Em setembro de 2011, o socialista Yassin al-Haj Salah previu que a revolução síria entrava “uma situação fatal, predisposta à destruição”. Os primeiros protestos pacíficos que surgiram foram esmagados pela ditadura de Bashar al-Assad, e durante o verão a revolta evoluiu para luta armada. Porém, após oito anos desta “situação fatal”, hoje o regime Assad prevalece.
Apesar da duração da guerra e das catástrofes que ela trouxe, as forças por trás do conflito sírio continuam pouco conhecidas, mesmo na esquerda. Os atores em geral são vistos em termos culturalistas como “Xiitas vs. Sunitas,” ou “Islamistas vs. Secularistas.” Frequentemente, a guerra é diminuída a pura geopolítica, com os principais atores reduzidos a agentes dos Estados Unidos e seus opositores (ou aliados) no cenário internacional.
Ainda mais raros são os debates sobre a evolução na dinâmica das classes sociais que moldaram o Estado e a sociedade na Síria mesmo antes dos protestos de 2011. Porém eles tiveram um efeito decisivo no levante e na resiliência do regime. Compreender estes elementos sociais do conflito também é importante se quisermos entender a estratégia do regime Assad para a “nova Síria”, e como ela se liga aos planos de seus aliados sírios e russos.
Joseph Daher é autor do livro Syria after the uprisings: the political economy of the state resilience (Pluto Press, 2019). Ele conversou com Joe Hayns sobre as origens de fundo do conflito, das razões para a sobrevivência do regime Assad, e sobre sua estratégia de “nova Síria”.
JH | Gilbert Achcar usa o termo “patrimonial” para descrever os países no mundo de língua árabe em que um pequeno grupo de famílias são “donas” do Estado e do capital: Marrocos, Arábia Saudita e outros estados do golfo. Ao mesmo tempo, descreve Egito e Tunísia como “neo-patrimoniais” – países em que parentesco, propriedade de capital e controle do Estado se misturam, mas não se fundem. Você coloca a Síria no primeiro grupo – por que isto?
JD | A instrumentalização dos termos patrimonialismo e neo-patrimonialismo por Achcar foram muito úteis. Por “patrimonial”, queremos dizer um Estado que foi inteiramente privatizado, por dentro de uma família e através de suas próprias redes. Isto tornou a derrubada destes estados algo muito mais difícil que nos estados “neo-patrimoniais” que você mencionou, em que setores-chave do poder estatal foram capazes de remover Ben Ali e Mubarak enquanto mantiveram sua forma básica de governo. No Sudão e na Argélia – aonde atualmente estão acontecendo enormes levantes – o processo possui características neo-patrimonialistas, mesmo que o poder de fato esteja entre os membros do estrato mais elevado dos militares. Esta realidade se diferencia da Síria, em que o poder burocrático, militar e financeiro está inteiramente nas mãos de uma única família e sua rede mais ampla.
HJ | Dada essa continuidade, você poderia explicar as mudanças que vê, das políticas estatais “corporativistas” para as “neoliberais”?
JD | As políticas neoliberais se expandiram com a chegada de Bashar al-Assad à presidência em 2000, enquanto as organizações corporativistas – o Partido Ba’ath, as redes camponesas e a Federação Geral dos Sindicatos – se enfraqueceram. Essas redes nunca foram voltadas a fortalecer os camponeses ou os trabalhadores, eram na prática um instrumento de controle e clientelismo. Mesmo assim, elas passaram a ser menos utilizadas depois de 2000.
Não podemos nos esquecer que quando o pai de Bashar, Hafez al-Assad, chegou ao poder em 1971 ele o fez contra a ala radical de esquerda do Partido Ba’ath, tendo de escolher entre aniquilar as instituições existentes ou utilizá-las a seu favor. Primeiro ele reprimiu os ativistas do Ba’ath e militantes de esquerda de fora do partido. Porém manteve as instituições como redes de controle, ao mesmo tempo em que buscou colaborar com setores da burguesia, especialmente em Damasco.
Já no final da década de 1970, começou um processo de “abertura” – infitah – para o capital, que se ampliou na década de 1980 com a crise fiscal. Bashar acelerou este processo junto a bancos estrangeiros, investidores externos, etc. Com essa ampla mudança, houve um enfraquecimento dos laços do regime com sua base social histórica – isto é, camponeses e trabalhadores de classe média, especialmente do setor público – com o regime desde então dependendo na alta classe média urbana e setores da burguesia propriamente dita.
