Neste mês que se rememora o Dia internacional dos Direitos Humanos, a tarefa de fazer um balanço – ou tentar fazê-lo – sobre este primeiro ano do governo neofascista de Bolsonaro no item de direitos humanos é uma demanda imensa, um esforço hercúleo ante a quantidade de violações. É algo impressionante, que me remete a imagem de um turbilhão de “projéteis” letais sendo simultaneamente disparados contra direitos constitucionais e previstos em Declarações e Tratados internacionais. Mas vou aqui tentar fazê-lo, pelo menos em alguns itens fundamentais, reconhecendo previamente ser aquém do necessário, e que abarcarei o período iniciado pelo Governo Temer, após o golpe jurídico-parlamentar de 2016.
Primeiramente, importante situar o referencial jurídico historicamente mais importante para o tema, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, subscrita pelo Brasil em 1948. O documento tem a ver com o conjunto de demandas sociais, como saúde,trabalho digno, moradia digna, educação, respeito aos direitos da população carcerária e aos direitos fundamentais do cidadão, especialmente no que diz respeito a integridade física, proteção contra a tortura e, no plano mais geral das garantias democráticas, o combate a toda e qualquer forma de discriminação, seja racial, homofóbica, de gênero, preconceito ideológico ou religioso. Estes temas eram emergentes no pós II Guerra Mundial, bem como seguem até hoje na agenda internacional de direitos humanos.
Na seqüência, ainda sob olhar jurídico, os direitos sociais e fundamentais contidos na referida Declaração estão todos reproduzidos em nossa Constituição Federal de 1988, pós-ditadura de 1964, sabidamente concentrados nos seus artigos 5, 6, e 7, de modo que tanto esta histórica declaração universal, como nossa Constituição Federal nos fornecem um roteiro para, a luz do exame e confronto com a realidade, verificarmos como vem de fato sendo tratado o assunto, bem como a própria Carta de 1988 foi emendada e desfigurada.
Destaque-se também, haja visto a atualidade dos temas judiciais, que está contido no artigo 10 da Declaração universal o preceito de que todos possuem direito a um tribunal independente e imparcial, a fim de julgar com equidade suas causas, o que se reporta a toda discussão que a advocacia e a sociedade como um todo fazem sobre o funcionamento do judiciário, a atuação dos magistrados, a democratização dos meios forenses e principalmente o mito da imparcialidade do juiz nestes tempos de “ lava-jato” e sobretudo “vaza-jato”. Este dispositivo liga-se diretamente aos casos de prisões políticas no Brasil, que afligem dirigentes do MST, MTST e a prisão político-eleitoral do ex-presidente Lula, que embora livre, a meu ver ainda se encontra refém de um processo judicial que atenta ao direito humano que assegura a todos um tribunal imparcial.
Do ponto de vista social, trabalho, educação, moradia, o dado mais significativo é que o Brasil, após 2016, passou da 78ª posição em 2017 para a 79ª posição no ranking de desenvolvimento humano das Nações Unidas, aferido pelo relatório de Índice de Desenvolvimento Humano-IDH, o que nos dá uma idéia sobre o retrocesso nas condições de existência da maioria da população, mesmo antes de adentrarmos no período de mandato do governo Bolsonaro, sobretudo considerando-se duas de suas mudanças legislativas mais nocivas, que foram a reforma trabalhista e a EC 95 que congelou gastos públicos, a primeira reduzindo direitos da CLT, instituindo o “negociado sobre o legislado”, em favor do lado patronal, e a segunda medida criando um teto orçamentário que aprofundou as desigualdades sociais, congelando e reduzindo despesas destinadas a moradia, educação, hospitais públicos, com perverso reflexo sobre as pessoas de maior vulnerabilidade, segundo relatórios do Conselho Nacional de Direitos Humanos e Relatoria das Nações Unidas sobre pobreza extrema. Sim, retrocessos nos direitos trabalhistas são igualmente retrocessos em direitos humanos de um modo geral, dada o significado do trabalho para a geração e continuidade da vida.
Sobre a extrema pobreza, o que temos é o aprofundamento nos últimos dois anos do número de pessoas que se tornaram miseráveis (200 mil a mais, entre 2017 e 2018), sendo que cerca de 13, 5 milhões de brasileiros(as) vivem com cerca de R$ 145 por mês, em número que é o maior da série histórica iniciada em 2012, conforme os dados constantes da pesquisa Indicadores Sociais, divulgada em novembro deste ano pelo IBGE. Tornou-se emblemático o resultado da última pesquisa do PNAD (pesquisa nacional por amostra de domicílios/2019)que mostrou que os 50% mais pobres ganham em média mensalmente no Brasil R$ 320,00, enquanto os 1% mais ricos recebem uma média de R$ 27 mil mensais, o que demonstra que as políticas de achatamento de direitos e corte de investimentos estatais iniciados por Temer após o golpe de 2016 e hoje aprofundadas por Bolsonaro somente pioraram o exercício de direitos humanos no país por parte da maioria da população, principalmente os negros e negras, sendo que todos os indicadores sociais nacional e internacionais registram que o Brasil possui uma das maiores concentrações de renda do mundo, senão a maior, onde quase 30% da renda está em mãos de apenas 1% dos habitantes, o que tem muito a ver com a péssima situação dos direitos humanos.
