Entre Washington e Beijing

Jacobin | Tradução: Aldo Cordeiro Sauda
Chris McGrath / Getty

HONG KONG, CHINA – AUGUST 28

É cada vez mais recorrente na imprensa ocidental argumentos descrevendo Hong Kong como uma “nova Berlin”, a linha de frente de uma nova guerra fria. Esta linha apela a manifestantes moderados assim como aos políticos, apresentando um conflito complexo como uma binariedade simples em que os Estados Unidos representam a liberdade e a China, a autocracia. Na verdade, Hong Kong se encontra presa em uma armadilha histórica e geopolítica: seu valor enquanto conduite do capital entre a China e o ocidente é o que nega sua autodeterminação. O autoritário capitalismo de Estado chinês e o neoliberalismo ocidental são iguais ameaças à já frágil democracia de Hong Kong.

Neste ambiente, uma análise de esquerda sobre a política de Hong Kong torna-se vital. Em setembro deste ano, um coletivo de escritores, pesquisadores, artistas e ativistas de Hong Kong e de suas comunidades na diáspora lançaram uma publicação em língua inglesa chamada Lausan 流傘 para disseminar as visões da esquerda de Hong Kong e construir solidariedade entre fronteiras, baseada na justiça para os trabalhadores e imigrantes, no antirracismo, anti-imperialismo e feminismo. Seu objetivo é situar, no discurso internacional, as contínuas manifestações em relação – e oposição – a escalada autoritária chinesa e ao domínio econômico mundial do ocidente.

J Chen, colaborador da Jacobin e membro do Lausan conversou com o coletivo sobre a política norte-americana para Hong Kong e como a esquerda internacional deve se relacionar aos contínuos protestos de massas.

 

JC | Os integrantes do Coletivo 流傘 Lausan vivem em Hong Kong, Taiwan, Estados Unidos e diversos outros países. Como surgiu o Lausan, e por que agora?

LC | Nosso coletivo inclui jornalistas, advogados, acadêmicos, artistas e ativistas envolvidos no movimento de moradia, sindicatos, ligas de trabalhadores e organizações políticas nos Estados Unidos (como a tendência Democratic Socialists of America e o grupo marxista Solidarity) e em outros lugares pelo mundo.

Inicialmente nos conectamos por um grupo de WhatsApp para refletir sobre a sensação de choque após os ataques da tríade apoiados pela policia contra manifestantes em Yuen Long, Hong Kong, dia 21 de junho. Enquanto militantes de esquerda de Hong Kong e suas diásporas, nos acostumamos a ocupar posições periféricas nos movimentos sociais de Hong Kong. Mas aquela noite, assistindo nossos companheiros sofrerem uma nova onda de ataques violentos, tornou-se impossível permanecer isolado.

Atravessamos juntos aquela frustração – desenvolvendo também uma interpretação que ligava as cenas horrorizantes de Yuen Long às histórias muitas vezes esquecidas de violência do estrado colonial. As semanas de reflexão seguintes nos inspiraram a unir esforços para escrever, traduzir e organizar a amplificação das perspectivas vindas de Hong Kong, apresentando os argumentos mais ambiciosos por mudanças estruturais progressivas.

Escolhemos enquanto forma uma publicação. Sentimos ser central dar profundidade as narrativas superficiais do ocidente que focavam apenas na “liberdade e democracia.” Acreditarmos ser importante sublinhar as vozes radicais de esquerda por dentro do movimento para enfrentar as calúnias do governo local, que apresenta os manifestantes como meros vândalos, assim como a cobertura sensacionalista dos grupos da direita “localista”.

Por nossas formações e atuais localizações, nos vemos com a tarefa de construir uma ponte entre o discurso da esquerda predominantemente de língua chinesa em Hong Kong e a esquerda internacional. Compartilhar o discurso da militância de esquerda de nossa cidade e transmitir sua escrita para frente é parte central de nossa tarefa.

 

JC | Temos visto racismo anti-chinês nos protestos e, de forma igualmente perturbadora, o uso de suásticas e comparações do governo chinês à Alemanha nazista. Enquanto estas ações não representam o movimento, elas com certeza têm atraído muita atenção da imprensa. Como devemos pensar a relação entre Hong Kong e a China?

LC | Enquanto os setores da direita nativista pró-EUA são um elemento marginal nos protestos atuais, ela reflete uma tendência etnonacionalista e xenofóbica contra os chineses do continente que vem ganhando espaço nos movimentos sociais ao menos desde 2003. Isto impede solidariedade e ações entre fronteiras, principalmente junto ao movimento operário da China continental, incentivando uma forma de chauvinismo cultural.

Ao longo deste verão de protestos, o governo da China também elevou o tom de sua propaganda nacionalista, apresentando o movimento como financiado pelo ocidente, anti-China e construído sobre o ódio local da população de Hong Kong contra outros chineses que moram no continente.