Bashar não era como seu pai; cresceu entre os estratos mais ricos da sociedade em Damasco, e foi educado na Inglaterra. Também na década de 2000, acompanhou uma nova geração de tecnocratas, que aplicavam políticas neoliberais clássicas enquanto afirmavam apresentar a “solução para a Síria”. Mas a mudança mais geral do capitalismo-de-estado para o modelo patrimonial-neoliberal começou no início dos anos 1970.
HJ | Com a dependência do regime nas instituições populares diminuindo nos anos 2000, as classes populares conseguiram produzir instituições autônomas com pautas e expressão política próprias?
JD | Na década de 2000, havia mais de 170 clubes de debate pela Síria, alguns voltados mais a questões de direitos democráticos nacionais – como os dos curdos, assírios, etc. – e outros de temas como a economia e o Estado. Também havia os da esquerda. Em Damasco, surgiram pequenos clubes de pessoas que se organizavam com propostas à esquerda – aparecendo até mesmo, por exemplo, um grupo inspirado pelo Attac (uma campanha por um imposto sobre transações financeiras). Um ano depois, a maioria dos clubes de debate foi fechado à força, com casos de pessoas sendo fisicamente atacadas.
Estudantes também tentaram se organizar por fora da principal entidade estudantil, especialmente em torno da intifada palestina em 2003. Eles foram reprimidos pelo regime, pois eram vistos como uma ameaça potencialmente radical.
Sempre que os trabalhadores tentaram organizar ou resistir às políticas de liberalização – muitas vezes organizando greves – foram reprimidos ou cooptados pela Federação Geral dos Sindicatos, ligada ao regime. Não houve – como no Egito, por exemplo – qualquer tentativa de organizar sindicatos independentes. E pudemos ver isso no levante de 2011: não surgiram grupos de massa se organizando explicitamente com recorte de classes.
As capacidades de grupos independentes dos órgãos estatais eram muito, muito limitadas. No final da década de 1970, sindicatos e associações profissionais tiveram uma atuação importante, mas foram quase inteiramente reprimidos e substituídos por organizações constituídas pelo regime.
JH | Algo destes sindicatos permaneceu nas décadas posteriores – se não institucionalmente, enquanto memória coletiva? Ou figuras públicas que resistiram às décadas de 1980 e 1990?
JD | Infelizmente, nenhuma instituição sobreviveu e quase nenhuma memória coletiva permaneceu das importantes greves e manifestações que ocorreram na Síria entre a década de 1970 e no início dos anos 1980. Essas histórias não eram bem conhecidas pela nova geração dos que foram às ruas em 2011 – se restringiam às gerações mais velhas, aquelas que já estavam envolvidas em movimentos e grupos de esquerda.
Muitos militantes de esquerda tiveram importância atuando de forma independente nos diversos comitês locais de coordenação e outras estruturas criadas durante a revolta, sem se envolverem em organizações políticas formais. Muitos também estiveram envolvidos na coalizão de quatorze organizações democráticas e de esquerda – al-Watan, ou “A Nação” – que reunira veteranos da oposição com ativistas das gerações mais novas. Mas em 2012, essa coalizão desapareceu, consequência da dura repressão contra a maioria de seus militantes.
JH | No norte da Síria, ao longo dos anos 2000, organizações curdas se moveram em torno de propostas nacionais e sociais. Por que tanta diferença em relação ao resto do país?
JD | Existe uma longa história de organização e resistência política curda na Síria. O primeiro partido político curdo no país foi estabelecido em meados dos anos 1950 – antes, os curdos se organizavam majoritariamente no Partido Comunista da Síria, mas, por ser “nacionalista”, o PC não defendia seus direitos, o que levaram muitos a sair.
Na véspera do levante, havia mais de dez partidos curdos, alguns muito centrados em torno de personalidades, mas outros organizados de forma ampla. O Yakiti, por exemplo, foi um partido muito importante criado nos anos 1990 pelos curdos, com orientação nacionalista de esquerda.
Em 2004, os protestos se espalharam pelas áreas curdas ao redor da Síria. Eles estavam organizados em torno da oposição à discriminação que enfrentavam, assim como de questões sociais. Historicamente, as áreas com as maiores populações curdas também são as mais pobres, apesar de sua importância para a agricultura e o petróleo.