Aspecto importante do tema de direitos humanos, para finalidade de um balanço conseqüente, é a situação das crianças, cabendo destacar que em novembro deste ano, quando da celebração dos 30 anos da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, o Fundo das Nações Unidas lançou em Brasília relatório mostrando que 60 milhões (44%)de crianças e adolescentes no país (26,5 milhões) ainda sofrem privação de pelo menos um de seus direitos fundamentais, acesso á educação, informação, água, saneamento , moradia e proteção contra o trabalho infantil. Em sentido contrário, porém, o governo Bolsonaro vem desmantelando o programa de combate ao trabalho infantil, reduzindo verbas para fiscalização do trabalho, bem como o notório abandono da educação publica de crianças e adolescentes, sendo que segundo números atualizados divulgados pelo IBGE no relatório Síntese dos Indicadores Sociais,quase metade da população do Brasil (49%) não concluiu o ensino médio e 23% dos jovens não estuda e nem trabalha.
Uma dos itens também preocupantes é o aumento da violência contra mulheres, dentro de uma série histórica de 1, 23 milhão de mulheres vitimas de violência entre 2010 e 2017, 17 mil foram assassinadas somente entre 2015 e 2018, 297% de aumento em relação a mulheres brancas e 409% a mais em relação a mulheres negras, segundo dados da plataforma EVA (Evidências sobre violência e Alternativas), que é um banco de dados que reúne informações sobre este tema no Brasil, México e Colômbia, países que, juntos, concentram 65% dos assassinatos de mulheres em toda a America Latina (no Brasil são 37% dos casos de feminicídio). O que ocorre é que em sentido inverso destes números, o governo da extrema-direita, além de verbalizar constantemente ataques ao feminismo, assim como á comunidade LGBT, vem também nesta área desmantelando as políticas publicas direcionadas ao combate deste tipo de violência, extinguindo conselhos de representação da sociedade civil e não investindo no combate a estas desumanidades em relação ás mulheres, sendo que, na atualidade, segundo números oficiais dos Estados e Governo Federal, a média de feminicídios (consumados ou não) chega á quantidade de 5 por dia no Brasil.
Caminhando para o final deste breve balanço, não poderia deixar de tratar da população carcerária, em ultrajante e medieval encarceramento, abaixo dos padrões mais elementares de civilidade, no que diz respeito a excesso de presos por celas, alimentação e higiene ruins, sendo o Brasil a terceira população carcerária do planeta, com 726.712 presos em 2016, sendo 40% provisórios, 64% negros e jovens entre 18 a 29 anos, sendo que a marca dos 800 mil foi ultrapassada no atual governo neofascista, com 812 mil presos, sendo 41, 5 provisórios, enfim, um perverso quadro que somente vem piorando, o que explica as constantes rebeliões de presos, tratadas com ainda mais violência por parte das policias dos Estados e também pela Força Nacional.
Acrescente-se a este genocídio nos presídios, o extermínio de negros e jovens nas periferias, como acontece nas favelas do Rio de janeiro, Rocinha, Maré, Alemão, e recentemente em Paraisópolis, São Paulo, quando da realização de um baile Funk. Faz-se necessário destacar que, neste ano de 2019, até novembro, 1546 pessoas já foram mortas em intervenções policiais no Rio de janeiro,por exemplo, que é o maior índice desde 1998, sendo que mais da metade destas vítimas são negros, sendo que no primeiro trimestre de 2019, por exemplo, 78,4% dos 436 mortos eram negros e pardos, o que revela um racismo policial e estrutural, com um todo, de proporções gigantescas, cujos indicadores sociais nos demais Estados da Federação não ficam longe deste parâmetro de genocídio do povo negro, sob o pretexto de combate ás drogas e violência, com sempre mais violência e crimes contra os direitos humanos.
Assim sendo, finalizando, á par das considerações e números acima, acrescendo-se a isto a situação caótica da saúde publica, bem como do saneamento, que são, ambos, serviços precários em todo o país, (com exceção dos bairros nobres e habitados majoritariamente por uma população branca), bem como as ameaças á liberdade de expressão políticas, retrocessos na Comissão Nacional de Anistia hoje controlada por militares do Exército, bem como o comprometimento do funcionamento do próprio regime democrático, que vem sendo expressos em ataques como a defesa do AI-5, exaltação ao torturador Ustra, pacote anti-crime de Moro, (com a excludente de ilicitude para crimes de policiais) e outras aberrações, temos um quadro de inegável retrocesso no tema dos direitos humanos no Brasil, seja pelo desmonte das políticas públicas direcionadas a sua defesa, (incluindo o desmonte e recuo que também está havendo nesta área no âmbito do MPF e principalmente a partir da PGR), seja, considerando os dados acima resumidos da situação social no Brasil, violência policial e precariedade no exercício de direitos fundamentais e humanos elementares, podendo-se afirmar, sem medo de errar, que Bolsonaro está á frente de um governo definitivamente anti-direitos humanos, o que, inclusive, faz questão de confessar e assumir em suas declarações presidenciais.
Aderson Bussinger é Advogado, Conselheiro da OAB-RJ, Membro das Comissões Estadual e Federal de Direitos Humanos da OAB Federal, Membro eleito do Conselho Universitário da Universidade Federal Fluminense-Uff
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