O futuro do presente: o ultraneoliberalismo neofascista de Bolsonaro

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Quem vai tomar conta dos doentes?

E quando tem chacina de adolescentes

Como é que você se sente?

Como é que você se sente?

Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel

[…]

E agora você quer um retrato do país

Mas queimaram o filme, queimaram o filme

Queimaram o filme

E enquanto isso, na enfermaria

Todos os doentes estão cantando sucessos populares

Sucessos populares

Sucessos populares

Sucessos populares

Todos os índios, índios, índios foram mortos, mortos, mortos”

(Renato Russo, em Mais do Mesmo)

Não parece ser muito arriscado dizer que o capitalismo neoliberal, que teve sua experiência laboratorial na ditadura chilena de Pinochet, ganhou os Estados Unidos e a Europa no alvorecer dos anos 1980, e que se alastrou pelo mundo na década seguinte, vive hoje uma nova etapa, a qual, por falta de terminologia melhor, alguns autores vêm nomeando de ultraneoliberalismo. No desigual e combinado Brasil, onde diferentes tempos e fases históricas se comprimem em uma mesma temporalidade, onde o ultramoderno se combina ao arcaísmo mais ancestral, revitalizando-o, e onde a história se faz aos saltos (com uma perna só, muitas vezes), essa nova etapa do capitalismo neoliberal, isto é, o ultraneoliberalismo, parece assumir a sua forma mais nítida e, por isso mesmo, mais suja. Em termos políticos, o neofascismo bolsonarista no poder e as tendências semibonapartistas do regime democrático-blindado atual são as suas lídimas expressões.

Tendo chegado tardiamente ao neoliberalismo em função da resistência popular e da divisão intra-burguesa nos anos 1980, o Brasil, por conta das sucessivas derrotas populares e da incapacidade hegemônica de sua classe dominante desde 2013 e, sobretudo, desde o Golpe de 2016, chega na frente ao ultraneoliberalismo. Estamos chegando cedo ao novo tempo do mundo – para nos valermos da expressão de Paulo Arantes -, e, adiantados, quiçá apressados, já colocamos um pé no futuro, um pé na barbárie, de onde, tal como num devaneio onírico, é possível passar em revista, celeremente, todos os estágios pretéritos da nossa formação social que agora parecem se encontrar e se fundir no nosso tempo presente. Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel, e chegamos ao final dele.

O Brasil finalmente se torna, de verdade, o país do futuro, mas só o faz porque esse futuro já não é senão a barbárie que parece aguardar todo o restante do mundo. Assim, se um dia um presidente acreditou que cresceríamos cinquenta anos em cinco, hoje o atual presidente parece disposto a amalgamar o pior dos nossos últimos quinhentos anos em apenas quatro, ou quem sabe oito, ou quem sabe mais anos. O nosso pouco apreço às letras e às vidas, o nosso desrespeito ao meio ambiente e aos povos originários, os nossos preconceitos ancestrais e a nossa ignorância contumaz, a nossa obscena desigualdade social e racial, o nosso amor a Deus e o nosso ódio aos pobres, a nossa desconfiança da ciência e a nossa confiança na banca, o nosso desprezo pelo trabalho manual e a nossa inveja da atividade intelectual, a nossa crença no espírito celeste e a nossa carência de espírito terreno, as nossas cíclicas enfermidades do corpo e as nossas persistentes angústias da alma, e, principalmente, a nossa histórica violência contra índios, negros, mulheres e trabalhadores em geral, a mais importante base sobre a qual se erigiu secularmente a nossa modernização burguesa, encontram no nosso futuro do presente, encontram nesse Brasil ultraneoliberal e neofascista em construção por Bolsonaro, a sua síntese histórica, a sua mais perfeita e acabada expressão, a sua mais completa tradução. Muita coisa, assim, acontece e confrange nossos corações, ou pelo menos os corações dos brasileiros que ainda têm coração.