Porém, a presença de um discurso mais social não implica necessariamente em organizar as pessoas com perspectiva de classe. Se olharmos, por exemplo, para o PYD (Partido da União Democrática) – grupo irmão do Partido dos Trabalhadores Curdos, o PKK – ao final dos anos 2000, ele começou a abandonar o classismo vindo do discurso do PKK.
Havia, porém, uma espécie de senso coletivo comum a respeito das questões sociais. Era algo que se via muito no início do levante. Em Da’ra, por exemplo, foram atacados os escritórios da Syriatel – propriedade de Rami Makhluf (conhecido primo de Bashar al-Assad) – como uma espécie de mensagem dizendo “esse é o cara que está nos roubando”. Esse senso comum estava presente, mas não em primeiro plano.
JH | Mesmo que as classes populares não dispusessem de instituições próprias, ainda havia modos coletivos de pensar, inclusive baseados em formas etnolinguísticas e sectárias religiosas, que se tornaram mais intensas durante a guerra. Autores como Rima Majed e Yassin al-Haj Saleh, para citar apenas dois, teorizaram a intensificação do sectarismo religioso como uma estratégia implantada pelo Estado. Mas ela foi apenas uma estratégia estatal?
JD | Alguma redistribuição foi mantida durante o reinado de Hafez, mas isso diminuiu nos anos 2000, levando ao aumento nos níveis de pobreza. Ao mesmo tempo, identidades e relações “primordiais” – laços tribais, agrupamentos em torno de figuras religiosas, etc. – foram incentivadas pelo regime, com a retirada de serviços públicos, deixando também em parte espaço para instituições de caridade religiosas.
O sectarismo religioso foi fustigado desde o início do levante, nas regiões em que a população mais se misturava. Os crimes do regime – especialmente no interior de Hama e na região de Homs – fomentaram este processo. Ele também se espalhou graças à forma com que o regime caracterizou os manifestantes – mesmo que não fossem muçulmanos – como fanáticos “salafitas“, como extremistas religiosos, assustando a população e intensificando o sectarismo. Também não podemos esquecer que o regime libertou prisioneiros fundamentalistas religiosos e jihadistas islâmicos no início do levante, exatamente para dar à mobilização traços sectários.
Certamente, a principal força responsável por sectarizar a sociedade síria foi o Estado; isso não significa que ele foi o único. A irmandade muçulmana, quando iniciou seu confronto com os militares no final dos anos 70 e início dos anos 80, usou o sectarismo para se apresentar como representante da comunidade sunita na Síria. Não deu certo, porque a comunidade sunita não é uma identidade política única – na verdade, ela é marcada por amplo pluralismo político e social.
JH | Se uma razão para a resiliência do regime foi a “sectarização” – fomentando divisões políticas entre diferentes grupos da oposição – outra foi sua própria capacidade de atuar por cima das religiões, idiomas e assim por diante. Um exemplo foram suas relações com o capital sunita – ou talvez “capitalistas que eram sunitas” – durante a década de 2000.
JD | Certamente. É errado dizer que governa na Síria um regime alauita, mas sim um regime com preponderância de figuras alauitas, especialmente nos serviços de segurança, cujos escalões mais altos costumam estar diretamente ligados à família Assad.
Mas se fosse apenas um regime alauita, já teria sumido há muito tempo – por isso é importante afirmar que a Síria é um estado patrimonial que precisou utilizar vários instrumentos repressivo e diversos tipos de redes, que existiam acima e através das diferenças sectárias.
JH | Mesmo assim, aconteceram diversas mobilizações não sectárias e até anti-sectárias em 2011 e 2012. Olhando apenas ao PYD e a situação curda, enquanto várias tendências na esquerda de língua inglesa veem o PYD como partido da transformação progressista, ou até revolucionária, outros criticam sua relação com o regime Assad e os Estados Unidos. Seus vínculos com tribos de língua árabe e outros grupos árabes desconstroem as descrições mais caricaturais do partido. Mas ninguém negaria que ele tem sido ágil, taticamente, diante do perigo mortal de longo prazo representado por uma Turquia apoiada pelos EUA e, a partir do final de 2013, da ameaça existencial vinda do Estado Islâmico.
