Conforme consta no célebre capítulo XXIV d’O Capital, uma parte significa da burguesia inglesa teve suas origens em uma “nova” nobreza, a qual, orientando sua produção para o mercado de lã e de gêneros agrícolas em alta, atropelou os seculares institutos feudais sobre a terra e o solo, os submetendo “ao regime da moderna propriedade privada”. Apropriando-se, entre os séculos XV e XVIII, de pequenos sítios e áreas comuns (como florestas e rios), os “novos” landlords, ávidos pela ampliação de pastagens para ovelhas, expulsaram violentamente (com ou sem cobertura jurídica) das terras senhoriais os trabalhadores rurais e pequenos arrendatários (que nelas moravam e trabalhavam), além de tomar as milhares de propriedades dos camponeses independentes (Yeomen).
Descrevendo analiticamente tal processo, Marx afirmou que a velha nobreza inglesa tinha sido devorada pelas guerras feudais, e que essa “nova” aristocracia era um “produto do seu tempo”, e que, para ela, “o dinheiro era o poder dos poderes”. O cercamento dos campos levou os novos landlords (assim como os grandes arrendatários) à riqueza na mesma proporção em que conduziu à pobreza os pequenos camponeses sobreviventes e os trabalhadores do campo, muitos dos quais, agora “livres como pássaros” – isto é, sem obrigações para com os senhores mas também sem seu pequeno lote de terra, a lenha das florestas e os peixes dos rios -, migraram, durante várias gerações, para as cidades, se convertendo progressivamente em proletários aptos ao trabalho nos empreendimentos manufatureiros e industriais que então medravam. O resto da história é sabido, e o moderno pauperismo deita nesse longínquo e cruento processo suas raízes.
Pois bem. Os jornais de ontem noticiaram que um dos príncipes janotas da Coroa britânica e sua esposa “togada” decidiram abdicar de suas prerrogativas nobiliárquicas. A razão, segundo os jornais, reside nas intenções “empreendedoras” do casal, que almeja abandonar o ócio e implementar um “novo modelo de negócios”, muito mais amplo e diversificado do que a venda de souvenirs da realeza, e que articula capital financeiro, marketing digital e redes sociais. Em suma: também essa novíssima nobreza, por assim dizer, é um “produto do seu tempo”, e, para ela, não o só o dinheiro segue sendo “o poder dos poderes”, como o empreendedorismo é a sua ideologia por excelência, é a mentira que sustenta um mundo cuja verdade, ou seja, a desigualdade obscena e o pauperismo atroz, é cada vez mais cruel e indisfarçável. Se as desigualdades outrora eram justificadas pela natureza e o sangue, agora o são pelo suposto “mérito”, o qual, só os dotados de verdadeiro espírito empreendedor dispostos a abandonar “sua zona de conforto” alcançam – mesmo que seja o conforto do Palácio de Buckingham. A teoria do poder divino, depois de séculos de crítica liberal, se converte, em tempos de ultraneoliberalismo, na exaltação da divindade dos especuladores digitais. Se na tragédia, em sua autêntica aurora, o capital falava por meio de Hobbes e Locke, agora, em seu crepúsculo farsesco, se vale das línguas dos coachs, digitais influencers e demais prestidigitadores motivacionais. Se antes, no início, as revoluções inglesas se valeram do verbo, agora, o capital, em seu ocaso, só encontra como porta-vozes aqueles que mal sabem verbalizar algo por escrito. O despotismo do cetro deu lugar aos déspotas do mercado, e a razão, finalmente, se converteu em gestão. “God save the queen”. O Deus celestial segue olhando pela engelhada rainha, enquanto o deus terreno, o capital, abençoa o jovem casal monárquico e empobrece aqueles que vivem ou tentam viver do seu trabalho em um mundo cada vez mais sem direitos. “No future for you”.
Por fim, é necessário confessar que não deu para ir dormir sem românticas lembranças de Cromwell e Robespierre, que sabiam muito bem tratar as nobres cabeças de modo que as rutilantes coroas que as adornavam pudessem, depois de devidamente limpas, ter o destino que mereciam, e que ainda merecem: o museu da História.
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