Enquanto ativistas de esquerda, precisamos rejeitar a retórica anti-China assim como o nacionalismo chinês. O nacionalismo e a xenofobia têm sido repetidamente usados para dividir diferentes povos, e o caso de Hong Kong e da China não é diferente. Os trabalhadores na China também são oprimidos pelo capitalismo de Estado do governo chinês, sendo aliados naturais do povo de Hong Kong.

Apesar da propaganda anti-Hong Kong vinda de Beijing, há fortes evidências que existem apoiadores do movimento na China continental. Uma campanha online de fotos no continente foi criada em apoio a Hong Kong. Um advogado chinês, Chen Quishi, até mesmo visitou Hong Kong para relatar os protestos. Mas sob pressão de serem “bons cidadãos nacionalistas”, muitos optam por permanecer em silêncio. Enquanto comunidade e plataforma, Lausan quer promover a solidariedade entre o povo oprimido de Hong Kong e da China para se unirem contra o Partido Comunista Chinês (PCCh).

 

JC | Enquanto o empresariado de Hong Kong inicialmente apoiou os protestos, posteriormente viraram as costas ao movimento. Também vimos os protestos se dividirem em campos de classe opostos durante as greves estudantis que ocorreram no início de setembro: estudantes da elite, de escolas internacionais e colégios particulares, praticamente não estavam presentes. Como vocês tem pensado a luta de classes no contexto deste movimento?

LC | É central entendermos que a China não é um Estado socialista, apesar da forma com que o PCCh caracteriza o sistema econômico do país (“socialismo com características chinesas”). Hong Kong atua como ponte entre o capital do ocidente e o mercado chinês, submetendo os trabalhadores da China e de Hong Kong à exploração do capital ocidental. Esta tem sido a realidade desde os primeiros dias do colonialismo britânico, e agora, uma nova classe das elites de Hong Kong se consolidou. Ao trabalhar com o governo chinês, esta classe de empresários da elite de Hong Kong lucrou com a ingerência chinesa as custas dos trabalhadores. Por isto, estamos em conflito tanto com a elite de Kong Kong, como também com o Partido Comunista.

A demanda por “democracia” se torna muito mais inteligível quando levamos em conta o fato de que o Conselho Legislativo (Legco), a versão local do congresso, está no bolso da elite de Hong Kong. As grandes multinacionais manipulam as democracias de todo mundo, mas em Hong Kong isto é ainda mais obvio: apenas a classe da elite, junto às multinacionais e às entidades legais, pode eleger no Legco representantes para as chamadas funções constituintes, cargos que representam metade das cadeiras no parlamento. Enquanto os trabalhadores podem apenas votar em representantes regionais, as elites dominam o Legco com políticos pró-empresários, pró-China, e que fazem pouco esforço para tratar das questões de desigualdade econômica.

A esquerda agora está marginalizada no movimento, e os interesses liberais continuam moldando e desenhando as demandas dos manifestantes. Mas com a precarização econômica vem o potencial de uma consciência de classe mais profunda: os jovens estão lidando com a falta de oportunidades de emprego e medo do desemprego, assim como um mercado de habitação profundamente desequilibrado. Para economizar dinheiro, não é incomum que os jovens vivam na casa de seus pais até se casarem – e às vezes até mesmo depois disto.

Cabe à esquerda integrar as lutas econômicas no discurso do movimento e construir uma plataforma para estas reivindicações. Apenas assim iremos conseguir direcionar as frustrações da população, de ideologias exclusivistas como a xenofobia contra os chineses do continente, para valores verdadeiramente abertos e libertadores.

 

JC | Como o movimento tem se envolvido nas outras lutas que acontecem em Hong Kong? E o que faz falta ao movimento?

LC | O que mais falta ao movimento não é apenas a análise de classe, mas também o enraizamento nas lutas dos grupos marginalizados nesta cidade altamente cosmopolitana: trabalhadoras do sexo, trabalhadoras domésticas imigrantes do sudeste asiático, pessoas LGBTQ+, etc. Estes movimentos existem há muitos anos, antes dos protestos contrários à lei de extradição e tem contribuído de forma muito particular ao movimento.

Tem ocorrido ações auto-organizadas e grupos de estudo pelo #MeToo, e esta concepção se expressou no dia 28 de agosto no protesto do #ProtestToo, que condenou a violência sexual da polícia contra manifestantes mulheres. Muitas trabalhadoras imigrantes das Filipinas e Indonésia tem se manifestado fortemente em apoio ao movimento, ligando-os as lutas em seus países de origem. Ao mesmo tempo, sua campanha por um salário mínimo mensal mais alto, de 4,520 HKD a 5,894 HKD, passou despercebida. Ligar estas lutas aos protestos diários é estratégico para a libertação da cidade.

 

JC | O que Lausan espera atingir do diálogo com setores mais amplos da esquerda internacional?

LC | Hong Kong existe em meio a duas ambições globais – o capitalismo de Estado chinês e o neoliberalismo do ocidente. Se autodeterminar é enfrentar a ambos, e para fazer isto, a população de Hong Kong precisa se engajar internacionalmente, buscando aliados não apenas na China e no ocidente, mas também superando as fronteiras para construir um amplo movimento anticapitalista.