JD | Nesse tipo de guerra, é difícil ter uma estratégia sólida, mas tem ficado claro que o objetivo do PYD vem sendo consolidar sua influência e controlar as áreas que consegue, porém através de relacionamentos de curto prazo com aqueles ao seu redor.
Durante o início do levante, o PYD não era o principal grupo nas ruas curdas – na verdade, nenhum partido curdo ocupava esta posição. Se destacavam principalmente as redes de jovens. Dentro desse movimento estava o Partido Yekiti – então enfraquecido pelas suas divisões internas – e o Movimento Futuro Curdo, um partido menor que ainda tinha alguma influência. Após 2011, havia Comitês de Coordenação Local, organizados em todas as áreas curdas, em colaboração, principalmente nas cidades, com outras etnias, árabes, assírias ou siríacas.
O PYD realmente virou o principal partido político curdo em meados de 2012, quando o regime se retirou de várias áreas para se concentrar em outras partes do país. O PYD ganhou espaço para construir suas próprias capacidades políticas e militares. Mas a acusação de que o PYD seria uma “ferramenta” do regime está completamente errada. Ambos colaboraram em determinados momentos, mas isso não se transformou em um relacionamento de longo prazo. A PYD tenta aplicar uma linha independente do regime e da oposição.
Isso não pode nos impedir de criticar o PYD. Embora tenha ocorrido entendimentos entre os dois, o PYD não é um aliado do regime. Um sinal disso é a contínua recusa do regime em reconhecer qualquer tipo de direito curdo. Quando Assad capturou Aleppo em 2016, gradualmente retomou as áreas sob controle da PYD, porque não conseguia conviver com essa outra força poderosa.
Bashar al-Assad e outras autoridades sírias acusaram o PYD de ser uma “marionete” e “ferramenta” dos EUA e disseram que o “esmagarão”, tratando Raqqa (antiga capital do Estado Islâmico, agora controlada pela PYD) como território ocupado. Em Afrin, por exemplo, os russos pressionaram o PYD a fazer um acordo com Assad, afirmando que caso removessem todas as suas armas pesadas da região e cedessem ao regime, a Turquia não invadiria o local. O PYD recusou, e o resultado foi a ocupação turca de Afrin no ano passado.
Mesmo que ocorra agora negociações, o regime recusou qualquer tipo de condicionalidade imposta pelo PYD por federalismo ou descentralização. É errado dizer que eles são aliados, mesmo que em alguns momentos tenha ocorrido entendimentos entre eles.
JH | Olhando para trás, você acha que a falta de colaboração entre as classes populares árabes e curdas após 2012 foi inevitável, em parte pela histórica fragilidade organizacional das classes populares na Síria, além do papel tão importante desempenhado pela Turquia junto à “oposição no exílio”?
JD | Acho que precisamos fazer uma distinção entre o socialismo por debaixo e a organização das classes populares. Obviamente, a ausência no longo prazo de organizações populares foi uma fragilidade do levante sírio.
Existiu, porém, uma organização coletiva por debaixo – os Comitês Locais de Coordenação e, posteriormente, os Conselhos Locais que conseguiram desafiar a dominação do Estado. No verão de 2012, eles estavam batendo na porta de Damasco, enquanto enormes áreas do país estavam fora do controle do regime. Em termos da revolução síria, eles eram radicais. Isso significava que o Estado havia desaparecido de uma determinada área, foi uma espécie de tentativa de duplo poder.
A grande maioria dos comitês e conselhos promoviam um discurso democrático e não sectário. Alguns também se voltaram às questões sociais. Por causa do formato sócio geográfico da insurreição, questões de justiça social, assim como a critica à corrupção, estavam presentes mesmo que sem ocupar o centro das reivindicações.
Infelizmente, quando se trata da questão curda, existe uma longa tradição entre vários setores da oposição síria – e até alguns na esquerda – recusando a autodeterminação dos curdos. Dez a 15% da população é curda, principalmente no nordeste. Porém, mesmo lá, estão longe de uma maioria absoluta, sendo que mais da metade dos curdos vive em Aleppo e Damasco. Ao invés de um estado nacional independente, é mais interessante neste caso a construção na Síria de um sistema federalista, descentralizado, que reconhecesse os direitos nacionais dos curdos, removesse a palavra “árabe” do nome “República Árabe da Síria”, etc., etc. – algo, aliás, que foi recusado pela oposição mais ampla, logo na sua primeira conferência no verão de 2011, provando as limitações da oposição política tradicional.
