A repetição como farsa: o velho-novo espírito empreendedor da nobreza britânica
Publicado em: 14 de janeiro de 2020
Felipe Demier
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).
Felipe Demier
Felipe Demier
Conforme consta no célebre capítulo XXIV d’O Capital, uma parte significa da burguesia inglesa teve suas origens em uma “nova” nobreza, a qual, orientando sua produção para o mercado de lã e de gêneros agrícolas em alta, atropelou os seculares institutos feudais sobre a terra e o solo, os submetendo “ao regime da moderna propriedade privada”. Apropriando-se, entre os séculos XV e XVIII, de pequenos sítios e áreas comuns (como florestas e rios), os “novos” landlords, ávidos pela ampliação de pastagens para ovelhas, expulsaram violentamente (com ou sem cobertura jurídica) das terras senhoriais os trabalhadores rurais e pequenos arrendatários (que nelas moravam e trabalhavam), além de tomar as milhares de propriedades dos camponeses independentes (Yeomen).
Descrevendo analiticamente tal processo, Marx afirmou que a velha nobreza inglesa tinha sido devorada pelas guerras feudais, e que essa “nova” aristocracia era um “produto do seu tempo”, e que, para ela, “o dinheiro era o poder dos poderes”. O cercamento dos campos levou os novos landlords (assim como os grandes arrendatários) à riqueza na mesma proporção em que conduziu à pobreza os pequenos camponeses sobreviventes e os trabalhadores do campo, muitos dos quais, agora “livres como pássaros” – isto é, sem obrigações para com os senhores mas também sem seu pequeno lote de terra, a lenha das florestas e os peixes dos rios -, migraram, durante várias gerações, para as cidades, se convertendo progressivamente em proletários aptos ao trabalho nos empreendimentos manufatureiros e industriais que então medravam. O resto da história é sabido, e o moderno pauperismo deita nesse longínquo e cruento processo suas raízes.
Pois bem. Os jornais de ontem noticiaram que um dos príncipes janotas da Coroa britânica e sua esposa “togada” decidiram abdicar de suas prerrogativas nobiliárquicas. A razão, segundo os jornais, reside nas intenções “empreendedoras” do casal, que almeja abandonar o ócio e implementar um “novo modelo de negócios”, muito mais amplo e diversificado do que a venda de souvenirs da realeza, e que articula capital financeiro, marketing digital e redes sociais. Em suma: também essa novíssima nobreza, por assim dizer, é um “produto do seu tempo”, e, para ela, não o só o dinheiro segue sendo “o poder dos poderes”, como o empreendedorismo é a sua ideologia por excelência, é a mentira que sustenta um mundo cuja verdade, ou seja, a desigualdade obscena e o pauperismo atroz, é cada vez mais cruel e indisfarçável. Se as desigualdades outrora eram justificadas pela natureza e o sangue, agora o são pelo suposto “mérito”, o qual, só os dotados de verdadeiro espírito empreendedor dispostos a abandonar “sua zona de conforto” alcançam – mesmo que seja o conforto do Palácio de Buckingham. A teoria do poder divino, depois de séculos de crítica liberal, se converte, em tempos de ultraneoliberalismo, na exaltação da divindade dos especuladores digitais. Se na tragédia, em sua autêntica aurora, o capital falava por meio de Hobbes e Locke, agora, em seu crepúsculo farsesco, se vale das línguas dos coachs, digitais influencers e demais prestidigitadores motivacionais. Se antes, no início, as revoluções inglesas se valeram do verbo, agora, o capital, em seu ocaso, só encontra como porta-vozes aqueles que mal sabem verbalizar algo por escrito. O despotismo do cetro deu lugar aos déspotas do mercado, e a razão, finalmente, se converteu em gestão. “God save the queen”. O Deus celestial segue olhando pela engelhada rainha, enquanto o deus terreno, o capital, abençoa o jovem casal monárquico e empobrece aqueles que vivem ou tentam viver do seu trabalho em um mundo cada vez mais sem direitos. “No future for you”.
Por fim, é necessário confessar que não deu para ir dormir sem românticas lembranças de Cromwell e Robespierre, que sabiam muito bem tratar as nobres cabeças de modo que as rutilantes coroas que as adornavam pudessem, depois de devidamente limpas, ter o destino que mereciam, e que ainda merecem: o museu da História.
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