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MUNDO

2020: Começo de ano em chamas

Waldo Mermelstein e José Carlos Miranda

O início de 2020, começa em grande turbulência e nos parece que as promessas de paz e prosperidade dos tradicionais votos de fim de ano e o desejo que 2019 acabasse rapidamente se esvaíram na quilométrica coluna de fumaça alaranjada do gigantesco incêndio na Austrália, tragédia com intrínseca ligação ao aquecimento global, o que reaviva de sobremaneira a discussão climática.

Sem que essa tragédia tivesse terminado, o governo dos EUA “sob ordens do presidente” Trump ordena um ataque para assassinar figuras do primeiro escalão do regime do Irã em um aeroporto na cidade de Bagdá na última quinta-feira 02/01. Entre os mortos está o general iraniano Qasem Soleimani, comandante das forças Quds elite da Guarda Revolucionária do Irã. Em nota o Pentágono diz: “ Os militares dos EUA tomaram medidas defensivas para proteger o pessoal dos EUA, matando Qasem Soleimani”. Neste artigo trataremos desse tema.

O general Soleimani era considerado o número dois na hierarquia do regime iraniano, inclusive alguns analistas sugeriam que estava entre os prováveis sucessores do atual presidente Hassan Rouhani. Entre as vítimas deste ataque também estava Abu Mehdi Al Muhands, o número dois da Hashd Al Shaabi, uma coalizão paramilitar pró-iraniana. Era considerado “o homem do Irã” no Iraque e inimigo número um dos EUA. Além dele, foi assassinado Naim Qassem, o segundo na hierarquia do Hezbollah do Líbano. Com isso, foram mortos também no ataque dois dirigentes de grupos que formam uma grande rede de apoio ao regime iraniano nesta região.

Essa rede é constituída por grupos político-militares que se organizam em bases sectário-religiosas e que muitas vezes possuem um caráter abertamente ultrarreacionário. Por exemplo, o Hezbollah no Líbano teve um papel fundamental na defesa contra a ocupação e as agressões israelenses, mas há muitos anos atua como uma das forças políticas fundamentais dos sucessivos governos neoliberais no país e que estão sendo contestados nas ruas pelas mobilizações populares. E na Síria, as diversas milícias xiitas locais, mais as tropas enviadas diretamente por Teerã, salvaram o ditador Assad da queda na guerra civil.
O ataque desta semana se segue ao aumento da pressão dos EUA contra o Irã desde a ruptura unilateral do acordo nuclear em 2018, incrementado por duríssimas sanções econômicas que levaram praticamente à bancarrota o Irã, causando terríveis sofrimentos à sua população. Esses atos de agressão se ampliaram qualitativamente com a ação no aeroporto de Bagdá, as continuadas ações contra milícias pró-iranianas em território iraquiano, além do envio de mais milhares de soldados ao Oriente Médio, e soam como uma declaração de guerra.

O objetivo de Trump, como das administrações americanas anteriores, é o de sufocar o regime iraniano, que se opõe a entregar suas riquezas de hidrocarbonetos (para comprovar essa importância, foram descobertas imensas reservas de petróleo no Irã nesta semana, que colocariam o país como tendo a terceira maior reserva do mundo), o que além disso é um “mau exemplo” perante os demais dóceis regimes, desde a Argélia, passando pelo Egito e as monarquias fundamentalistas do Golfo, para citar os principais.

Assim, teria as mãos mais livres para lidar com os demais regimes e movimentos sociais da região e poder voltar a dominar totalmente o Oriente Médio e suas imensas reservas de petróleo, sem ter que deslocar de forma permanente uma grande quantidade de tropas para a região (além dos cerca de 60 mil soldados que o Comando Central das Forças Armadas dos EUA admitem estar estacionadas nas mais de 50 bases militares conhecidas). Um objetivo que tem em todo o mundo, a começar pela nossa América Latina e suas riquezas naturais, como demonstra a sucessão de ataques à Venezuela e os golpes e ataques aos governos que oferecem algum tipo de resistência a essa ofensiva. A mão que ataca a Venezuela, que ajudou a derrubar Evo Morales, que apoiou o golpe parlamentar no Brasil é a mesma que ataca o Irã, antes de Trump e mais ainda com ele.