A partir do início de 2012, os comitês de coordenação local curdos passaram cada vez mais a reivindicarem exigências próprias, mas desde o início foram completamente rejeitados pela oposição oficial. Qualquer pessoa que defendesse demandas nacionais curdas era acusado de separatismo.
Mas dizer que estava predestinado a acontecer dessa maneira… Acho que havia outras possibilidades, especialmente vindo das organizações coletivas pela base, e houve experiências de comitês de coordenação em Aleppo, em cidades mistas e também em Qamishli, onde você tinha comitês de coordenação locais com assírios, curdos e árabes trabalhando juntos, colocando suas demandas comuns em cada um dos idiomas.
De fato foi a oposição no exílio, com sua perspectiva nacionalista árabe, que recusou os direitos nacionais dos curdos. Esta recusa foi apoiada por atores externos, principalmente a Turquia, que viu na presença do PYD em suas divisas uma ameaça maior, chegando a abrir suas fronteiras para que organizações islâmicas fundamentalistas pudessem atacar os curdos.
JH | Você escreve sobre a “reconstrução” do país e a necessidade enorme do Estado por investimentos externos. Fiquei surpreso ao ler que nem a Rússia, nem o Irã, os Estados que mais apoiaram o regime, parecem capazes ou dispostos a realizar estes investimentos, o que nos volta a uma questão que paira sobre a contrarrevolução: o que levou estes países a apoiá-la tanto?
JD | Precisamos ser claros, sem o apoio da Rússia e do Irã – incluindo o Hezbollah e outras milícias sectárias – o regime não teria sido capaz de se sustentar politica, militar e economicamente.
As intervenções destas forças foram fundamentais. E mesmo que a intervenção oficial em massa da Rússia tenha começado em 2015, eles já tinham tropas que estavam auxiliando os serviços de segurança do regime. As forças apoiadas pelo Irã – Hezbollah e outros – atuaram desde 2012. Esse foi o elemento-chave.
Por que ele intervieram? A primeira razão foi, obviamente, para preservar seus interesses geopolíticos. Digo isto por entender o imperialismo como interesses econômicos e geopolíticos, e a relação deles entre si.
Também é importante lembrar que isto aconteceu depois da intervenção na Líbia. A Rússia se sentiu traída pelo governo norte-americano, que disse que apenas interviria em Benghazi se as tropas de Gaddafi atacassem a cidade. Mas ao invés disto desencadearam uma intervenção completa contra o regime, que mantinha laços econômicos com a Rússia.
As oportunidades abertas ao Irã e a Rússia na Síria também se relacionam ao enfraquecimento do imperialismo dos EUA na região, principalmente após a derrota no Iraque, a crise financeira de 2008, e os levantes em si. Barak Obama não queria repetir na Síria os erros da Guerra do Iraque, procurando ao invés disto um entendimento entre os governos e as oposições conservadoras – em geral a Irmandade Muçulmana e grupos aliados – que serviria aos interesses dos EUA.
A Rússia queria preservar seus interesses no país do Oriente Médio em que tinha os vínculos mais sólidos. Como disse Putin antes mesmo de 2011, a Rússia queria expandir as duas bases navais que mantinha lá. É diferente no caso iraniano. Primeiro precisavam garantir uma rota de entrega de armas para o Hezbollah no Líbano. Em termos mais gerais, sua estratégia busca uma localização melhor para negociar com atores mais fortes atuando enquanto “incômodo” – através de sua habilidade de causar problemas em outros lugares. O Irã tenta se contrapor a qualquer ameaça dos Estados Unidos ou outros aliados regionais dizendo, “se vocês nos atacarem, seremos capazes de contra-atacar,” seja no Iraque, Síria, Líbano e talvez no Yemen, e agora possivelmente até mesmo através do Hamas, por conta de sua nova direção.
No caso russo, o objetivo era manter um aliado importante; para o Irã, era se equilibrar melhor e impedir o que viam como a inaceitável perspectiva da Síria cair nas mãos de inimigos regionais como a Arábia Saudita.
