“Nós existimos, nos alimentamos, cuidamos das pessoas queridas, trocamos suas fraldas, alimentamos as crianças e as encaminhamos para a escola; amparamos e cuidamos de nossos velhos. Sonhamos. Gostamos do cheiro da grama molhada e do barulho das ondas. O sorriso de nossas crianças quando vamos buscá-las no fim do dia são exatamente iguais ao sorriso das crianças de vocês, das pessoas que não exercem o trabalho sexual. Compartilhamos as mesmas angústias: a violência urbana, a desigualdade crescente, os icebergs gigantes que se desprendem dos polos, os atentatos terroristas, a fúria dos neonazistas. Pouca coisa nos separa uma das outras. Somos humanas. Eu sou como você.”
Monique Prada, ‘Putafeminista’, 2018.
Nessa introdução a um feminismo sob a ótica de uma trabalhadora sexual, Monique Prada trava uma dura batalha contra o senso comum. A autora mostra a que veio, fazendo questionamentos que põem em xeque ideias enraizadas no seu inconsciente. A começar pelo título do primeiro capítulo: ‘Puta, ofensa madre’. Em poucas palavras: é uma voadora atrás da outra. Recomendadíssimo!
Apesar de curto, ler o livro custou-me um bocado de tempo, pois eu precisei parar de ler várias e várias vezes para repensar o que eu achava que sabia e tirar aquela pulga que sempre fica atrás da orelha.
Infelizmente, se alguém não gostar do livro, não vai encontrar outro com o mesmo tema escrito nesse país gigante. Não um que seja escrito por uma mulher que, além da experiência pessoal, buscou diálogo com várias trabalhadoras sexuais, inclusive com aquelas que são exploradas por cafetões e que costumam desconfiar das prostitutas autônomas, como Prada.
Quanto às acusações muito comuns às putativistas, que seriam prostitutas de luxo, (neo)liberais ou individualistas, é muito difícil, senão impossível, sustentar essa tese diante desse livro. Não que seja perfeito, mas cumpre muito bem o seu propósito.
Sexo e violência
Na nossa sociedade, o sexo, para as mulheres, está associado não apenas ao ‘profano’, mas também à violência. Como abordei num texto anterior, existe uma epidemia de estupros no Brasil. As estimativas científicas sustentam que apenas 10 a 15% dos estupros são relatados, o que levaria o número real de estupros no Brasil a 500 mil por ano. Um estupro por minuto! Entre as vítimas, a maioria são crianças e apenas 1% são homens adultos.
A violência sexual tem forte demarcação de gênero. E, lógico, o medo também. Ao contrário da maioria dos homens, a maioria das mulheres, quando falamos em sexo, pensamos em prazer ou dor, dependendo da forma e do contexto. Somos socialmente construídas assim, para preservar e guardar nosso corpo, de modo que o não fazê-lo nos apavora.
O pânico moral sobre a prostituição, além do preconceito, também é alimentado pelo medo. Pelo pânico que uma mulher geralmente tem de imaginar ter de ir para a cama com homens desconhecidos todo dia pra botar comida na mesa, pagar a conta de luz e sustentar as crianças. É isso ou morrer de fome.
Isso ajuda a explicar a enorme taxa de suicídios ou tentativas entre as travestis e as mulheres trans. Nunca esqueço esse nome: Gabriela Monelli, mulher trans que cometeu suicídio em 2013 porque não queria mais ser prostituta. Não havia alternativa para ela, assim como não há para muitas outras mulheres, principalmente quando a própria família vira as costas para elas.
Eis aqui uma ressalva: as mulheres não são iguais entre si.
A humanidade não é nosso espelho
“A humanidade construiu apenas três tipos de visões de mundo”, disse-me Henrique Canary, outro colunista deste portal, há alguns anos. “Toda forma de pensar se encaixa em uma dessas três visões, implícita ou explicitamente: a teocêntrica, a individualista e a coletivista (ou… socialista)”. Desde que ouvi essa frase, procuro um contraexemplo, mas ainda não encontrei.
Dizer que a prostituição é errada, profana, egocêntrica, fundamentada na ganância e na promiscuidade, isso é uma visão teocêntrica, ainda que não se admita. Somente uma visão de mundo supostamente externa ao mundo real pode conceber uma regra absoluta e abstrata para condenar moralmente todas (ou algumas) trabalhadoras do sexo. Na verdade, afirmar essa visão é colocar-se no lugar de um juiz onisciente, é fazer-se deus ou deusa.
Uma pessoa que se reflete nas trabalhadoras sexuais, atribuindo a elas sua própria frustração, seus traumas e medos, ainda que não perceba, parte de uma visão individualista. Seria como se eu visse todas as outras mulheres como um espelho e fosse incapaz de conceber que elas talvez, só talvez, lidem com as relações sexuais de modo diferente de mim.
A visão de mundo coletivista é aquela que busca a realidade tal qual ela é: concreta, diversa, em constante mudança e movimento. Ela só é possível quando acompanhada de empatia. Significa, por exemplo, uma prostituta autônoma, como a Monique Prada, ter a sensibilidade de buscar conversar com prostitutas que não são autônomas porque elas têm uma vida diferente, outra construção social, outra maneira de encarar o mundo.
Existem, sim, grandes estruturas sociais que incidem sobre a sociedade. Grandes empresas, grandes bancos, grandes Estados, grandes ideologias. Mas as forças exercidas por elas não são homogêneas e estão cheias de contradições internas e externas.
No seu livro sobre suicídio, Marx explica que cada pessoa lida com a realidade de forma única. Se alguém decide tirar a própria vida, isso não significa que qualquer outra pessoa, nas mesmas condições, tomaria a mesma decisão. Cada um dos mais de 7 bilhões de seres humanos tem um modo ímpar de reagir aos problemas, dores, sofrimentos. Justamente por isso, não posso julgar as escolhas das outras pelos meus critérios, não posso substituir as necessidades delas pelas minhas.
Ser socialista significa que eu, que tenho pavor de sexo (e como tenho!), preciso buscar ter empatia com as mulheres que não têm tal sentimento, ou que o têm, mas de modo muito distinto do meu.
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