Estamos no meio de uma escalada de ataques dos EUA contra o Irã, mas nos parece improvável o advento de uma guerra direta frontal entre eles pelas repercussões existenciais para o Irã e, por parte dos EUA, pelos efeitos na economia mundial (e americana) e pelo tema eleitoral deste ano.
Houve muitos comentários em redes sociais sobre a possibilidade de o conflito gerar uma guerra mundial, mas esta só pode ocorrer atualmente pela confrontação dos EUA com a China e/ou a Rússia, pois são as grandes potências nucleares, mas isso não interessa a ninguém, neste momento, pela possibilidade de mútua aniquilação.

Do ponto de vista regional, a situação é distinta, Como a história mostra, esse tipo de provocação sabe-se como começa, mas não como termina. Importantes atores geopolíticos, como a Rússia e a China, têm interesses na região (A China é a principal parceira comercial do Irã e a Rússia auxiliou com armas e assessores o acionar iraniano para defender a ditadura de Assad). E inclusive realizaram grande manobras militares conjuntas no Golfo de Omã e no Oceano Índico com o Irã na semana passada. Mas a China, particularmente, não tem demonstrado desejar se envolver diretamente em um conflito de grandes proporções longe de seus interesses vitais em seu entorno extremo-oriental.

A Rússia, mesmo com um envolvimento militar bem maior na região, tampouco alenta uma confrontação direta com os EUA ou seus aliados na região. Ela ganhou um peso inédito no Oriente Médio a partir do vácuo provocado pela retirada americana quase total do Iraque e do Afeganistão e seu papel no desfecho da guerra civil na Síria. Seu peso atual se pode ver no papel de intermediação, na região administrada pelos curdos na Síria, entre a Turquia, o regime de Assad e o próprio Irã, além dos contatos frequentes com Israel para impedir que os confrontos com as forças ligadas ao regime sírio aumentassem qualitativamente.
A reação do Chefe Supremo Ali Khamenei foi a de prometer vingança em qualquer terreno, sem anunciar nenhum alvo em particular. Além disso, o Irã se retirou do acordo nuclear e declarou que recomeçará a produzir urânio enriquecido, material base para a confecção de armadas nucelares. Trump respondeu dizendo que qualquer ataque a qualquer instalação americana poderá ocasionar um ataque em 52 alvos de grande relevância para o Irã e para a cultura iraniana (sic!).
Os governos europeus, em geral, chamaram à contenção, tendo Amélie de Montchalin, alta funcionária do Ministério dos assuntos estrangeiros, em nome do governo francês, alertado que “despertamos em um mundo mais perigoso” e que o governo favorece que haja negociações, o que demonstra também a preocupação com ataques a interesses europeus na região e que a desestabilização no Oriente Médio afete a Europa.

A OTAN, reunida em 06/01,declarou seu apoio à ação americana, chamou à diminuição das tensões na região e chamou a que o Irã se “abstenha de mais violência e provocações”, o que mostra que, mesmo que por enquanto não tenha vontade de participar em aventuras militares conjuntas, está do lado dos americanos.

Como não poderia deixar de ser, o governo Bolsonaro procurou achar uma forma de apoiar a ação americana sem se indispor com os iranianos. A nota do Itamaraty fala em apoio à luta contra o terrorismo. Não era de se esperar que o discípulo de Olavo de Carvalho e hoje chanceler se preocupasse em entendesse o que é uma agressão bélica a um país independente e em um terceiro país. De qualquer forma, o embaixador brasileiro foi chamado a prestar esclarecimentos ao governo em Teerã, o que é uma forma diplomática branda de repreensão, vinda de um país que importa bilhões de dólares de produtos agrícolas brasileiros. Além da nota, a correta e mesmo tímida reação iraniana tem a ver com todas as declarações e posições do governo Bolsonaro, quando se sabe que o Brasil sediará em 5 e 6 de fevereiro uma reunião do Processo de Varsóvia, impulsionado pelos governos de extrema-direita dos EUA e da Polônia para promover a “Paz” (americana) no Oriente Médio e que contará com a fina flor reacionária do mundo. Na agenda interna do governo brasileiro, certamente se requentarão as velhas acusações contra a comunidade palestina que vive em Foz de Iguaçu.

