rodrigo Motta: “No entanto, destacar a importância do anticomunismo como fenômeno político e como objeto de estudo não significa acreditar que o discurso coincidisse sempre com o objetivo central dos militantes e grupos de direita, ou seja, frequentemente os alvos transcendiam os comunistas propriamente ditos. O anticomunismo muitas vezes serviu de guarda-chuva para abrigar frentes de direita integradas por grupos heterogêneos, servindo de língua franca para expressar (e incrementar) a mobilização contra a esquerda, contra movimentos sociais orientados para a esquerda e contra políticas voltadas ao combate às desigualdades em geral”. (MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Anticomunismo, antipetismo e o giro direitista no Brasil”. In: Pensar as direitas na América Latina. Bohoslavski, Ernesto et al. (Org.). São Paulo: Alameda, 2019, p. 77).

Não é novidade trazer à memória esses trágicos fatos históricos, considerando que o atual presidente – apologista da ditadura militar e “caçador de comunista” – foi condenado por seus pares no mesmo ano em que foi promulgada a Constituição que restabeleceu os princípios “democráticos” do Estado de Direito, os mesmos que estão sendo duramente atacados pelo governo neofascista. Não é demais recordar também os planos maquiavelicamente mentirosos do general integralista e do brigadeiro de extrema direita, considerando que o ex-capitão terrorista chegou à Presidência da República (tendo como vice-presidente um general que – por infeliz ironia – também se chama “Mourão”) através de uma inescrupulosa e violenta campanha eleitoral, baseada em graves calúnias contra o adversário petista e em criminosas ameaças de morte a todos os opositores “vermelhos”. Vale lembrar que há fortes indícios de que o atentado a faca contra o então candidato Jair Bolsonaro, em 6 de dezembro de 2018, em Juiz de Fora (MG), tenha sido forjado para colocar o neofascista na posição de vítima do “terror vermelho”, reforçando o apelo popular do mito salvador da pátria. Na cruzada de demonização da esquerda, o ex-capitão farsante e sua claque ignara difundiram na imprensa a versão fake de que o autor da facada, Adélio Bispo de Oliveira, seria militante do PSOL, o partido do candidato “terrorista” Boulos, líder dos “incendiários” do MTST. Messias e sua intrépida tropa não se cansaram de caluniar e perseguir os trabalhadores sem teto no jogo sujo eleitoral, sob a acusação de que seriam perigosos comunistas conspirando contra o direito de propriedade, desestabilizando a ordem pública e pondo em risco a segurança da família.  

Não é novidade que os neointegralistas responsáveis pelo ataque terrorista à sede do Porta dos Fundos (RJ), na véspera do Natal, reivindicam a velha tradição anticomunista dos milicianos “camisas verdes” de Plínio Salgado: no vídeo em que assumiram a autoria do incêndio, como evidencia o símbolo “Sigma” atrás dos criminosos mascarados. Com a bandeira do Império estendida sobre a mesa, um dos bolsonazistas leu um insólito comunicado tentando explicar (?) a ação violenta da horda, autodenominada Comando Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira: “Reivindicamos a ação direta revolucionária que busca justificar os anseios de todo o povo brasileiro contra a atitude blasfema, burguesa e antipatriótica que o grupo de militantes marxistas culturais Porta dos Fundos tomou quando produziu o seu Especial de Natal a mando da corporação bilionária Netflix, deixando claro para todo o povo brasileiro, mais uma vez, como o grande capital anda de mãos dadas com os ditos socialistas”. Essa afirmação absurda soaria mais cômica se o quadro não fosse tão trágico: os milicianos fantasiados e fantasiosos abstraíram, em sua prédica falaciosa anticomunista, o alinhamento do governo neofascista do “Trump dos Trópicos” com o imperialismo ianque, a política econômica neoliberal entreguista do inescrupuloso agiota Paulo Guedes. Aliás, não por mera coincidência o líder foragido da “Grande Família Integralista”, Eduardo Fauzi (que responde a processos por ameaça, agressão contra mulher, lesão corporal e formação de quadrilha), é filiado ao PSL, partido pelo qual se elegeu o ex-capitão terrorista (que está organizando um partido neofascista denominado Aliança pelo Brasil, que remete explicitamente à Aliança Renovadora Nacional, legenda da ditadura militar – problema que será tratado em outro artigo).

