‘Livres como pássaros’ e mortos como insetos: a classe trabalhadora e a juventude periférica sob o bolsonarismo

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Ó dor! O tempo faz da vida uma carniça,

E o sombrio Inimigo que nos rói as rosas

No sangue que perdemos se enraíza e viça!

(Baudelaire, em As flores do Mal)

A reconfiguração da força de trabalho brasileira em uma enorme massa de seres humanos cada vez mais necessitados e, portanto, dispostos a se vender por qualquer salário é hoje uma imperiosa necessidade do capital no país. O aumento das taxas de lucro só pode vir por meio de uma superexploração dos trabalhadores sem precedentes, a qual poderá fazer, retrospectivamente, com que os operários vitorianos sejam vistos como sujeitos sociais até certo ponto privilegiados. Para tal, faz-se necessária não só a ampliação do exército industrial de reserva, da “superpopulação relativa” de Marx, como também a formação de uma massa de trabalhadores cujos empregos não venham mais acompanhados de quaisquer garantias mínimas de sobrevivência. Nesse sentido, não só os direitos sociais têm que ser eliminados, o que o neoliberalismo já vinha progressivamente fazendo, mas até mesmo qualquer tipo de compensação social meramente lenitiva ofertada pelo Estado tem que ser imediatamente abolida. Esses novos trabalhadores e trabalhadoras têm que estar não só “livres como pássaros” (Marx) para se disponibilizem ao capital, mas devem também, sob o ultraneoliberalismo, estar famélicos e com suas asas quebradas, de modo que qualquer moeda capaz de ser trocada por curativos e alpiste no mercado seja vista como uma graça divina. Todos têm que estar sem nada para que possam aceitar tudo.

Evidentemente, os setores já mais precarizados e oprimidos dentre a classe trabalhadora, com destaque para os negros, mulheres e nordestinos, uma vez que estarão em boa parte desprovidos até mesmo das políticas focalizadas e compensatórias, sofrerão um rebaixamento ainda maior do valor da sua força de trabalho. Nesse sentido, não se trata de mera coincidência o fato de o ultraneoliberalismo bolsonarista encerrar um conteúdo ideológico abertamente conservador e mesmo reacionário, sobretudo no que diz respeito ao papel destinado aos negros, nordestinos e mulheres na sociedade. Todos devem ser colocados nos seus devidos lugares para que melhor possam ser explorados.

Nestes tempos de uma austeridade quase sádica por parte dos tecnocratas ultraneoliberais e neofascistas, já não se trata, assim, de oferecer, quaisquer contrapartidas à retirada de direitos universais. Agora, os trabalhadores devem estar sem garantias e sem perspectivas, isto é, devem estar sem nada, para que seu trabalho custe quase nada aos capitalistas, ao passo que o Estado destes, o Estado capitalista, não pode mais ser onerado pela oferta de serviços sociais universais e nem mesmo pelo oferecimento de programas sociais que visem a mitigar a pobreza extrema resultante da contrarrevolução ultraneoliberal em curso. Por conseguinte, o novo trato da questão social sob o capitalismo ultraneoliberal se torna cada vez mais um trato apenas e fortemente policial. Sob o ultraneoliberalismo, o capital é cada vez mais letal.

Em síntese, pode-se afirmar que, se o capitalismo neoliberal no Brasil, sob a forma das democracias blindadas, permitia a combinação de contrarreformas com políticas sociais compensatórias e afirmativas, o capitalismo ultraneoliberal no país, sob a forma de um semibonapartismo reacionário, afirma peremptoriamente que não haverá compensação social alguma, a não ser, talvez, na vida após a morte, e o aumento do número destas, seja por doença ou por bala, é a única coisa que ele pode oferecer a uma classe trabalhadora que, desprovida de tudo, evidencia cada vez mais seu “caráter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples”, para resgatarmos aqui as feuerbachianas palavras do jovem Marx de 1844.1

O aumento exponencial da violência estatal e paraestatal contra os setores oprimidos, com destaque para os jovens negros e periféricos, aumento este que não deriva senão da necessidade de controlar e mesmo de eliminar uma quantidade cada vez maior de vidas inúteis à acumulação capitalista, também encontra sua correspondência ideológica no neofascismo bolsonarista. Não à toa, pari passu ao avanço das contrarreformas que retiram direitos em uma velocidade e intensidade febris, grassam as apologias de assassinatos de pobres, de índios, de mulheres, de gays, de transsexuais, de nordestinos e, sobretudo, de negros e favelados. A arma com a mira na cabecinha não é senão o nada obscuro objeto do desejo – com o perdão de Buñuel – de uma obscura classe média sulista e do sudeste que, arruinada e temerosa de sua proletarização, tornou-se a base de massas do neofascismo bolsonarista e que já não precisa obscurecer seus desejos de extermínio das pessoas de pele escura. O paraíso anelado por esses estratos médios neofascistas é um paraíso onde haja uma chacina de Paraisópolis por dia, no mínimo.