JH | Por que não há investimentos de ambos os países – algo que imaginaríamos representar uma grande oportunidade de lucro e poder político? Por que ajudar a resiliência do regime, mas não sua reconstrução?
JD | É só observar a situação econômica de ambos. São países que estão enfrentando sanções e protestos sociais. Na Rússia, Putin provocou manifestações gigantescas quando tentou aumentar a idade mínima das aposentadorias e no Irã há um processo quase contínuo de greves em vários setores da sociedade. Especialmente por conta das sanções, nenhum dos dois países tem capacidade para realmente liderar a reconstrução síria – a economia russa, inclusive, é do mesmo tamanho que a da Espanha.
Esta no discurso oficial russo, em que dizem ao mundo: “se vocês quiserem ver os refugiados voltarem à Síria, terão de pagar pela reconstrução”. Este discurso está começando a atrair alguns Estados, particularmente os mais de direita na Europa, inclusive governos com traços fascistas – mas também apela a alguns setores dos governos liberais-autoritários, mesmo que ainda não estejam inteiramente ganhos a ideia e ainda recusem participar de qualquer tipo de reconstrução sem um processo de transição política.
JH | Algumas pessoas rejeitam a noção de “imperialismo” russo e iraniano na Síria, invocando a definição de imperialismo de Lenin, alegando que, ao invés disso, estes países se concentram na exportação de capital…
JD | A intervenção da Rússia começou por razões geopolíticas e não diretamente por motivos econômicos – ela tinha interesses econômicos, mas não eram tão grandes. O mesmo vale para o Irã.
Na verdade, os maiores atores que investiram na Síria antes da guerra foram Arábia Saudita, Catar e Turquia. Se seguirmos uma leitura literal de Lenin, esses países teriam sido os primeiros a defender o estado sírio. Nos primeiros seis meses, esses países tentaram, de fato, buscar um entendimento entre o regime e alguns setores da oposição conservadora, tentando conter a repressão, e somente quando não deu certo voltaram a apoiar certos setores da oposição – os mais reacionários.
Agora, a Rússia está tentando algum tipo de restituição financeira porque a guerra foi economicamente onerosa, faz isto pela busca descarada do controle sobre os recursos naturais. Mas, como eu disse, está tendo dificuldades com a reconstrução.
JH | A contrarrevolução destruiu a infraestrutura e as indústrias. Alguns ramos do capital foram arruinados; outros fizeram fortunas. Principalmente os que vendem armamento militar, mas também os que investem em setores de reconstrução – imóveis, transporte, e a produção de mercadorias secundárias, aço, concreto e assim por diante. Se o Estado tiver que gerenciar o relacionamento – a competição – entre os capitais desta “nova Síria”, terá o regime de Assad capacidade para fazê-lo?
JD | A classe capitalista encolheu muito. Principalmente porque os com maior independência do Estado foram embora.
Hoje, os principais capitalistas que permaneceram estão muito ligados aos serviços de segurança, ao regime – caso contrário, não teriam conseguido crescer. Na prática, estamos falando de comerciantes, mercadores e agentes de negócios: pessoas com capacidade de comprar petróleo, grandes quantidades de trigo e assim por diante, para o Estado.
Em outras palavras, o regime é, em todos os aspectos, mais patrimonial – sua base social encolheu. É mais sectário, mais tribal, mais clientelista, um capitalismo mais mafioso do que antes.
Um processo que começou antes da revolta foi o aumento no peso dos aluguéis, do comércio e dos serviços – a economia produtiva foi duramente atingida com a participação dos salários na renda nacional diminuindo de 33% antes da guerra para 20% agora. Estes dois fatores facilitarão o gerenciamento da classe capitalista.
JH | No livro, você detalha a Lei nº 10, que aumenta as exigências aos sírios para provar que são donos de suas propriedades. Milhões de sírios estão fora do país e milhões a mais foram deslocados internamente. Como você mesmo escreveu, a habitação informal era muito comum na Síria antes de 2011 e, por razões óbvias, os refugiados podem ter perdido a documentação de suas propriedades. Qual efeito você acha que isso terá?
JD | A ameaça das pessoas serem expropriadas de suas casas é real, esta lei também não é a única usada para expropriar as pessoas – ela é uma expansão do Decreto nº 66, promulgado em 2012. Essas leis têm dois objetivos.