Devemos recordar que o regime dos Aiatolás tem grupos de apoio em vários países, Líbano, Iraque, Síria e Iêmen, enquanto os americanos, além de suas bases e sua frota no Mediterrâneo, tem uma série de poderosos aliados subordinados (Israel e Arábia Saudita, em particular), que podem atacar o Irã por sua conta ou provocar um ataque por procuração. O que pode gerar o crescimento da violência na região de formas imprevisíveis, como novas divisões de países entre milícias vinculadas a países imperiais ou potências regionais, ao estilo do que ocorre na Líbia desde a queda de Khadafi ou no Iraque e/ou o ressurgimento em grandes proporções de agrupamentos islamistas jihadistas ao estilo do autodenominado Estado Islâmico e/ou Al-Qaeda (ressalte-se que a derrota do “califado” no Iraque e na Síria só foi possível pela participação de tropas das milícias pró-iranianas e principalmente dos curdos de Rojava, ambos atacados e abandonados respectivamente pelos americanos nos últimos meses). A entrada de Israel nesse cenário, seria uma “boa causa” para Netanyahu se livrar dos problemas políticos internos, e ganhar de forma decisiva as eleições no país em março, lembrando que Israel sempre foi contra o acordo nuclear com o Irã. No entanto, qualquer intervenção massiva direta de Israel na região levantará o ódio latente das massas árabes pelo seu papel histórico de carrasco dos palestinos.

De qualquer maneira, mesmo que não sobrevenha uma guerra de agressão frontal dos EUA e/ou de seus aliados regionais contra o Irã, a possibilidade do ataque em Bagdá provocar conflitos generalizados no Oriente Médio a curto prazo é enorme, o que pode ter consequências desastrosas para os povos da região e também na economia mundial com altas do petróleo e o aumento do número de refugiados, que já é dramático.

É bom salientar que a agressão americana também soa como uma advertência aos protestos de massas contra as condições de vida, contra os regimes de divisão sectária do poder e os próprios regimes políticos que têm atingido o Líbano, o Iraque e o próprio Irã. Estão por se ver que efeitos que essa agressão americana terá em cada um desses países.

Por exemplo, no Irã, se o impacto indiscutível da ação americana em uma população acostumada a não ser atacada de forma tão frontal desde o fim da guerra contra o Iraque nos anos 1980 ( e que causou cerca de 1 milhão de mortos) fará com que o regime dos aiatolás consiga desestimular os protestos populares contra os aumentos de combustíveis – que foram brutalmente reprimidos, em nome da unidade nacional.

No Iraque, se o ato militar perpetrado em pleno aeroporto de Bagdá causará finalmente um forte movimento contra a presença militar americana no país, que já dura mais de 16 anos. Uma primeira indicação disso é a votação inicial do Parlamento iraquiano para expulsar do país as tropas americanas (ao que parece não houve referências à presença iraniana no país). A reação de Trump foi violenta, dizendo que os iraquianos teriam que pagar pela gigantesca base militar lá instalada e que se não o fizessem receberiam sanções muito maiores do que as aplicadas ao Irã.

Confirmando que não há ainda uma estratégia clara sobre o que fazer após o assassinato de Soleimani, o exército americano no Iraque divulgou nesta segunda-feira, 06/01, uma carta em que dizia que iria proceder uma retirada segura e ordenada, somente para ser desmentida pelo secretário de Defesa Mark Esper, que alegou que era um rascunho e que não havia decisão sobre a retirada. É a revelação da hesitação estratégica americana, já que, para se manter no Iraque sem a colaboração das milícias pró-iranianas, os EUA precisariam voltar a deslocar uma quantidade de tropas muito maior do que os 5 mil soldados que estão hoje em solo iraquiano.

Por outro lado, não se sabe qual será o destino dos massivos protestos contra o regime iraquiano, que se notabilizaram por unir as várias linhas religiosas, rompendo um padrão desde a invasão americana em 2003. No final de semana, milícias pró-iranianas atacaram os manifestantes acampados na Praça Tahrir de Bagdá, mas foram rechaçados.

Por fim, o que ocorrerá com o frágil regime político libanês, em que o Hezbollah é uma das principais forças. Ademais das crises latentes ou abertas na região e mais além (com destaque para o levante na Argélia).