Isto é importante principalmente para combater o projeto de influência colonial chinesa da chamada Iniciativa da Rota da Seda, que promove novas formas de imperialismo econômico e se impõem no direito de autodeterminação dos povos. Operários mineiros do Quênia e grupos indígenas do sudeste asiático como os povos Dumagat são exemplos de comunidades nas linhas de frente contra a exploração de seu trabalho e suas terras pelo capital chinês. Nós de Hong Kong, na cidade e no exterior, queremos aprender com estas vozes e coloca-las em primeiro plano.

Além disto, enquanto Hong Kong procura apoio nos Estados Unidos, chamamos os manifestantes a recusarem alianças com direitistas como Marco Rubio, construindo ao invés disto laços com grupos oprimidos. A brutalidade policial é exemplo de um tema em que há abertura para solidariedade. Dado que a oposição à violência policial está no coração da luta na cidade, queremos identificar conexões entre a brutalidade policial e outras formas de opressão que ocorrem nos Estados Unidos com o que está acontecendo em Hong Kong. Queremos ajudar a construir alianças entre grupos periféricos e facilitar a solidariedade entre fronteiras baseada no compartilhamento de habilidades e o diálogo sincero.

Por fim, queremos conectar a luta por autodeterminação de Hong Kong com as lutas anticapitalistas em lugares como a Caxemira, Sudão, Palestina, Eelam Tamil, Curdistão, as Filipinas, e Puerto Rico. Lausan 流傘 se dedica na luta por estabelecer formas comunais não necessariamente baseadas na soberania do Estado-nacional, e não baseada em fronteiras e nos imperativos do capital. Muito trabalho ainda precisa ser feito neste front.

 

JS | Os senadores norte-americanos Marco Rubio, Ben Cardin e Jim Risch estão tentando aprovar a proposta legislativa Hong Kong Human Rights and Democracy Act (HKHRDA), que agora tem apoio de Democratas e Republicanos. Como devemos interpretar o HKHRDA?

LC | A perspectiva do Lausan sobre a HKHRDA é que os Estados Unidos buscam avançar a exploração econômica e seus interesses políticos próprios através desta medida, mas entendemos o sentimento de muitos que a veem como uma defesa necessária (mesmo desesperada) contra o cerco do CCPh.

Enquanto há argumentos de que o HKRDA pode no curto prazo proteger o status semiautônomo de Hong Kong, ele não responde aos problemas de fundo: que a economia de Hong Kong, assim como a segurança de sua população, continua a depender em excesso de tratamento “especial” de impérios distantes, seja o Reino Unido, a República Popular da China ou os Estados Unidos.

Na melhor das hipóteses o HKHRDA funcionaria como paliativo. Mas ele em nada parece aproximar Hong Kong de seu verdadeiro objetivo: a autodeterminação genuína que não esta subscrita pelos interesses econômicos das grandes potências, mas pelo desejo democrático do povo de Hong Kong.

 

JS | Não há uma resposta unificada da esquerda ocidental ao movimento de Hong Kong. Enquanto muitos apoiam o movimento, existem aqueles que se incomodam com ele. Como você tem respondido a estes opositores?

LC | Há muitos na esquerda que veem o mundo apelas pela lente das grandes disputas de poder contra o imperialismo norte-americano – e concluem que todos os inimigos viáveis dos EUA devem ser apoiados. Ao fazer isto, habitualmente desvalorizam as narrativas de povos não-brancos em outros países para quem a exploração e a violência estatal representam ameaças imediatas muito maiores. Muitos destes esquerdistas que caluniam os manifestantes em Hong Kong também negam a política de limpeza étnica do governo chinês contra o povo Uyghur e a supressão dos direitos dos tibetanos por autodeterminação. Eles argumentam que permitir a autodeterminação a qualquer uma destas periferias abriria oportunidades inaceitáveis para o avanço do imperialismo ocidental.

Porém para a população destes lugares intermediários, a autodeterminação não é uma ideia abstrata, mas uma questão de vida ou morte. Por isto é urgente que a esquerda ocidental reinterprete esta questão. Ao invés de supor que o imperialismo americano apenas pode ser destruído por outra grande potência (também imperialista), como poderíamos identificar os problemas no coração do próprio imperialismo – especialmente sua dependência em práticas insustentáveis de acumulação e exclusão? Como poderíamos descobrir, de forma inversa, modelos radicais de comunidade e autodeterminação? Podemos entender a sobrevivência do povo de Hong Kong como o ponto de partida de nossa crítica, e imaginar uma nova política internacional de solidariedade – uma que não se baseia mais na lógica do nós contra eles do Estado nação, ou na obtenção do lucro pelo capitalismo global – mas em algo totalmente diferente?

Claro, ninguém tem estas respostas. Mas para o povo de Hong Kong, em breve, podemos estar sem tempo para lhes perguntar.