Primeiro, elas criam oportunidades econômicas, porque fazem com que muita terra fique disponível. Trinta a 50% da habitação na Síria é informal. As pessoas fugiram sem levar provas de que eram donas de áreas ou de propriedades específicas – como provar? E mesmo que você possa provar, tem o risco de medidas de segurança, talvez a pessoa terá que pagar certa quantia em dinheiro e assim por diante. Segundo, existem também as motivações políticas; o alvo é excluir as classes perigosas e grupos rebeldes.
Em parte isso já aconteceu em Basateen al-Razi, em Damasco, onde as indenizações foram muito baixas – e isso foi para as pessoas que tinham os documentos certos, que permaneceram na Síria.
Essa ameaça existe e se implementada em escala nacional pode ser muito, muito perigosa. De fato, as pessoas que voltaram enfrentam várias ameaças – a ameaça de jovens serem recrutados para o exercito ou presos. Mesmo onde aconteceram os chamados acordos de reconciliação, pessoas estão sendo mortas, como aconteceu em Da’ra, onde oficiais militares e figuras da oposição são alvos dos serviços de segurança e de outros grupos.
Se sua área foi destruída, porque você iria “voltar”? Existem 5 a 6 milhões de pessoas deslocadas internamente na região que não podem voltar, por esse mesmo motivo. Se você olhar para o leste de Aleppo, ele ainda está muito destruído e os serviços estatais são muito ruins; o mesmo no leste de Ghuta, nos arredores de Damasco, onde não houve reconstrução em larga escala. Em Homs, o processo também está indo muito devagar.
E, novamente, para fazer o que? A crise econômica segue e não há projetos para uma economia produtiva. O emprego estatal é restrito às famílias de soldados e aos serviços de segurança. Para muitos, encontrar trabalho é muito difícil. A inflação também é muito alta – o poder de compra real dos sírios caiu enormemente desde 2011.
Apesar do que diz o regime, eles não querem que a grande maioria dos refugiados volte. Existem várias razões pelas quais é difícil falar hoje em retorno, mesmo que as ameaças em outros países – os países vizinhos, mas também na Europa – estejam “empurrando” os refugiados a voltar.
JH | Acho que depois dos primeiros protestos no Sudão em dezembro, o primeiro presidente estrangeiro que Omar al-Bashir visitou foi Assad. Aqueles que apoiaram Assad também vão ficar calados sobre o regime de al-Bashir e as organizações populares no Oriente Médio em geral?
JD | Acredito que entre pequenos setores da esquerda, o internacionalismo ainda é importante. Não apenas no sentido retórico, mas como uma forma de aprender com as experiências do exterior.
Mesmo que as ideias de Karl Marx, de algum jeito, estejam voltando ao debate, as organizações da esquerda radical na Europa e nos Estados Unidos – de fato, em todo o mundo – estão em crise. Ao mesmo tempo, você tem seções da esquerda focadas apenas no imperialismo ocidental, sem tentar aprender com as lutas populares do Oriente Médio. Só falam das suas limitações, sem perceber que estes levantes sacudiram o mundo.
No entanto, o movimento das praças-ocupadas saiu da Praça Tahrir. É só ver como a questão dos refugiados está influenciando os estados europeus – inclusive através do surgimento de partidos autoritários e até fascistas.
Muito mais pode ser feito na critica à relação entre as classes dominantes ocidentais e os regimes despóticos da região. O exemplo mais recente foi o financiamento pela União Europeia das Forças de Apoio Rápido do Sudão para avançar suas políticas racistas anti-imigração. Hoje essas mesmas forças estão sendo usadas para reprimir manifestantes sudaneses.
No caso sírio, muito mais poderia ter sido feito em termos de solidariedade internacional, e as razões pelas quais isto não aconteceu remetem à crise generalizada da esquerda. Se costumava erguer muito alto a bandeira do internacionalismo, agora você tem uma esquerda muito mais nacionalista, alinhada a este ou aquele campo. Isso é resultado direto do enfraquecimento da consciência de classe. E, no entanto, todos os nossos destinos estão interligados.
Sobre o autor
Joseph Daher é pesquisador e ativista sírio-suíço de esquerda. É autor de Hezbollah: A economia política do Partido de Deus (Pluto Press, 2016).
Sobre o entrevistador
Joe Hayns é membro do grupo rs21. Estudante, realiza pesquisa no Marrocos.
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