Tampouco estão claros quais são os planos de Trump após ter assassinado o principal dirigente militar iraniano (supondo que haja um plano estratégico e não tenha sido apenas uma reação para salvar a imagem dos EUA como potência dominante também na região). O que parece ter decidido a ação drástica é para evitar que sua presidência fique marcada pelas cenas da invasão da parte externa da embaixada em Bagdá, o que recorda o fantasma americano da longa ocupação da embaixada em Teerã em 1979 e a ocupação do complexo diplomático em Bengazi na Líbia, em 2012, em que o embaixador americano foi morto. Por outro lado, um giro em direção ao Oriente Médio pode novamente se conflitar com a estratégia mais geral traçada pelo estado americano sob a administração Trump que considera sua prioridade de segurança nacional confrontar a China. Assim, o problema não é que não possa aumentar rapidamente os cerca de 60 mil soldados que estão nas mais de cinquenta bases americanas no Oriente Médio e deslocar mais navios de sua frota, a mais poderosa do mundo para lá, mas a implicação de se envolver em um duro conflito com o maior adversário que já enfrentou na região.

Além disso, os efeitos no front interno americano não estão claros: uma ofensiva guerreira em grandes proporções lhe será favorável para se safar do impeachment e ganhar as eleições presidenciais deste ano ou pode justamente abrir uma brecha entre os republicanos no Senado que até agora lhe dão apoio contra o impeachment e/ou diminuir a vantagem que as pesquisas e análises revelam quanto às suas chances de reeleição até o momento?
A reação do Irã tampouco não se pode prever com exatidão: sem poder deixar de reagir a essa provocação de grande escala e sem forças militares para enfrentar diretamente os EUA, o que fará, quando e onde? As primeiras análises apontam para ações diferidas no tempo e no espaço da região, mas o regime tampouco pode deixar de responder sem se desmoralizar e abrir a possibilidade de uma ofensiva geral americana para acabar com sua influência no Iraque (e em outros países) e/ou derrubar o próprio regime. Ao mesmo tempo, uma resposta pode ocasionar o pretexto para ações americanas ainda mais duras.
Além disso, é preciso ver o impacto que terá a ação americana no conjunto da região, que sofre uma espécie de guerra endêmica impulsionada pelas potências imperiais e regionais pelo controle das riquezas petrolíferas desde pelo menos a invasão americana no Iraque.

Independentemente dos cenários descritos por vários analistas, uma coisa pode-se constatar: o objetivo da fração imperialista pró Trump segue com obstinação o seu projeto de redesenho de uma “nova ordem mundial”, em que a hegemonia americana seja reafirmada e reforçada pela ação unilateral, evitando as necessárias concessões dos acordos multilaterais. Os desdobramentos deste acontecimento nesse aspecto ainda estão por vir.

Do ponto de vista do movimento amplo dos trabalhadores, da juventude, dos explorados e oprimidos deve-se condenar veementemente essa nova agressão militar para realizar execuções extrajudiciais em território de um país supostamente independente e cujo claro objetivo é o de manter o controle sobre os recursos da região e mostrar que, mesmo decadente economicamente, ainda é a primeira potência militar do mundo. Essa agressão pode causar um novo e mais terrível ciclo de guerras na região.

Além disso, denunciamos as sanções contra o Irã, como as que têm sido aplicadas contra a Venezuela como ações criminosas contra os povos desses países para punir os que se atrevem a questionar algumas das regras americanas para o mundo.

Por último é preciso recordar que as sucessivas guerras provocadas pela intervenção imperialista têm transformado milhões de habitantes da região em refugiados, aos quais têm sido negados os mínimos direitos. Já é hora que se exija a abertura das fronteiras, em particular na Europa!

Já houve uma primeira reação pelo mundo contra esse ataque, em particular nos próprios EUA (que têm uma longa tradição pacifista, que vem do movimento contra a Guerra do Vietnã e dos movimentos contra as invasões do Iraque e Afeganistão), onde houve protestos em 70 cidades na semana passada. Ainda foram relativamente pouco numerosos e pequenos, mas certamente poderão crescer se as ameaças aumentarem. Duas das principais revistas de esquerda americanas já se pronunciaram contra a agressão, a Jacobin, e a New Politics, além do cientista e veterano ativista de esquerda, Noam Chomsky. Esse é o caminho para tentar evitar a guerra e defender o Irã da agressão.