Não é novidade que as diferentes forças de extrema direita pró-Bolsonazi, das fardas verdes militares aos camisas verdes neointegralistas, dos camisas pretas milicianos aos verde-amarelos da CBF, dos camisas cinza da PM aos camisas azuis evangélicos, enfim, têm sob a mira das bombas, dos cassetetes, dos revólveres, dos coquetéis molotov, das metralhadoras e das fake News os camisas vermelhas socialistas e comunistas. A propósito, só para não esquecer – neste quadro político em que se combinam bombasticamente elementos militares, semibonapartistas e neofascistas – que falamos do Plano Cohen do velho integralista Mourão (antes Mourão e Moro fossem só um anacrônico e infeliz trocadilho), lembremos o incêndio da estátua da liberdade (em minúsculo) da loja Havan de São Carlos, na véspera do Ano-Novo. Não é uma desgraçada coincidência que a bizarra réplica de plástico tenha ardido em chamas às margens da rodovia Washington Luís exatamente uma semana depois de bombardearem o Porta dos Fundos. Não é por mera obra do acaso que os dois “atentados” tenham feito barulho na imprensa às vésperas das duas datas comemorativas de mais visibilidade do ano, o Natal e o Réveillon, nem que um tenha sido assumido por uma organização de extrema direita e o outro atribuído a supostos “terroristas” da oposição “vermelha”. Antecedendo os fogos de artifício das festas fake, enfim, o fato é que as duas ações terroristas, em diferentes níveis materiais e ideológicos, se combinam na estratégia comum de destruição da esquerda.    

Não é novidade a acusação caluniosa de Luciano Hang aos “opositores do governo”, responsabilizando-os sem provas (antes de qualquer investigação) pelo fogo: o empresário, que virou celebridade da extrema direita uniformizado de verde-amarelo dos pés à careca, vale lembrar, foi um dos principais financiadores da campanha do Messias neofascista. Mais conhecido pelo epíteto jocoso de “Véio da Havan”, Hang foi eleito pela revista Forbes o 21º homem mais rico do Brasil, não sendo de estranhar, pois, que sempre destile em seus depoimentos o perigoso veneno raivoso contra os responsáveis por quaisquer políticas sociais, que rotula invariavelmente de comunistas. Não causou surpresa, assim, o que o abjeto capitalista tupiniquim vociferou aos jornalistas em frente à estátua fumegante, demonizando o “inimigo vermelho”: “Fomos vítimas de terrorismo. Tocaram fogo na nossa estátua da liberdade. Querem nos calar (…). Quando ficam amedrontados com o que está acontecendo com o país eles vão para a faca, vão para o tiro, vão para o fogo”. Abrindo um breve parêntese: no paradoxo do nacionalismo fake do “Véio da Havan”, que usou a Casa Branca como modelo arquitetônico de sua rede de lojas de departamento (com 126 estabelecimentos em 17 estados), ao mesmo tempo que veste a fantasia ufanista de bandeira brasileira, não custa recordar que a “nossa estátua da liberdade” de São Carlos (SP) é uma réplica kitsch de plástico da Estátua da Liberdade da Ilha de Manhattan (NY), fincada no coração financeiro dos EUA. Tudo a ver, aliás, com o ato falho do ex-capitão terrorista discursando em Dallas (Texas), em 16 de maio de 2019: no berço do conservadorismo norte-americano, o “patriotário” trocou o próprio slogan de campanha, dizendo “Brasil e Estados Unidos acima de tudo”…         

Não é novidade que isso não é uma reprise, mas um remake de quinta categoria das tragédias históricas de 1937 e de 1964: parafraseando Marx, a farsa tosca contemporânea, repleta de personagens canastrões, é uma versão trash daqueles velhos filmes B nacionais (nacionalistas). Enfim, para encerrar estas narrativas pontuadas por planos anticomunistas, ações terroristas e golpes, sublinhando a relevância do tema e já preparando o terreno para o próximo artigo, passamos a palavra a Rodrigo Motta, professor de História da UFMG e pesquisador do CNPq: “Não têm faltado alguns episódios derrisórios, recorrentes na história do anticomunismo, como (…) a denúncia por um candidato presidencial de direita nas eleições de 2018 sobre suposto plano para criar a URSAL, o que gerou inúmeras apropriações cômicas nas redes sociais. Episódios desse tipo podem ser usados para ridicularizar a direita, sempre uma arma de combate para rebaixar o adversário, mas não deveriam nos fazer deixar de levar o tema a sério (…). Afinal, o anticomunismo abriu caminho e justificou as duas ditaduras mais longevas da história brasileira, e continua ajudando a despertar/provocar a sensibilidade de direita nos dias que correm” (MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Anticomunismo, antipetismo e o giro direitista no Brasil”. In: Pensar as direitas na América Latina. Bohoslavski, Ernesto et al. (Org.). São Paulo: Alameda, 2019, p. 76).