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MUNDO

Guerra e simulacro

Aruã Silva de Lima*
Reprodução EBC

É uma vantagem providencial ao observador de um processo poder comentá-lo depois do ocorrido. Com essa regalia, se pode analisar os quase quatro anos da administração Donald Trump e seus efeitos para o mundo.

Quando confirmada a vitória do candidato republicano, havia dúvida acerca da natureza da retórica tresloucada do então presidente eleito estadunidense. Seria uma estratégia – produzir notícias diárias – ou seria prova de amadorismo? Não estava claro o horizonte estratégico do governo Trump no que diz respeito às relações internacionais e, por isso, indagava-se se as ações se baseariam no instinto presidencial, com ações de impacto de curto e, no máximo, médio prazo. E, naturalmente, perguntava-se quando, contra quem e por qual motivo Trump iniciaria sua guerra?

Passados ¾ do período total da administração Trump, pode-se inferir que: 1) ter como estratégia estar permanentemente no radar da imprensa e ser amador não são possibilidades excludentes entre si; 2) o horizonte estratégico no âmbito das relações internacionais por parte do governo Trump se limitou a envidar todos os esforços possíveis para postergar os efeitos da próxima crise econômica nos Estados Unidos; 3) não sem um alta dose de ironia histórica, o atual presidente estadunidense evitou o quanto pode – para os padrões dos EUA – uma guerra ou uma empreitada militar.

A essa altura o mundo sabe que Donald Trump é, dentre outras coisas, um blefador. Não lhe apetecem guerras convencionais, com tiro, porrada e bomba. Parece que lhes são mais caras as guerras comerciais, os embargos etc. O assassinato do comandante da Guarda Republicana iraniana é mais um, de uma série que se inicia em torno de 2010, quando cientistas do programa nuclear do Irã foram sistematicamente assassinados. Portanto, não foi Trump quem inventou o método.

Trump deu continuidade ao deslocamento dos EUA do Oriente Médio, iniciado por Barack Obama. Durante a quase totalidade de seu mandato, o empresário-presidente dirigiu seus esforços para uma guerra comercial com a China, para a deslegitimação dos organismos internacionais, para o enquadramento humilhante da Europa e aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e, por fim, para a tentativa de acordo com a Coreia do Norte.

Com essas medidas, Trump se esforçou para mudar o teatro de operações mais importante da iniciativa estadunidense no globo. Deslocou-se do Atlântico e do Oriente Médio para o Pacífico. O pano de fundo desse deslocamento é o enfrentamento ao predomínio chinês na região, contra o qual nem Japão nem Austrália – aliados dos EUA – representam ameaça. Em resposta às investidas estadunidenses, dois pesos-pesados, Rússia e China, consolidaram parceria para construção da “nova rota da seda” e, igualmente, ambos os gigantes tem construído posições convergentes a respeito de temas geopolíticos sensíveis, ainda que caibam diferenças significativas entre eles.

Sabendo que Kim Jong-un está pronto para mais um teste de alguma arma nova, Trump fracassou no seu intento de acordo com a Coréia do Norte. Tem fracassado no enfrentamento com a China. Os iPhones, por exemplo, continuam sendo montados fora dos Estados Unidos. Talvez, o grande êxito da política externa de Donald Trump tenha sido sepultar a Europa como ator internacional decisivo. A posição da Europa, hoje, só pode ser comparada em fragilidade ao tempo da Conferência de Potsdam.

É inegável que Trump obteve êxito em postergar a próxima crise econômica sistêmica. Ou pelo menos, os efeitos da crise. Os sinais de doença estão em todos os exames. Para a sorte eleitoral de Trump, o paciente continua assintomático.

Barack Obama retirou um grande contingente estadunidense das áreas ocupadas, Iraque e Afeganistão. Trump continuou a retirada de tropas, o que pode ter ocasionado o surgimento do Estado Islâmico. Mais que isso, Trump também continuou o afastamento dos marines dos campos de batalha. Os drones e os ataques à distância (aéreo ou naval) tornaram-se as práticas de ataque dos EUA. Fora o exemplo da Coréia do Norte, o presidente dos EUA sempre mobilizou argumentos de cunho interno para sair do isolacionismo.

Meu palpite é que, como disse, o topetudo não gosta de guerra. De verdade, ele gosta de bravata e, convenhamos, fazer bravata com o poder de bagunçar tanta coisa, como ele tem, está longe de ser uma ação tática necessariamente tresloucada. Pouco ortodoxa, sim. Em todo caso, parece que Trump descobriu que não basta manter a economia em banho maria, desafiar a China e conter a ameaça norte-coreana. Parece que o eleitorado republicano estadunidense precisa, mesmo, de uma guerra – ou simulacro. Além do mais, para quem está respondendo um pedido de impeachment, um simulacro é muito mais seguro: não há risco de derrota.

 

*Professor de História Universidade Federal de Alagoas

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