O Presidente de Emanuel Macron assiste a uma intensa onda de mobilizações contra a reforma da previdência proposta por seu governo. No dia 5 de dezembro, cerca de um milhão de pessoas saíram às ruas das principais cidades da França em protestos contra as alterações propostas pelo regime de aposentadorias. Manifestações foram registradas em pelo menos setenta cidades, escolas não funcionaram na capital francesa assim como nas maiores cidades do país e a greve conseguiu parar quase completamente o transporte público da capital. Foi registrado, às 8h da manhã do dia 6 de dezembro, quase trezentos e cinquenta quilômetros de engarrafamentos nos acessos a Paris, em decorrência da paralisação dos transportes públicos.
A empresa de trens SNCF chegou a cancelar setenta por cento dos trajetos de trens regionais e noventa por cento das viagens de longa distância. Como o governo não recuou da proposta inicial até o momento, outra manifestação foi chamada pelos sindicatos e pelos estudantes para a semana seguinte a do dia 5 em sinal de intensificação da luta contra a reforma.
É a mesma semana em que o governo pretende apresentar o projeto na íntegra. As linhas gerais do projeto, contudo, já tinham sido apresentadas no dia 18 de julho de 2019, a partir de quando se iniciou a discussão a respeito da necessidade de barrar a atual reforma.
A principal crítica à proposta é que ela institui o sistema de “aposentadorias por pontos”. Os efeitos diretos dessa alteração são o aumento do tempo de serviço para requerer a aposentadoria combinado com a redução do valor recebido ao se aposentar.
Atualmente, na França, a idade mínima para se aposentar, tanto para homens quanto para mulheres, é de 62 anos de idade, levando em consideração o tempo mínimo de contribuição de 30 anos. Entretanto, utilizando apenas esses dois critérios, os trabalhadores têm uma redução de 50 a 60% do valor que recebiam na ativa. Para que recebam o valor integral, o tempo de contribuição, ao invés de 30 anos (tempo mínimo), deve ser de aproximadamente 42 anos (a depender da data de nascimento do contribuinte). Além disso, é importante observar que o atual modelo de aposentadorias da França conta, além do regime geral e do regime próprio dos servidores públicos, dezenas de outros regimes especiais, a depender da categoria de trabalhadores, resultado de anos de mobilização dessas categorias e que levam em conta as especificidades de cada setor.
A proposta pretende alterar esse modelo. Primeiro, prevê a extinção dos regimes gerais de previdência, desconsiderando características próprias de cada atividade laboral. Os empregados das indústrias energéticas, por exemplo, se aposentam mais cedo: na média, antes dos sessenta anos. Da mesma maneira, os agentes de manutenção e motoristas da RATP, empresa responsável pelo transporte público de Paris, podem se aposentar a partir dos cinquenta anos de idade. Essas situações excepcionais, entre outras, foram criadas a fim de compensar a natureza perigosa ou insalubre de determinadas atividades. Isso tudo é desconsiderado pela reforma, o que implicará a necessidade de que muitas categorias trabalhem por mais tempo.
A segunda grande alteração da reforma é a instituição do sistema de pontos como base de cálculo do valor da aposentadoria. Atualmente, para os servidores públicos, a base de cálculo são os últimos seis meses de contribuição, enquanto para o setor privado, levam-se em conta as contribuições dos vinte e cinco melhores anos. Atualmente, portanto, vige o sistema de repartição, através do qual prevalece a solidariedade entre os contribuintes. Nesse caso, o trabalhador que está na ativa contribui com o pagamento dos que já se encontram aposentados. Esse sistema funciona como importante mecanismo de redução das desigualdades sociais.
Com a reforma, se instaura o sistema de capitalização no qual o próprio trabalhador se responsabiliza pela sua aposentadoria futura como uma espécie de acumulação individual que ocorre durante sua fase laborativa. Com esse modelo que se pretende implantar através da reforma, as contribuições são transformadas em pontos que alimentam uma conta individual em nome do trabalhador. Esse modelo prejudica os trabalhadores de mais baixa renda, que poderão dispor de um montante menor para a capitalização, bem como aqueles trabalhadores mais afetados pelo desemprego, que não terão as mesmas condições de contribuir continuamente. As mulheres também serão duramente afetadas pelo sistema de pontos. Isso porque elas são submetidas com muito mais frequência a trabalhos precários ou de tempo parcial, têm sua vida profissional interrompida com a gravidez e o nascimento dos filhos e recebem salários menores do que os dos homens. Isso significa que possuem menores condições de capitalizar e acumular pontos pelo sistema que se propõe reformar.
Dessa maneira, tanto os trabalhadores de mais baixa renda, quanto as mulheres, com o objetivo de superarem a pontuação que se estimada a menor, devem permanecer por mais tempo no mercado de trabalho a fim de compensar a defasagem no montante da capitalização alcançada. Esses deverão ser fortemente prejudicados pelas alterações a serem provocadas pela reforma da previdência na França.
O próprio primeiro-ministro francês Édouard Philippe deixou claro em entrevista no dia 6 de dezembro que uma das implicações da reforma é o aumento do tempo de contribuição. Segundo Philippe Martinez, secretário geral da CGT, uma das maiores centrais sindicais do país, franceses não poderão pagar pelo benefício, como em caso de desemprego, por exemplo, e, em decorrência disso, devem ganhar menos.
A reforma da previdência francesa, assim como aquela aprovada nesse mesmo ano pelo Congresso Nacional Brasileiro, possuem muitos pontos em comum. Nascem da estratégia do grande capital financeiro internacional de atacar o caráter público da previdência social e abocanhar o lucro decorrente da administração de pensões e aposentadorias. Ambas as reformas atacam em cheio direitos conquistados pelos trabalhadores a duras penas.
Representam, de fato, tanto no Brasil quanto na França, um enorme retrocesso social. No Brasil, todavia, seus efeitos devem ser ainda mais agudos, potencializados pela miséria crescente, pelo desemprego em níveis altíssimos e pela maior precariedade e acesso a serviços públicos. Por outro lado, na França, o que se verifica é que a reforma não vai encontrar tanta facilidade de aprovação quanto no Brasil. Os trabalhadores e os estudantes franceses têm demonstrado disposição na luta contra a retirada de direitos. Que essa disposição atravesse fronteiras e inspire o Brasil a resistir da mesma maneira.
(*)Lucas Reis da Silva é Auditor-Fiscal do Trabalho. É bacharel em Direito e História pela Universidade Federal de Ouro Preto (MG) e mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, cursando parte do mestrado na Universidade Paris – 1 Pantheon Sorbonne.
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