Pular para o conteúdo
BRASIL

Talvez Barroso não saiba, mas ele próprio é um sintoma mórbido

Rodrigo Juazeiro*
Nelson Jr./SCO/STF

No final do mês de novembro em evento da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ) onde foi homenageado, Luís Roberto Barroso, em seu discurso, citou uma conhecida frase do filósofo comunista italiano Antonio Gramsci. Disse ele: O velho está morrendo e o novo ainda não nasceu. E o complemento da frase é que entre uma coisa e outra surge uma grande variedade de situações mórbidas. Eu acho que essa tempestade que o país está vivendo é esse processo de transição entre o velho e o novo.”. O interessante é que, citando Gramsci, o Ministro ainda sugeriu “o caminho do meio” para conter a polarização que vive o país.

Não sei até onde vai o conhecimento de Barroso sobre Gramsci, mas é fato que seus ensinamentos nos ajudam muito a entender o atual momento. A frase citada por Barroso foi escrita por Gramsci em seus Diários do Cárcere, célebre obra que o filósofo escreveu enquanto estava preso pelo regime fascista de Mussolini.

Segundo Gramsci, os sintomas mórbidos ocorrem num período de interregno, quando há uma “crise de autoridade” da classe dominante. Vejamos a sua citação original:

“O aspecto da crise moderna que se lamenta como “onda de materialismo” está ligado ao que se chama de “crise de autoridade”. Se a classe dominante perde o consenso, ou seja, não é mais “dirigente”, mas unicamente “dominante”, detentora da pura força coercitiva, isto significa exatamente que as grandes massas se destacaram das ideologias tradicionais, não acreditam mais no que antes acreditavam, etc. A crise consiste justamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno, verificam-se os fenômenos patológicos mais variados.”

“Fenômenos patológicos mais variados” são os sintomas mórbidos.

No mesmo trecho onde fala da “crise de autoridade”, Gramsci exemplifica o que seria um sintoma mórbido. Para ele, num período de interregno, o ceticismo com as ideologias – bem comum no atual momento brasileiro e presente em declarações como as de Barroso propondo “nem esquerda, nem direita, mas o centro” – soluções historicamente normais para a crise são impedidas. Este contexto dá ensejo às proposições mais cínicas. Verdadeiros absurdos que alguém jamais teria coragem de propor em outra conjuntura.

Exemplificando o que poderia ser este cinismo travestido de normalidade, Gramsci cita a defesa da escravidão feita anos antes por Mussolini na Itália “como meio moderno de política econômica”.

Interregno brasileiro

É fato que no Brasil estamos vivendo tempos estranhos, o que seria perfeitamente entendido como o interregno de Gramsci. Alguns intelectuais como Vladmir Safatle e Sabrina Fernandes entendem as Jornadas de Junho de 2013 como um ponto de ruptura. Talvez não o início desta ruptura, mas o seu momento derradeiro. Safatle chegou a declarar certa vez que junho de 2013 foi mais importante pelo que ele derrubou, do que necessariamente construiu.

Nessa perspectiva, a citação de Barroso a Gramsci faz sentido. De fato, vivemos um período de interregno onde hoje é comum se defender abertamente a Ditadura Civil-Militar, a tortura, a censura, o racismo, o não aquecimento global, a terra plana… Um infindável número de absurdos que alguém jamais teria coragem de defender em tempos de normalidade.

Mas, voltemos à fala de Barroso do início. O ministro afirma que “…essa tempestade que o país está vivendo é esse processo de transição entre o velho e o novo”.

Em “Sintomas Mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira”, Sabrina Fernandes, analisando Gramsci, diz que:

“Há que se provocar os analistas também para o estranho otimismo que foi agregado ao novo. É comum ouvir que o velho morre por seus defeitos e que o novo representa qualidades inteiramente positivas: renovado, arejado, mais preparado e que é produto de sínteses dos erros e acertos passados.

No entanto, Gramsci nunca supôs que esse era o caso. O novo, afinal, é, de certa forma, herdeiro do velho num interregno. É possível que carregue ainda traços problemáticos e viciosos. Não há garantias de virtude no novo.”

Barroso tenta sempre se passar como o novo, arejado e moderno, mas sua perspectiva de novo pode não ser a das melhores. Arrisco afirmar que não é. Barroso vem se mostrando como um novo herdeiro do velho neste interregno.

Barroso é um sintoma mórbido

Algumas posições de Barroso chegam a espantar de tão afrontosas que são à Constituição. Logo ele, um ministro do STF, o poder a quem cabe(ria) ser o guardião da mesma. Alguns chegam a afirmar ironicamente que Barroso pensa ser a própria Constituição.

Isso se justifica pela sua defesa de pautas que afrontam a Constituição e que, em tempos normais, dificilmente haveria quem as defendessem abertamente sem nenhum tipo de remorso ou o mínimo de constrangimento. Tal tipo de posicionamento só é possível porque, de fato, estamos vivendo o interregno de Gramsci. Apenas para exemplificar, traremos abaixo algumas colocações de Barroso que denotam verdadeiros sintomas mórbidos.

i) Prisão em 2ª instância: Esta é uma das pautas mais “polêmicas” da atualidade. Em 2016 o STF criou esse monstro e que, felizmente, o desfez recentemente. Contudo, deixou brechas para que o Legislativo reestabelecesse este absurdo. Tal questão é disciplinada no Art. 5º, LVII da CF, que dispõe sobre a presunção de inocência. O famoso artigo 5º, que trata dos direitos e garantias individuais e está consagrado no rol das famosas cláusulas pétreas. Faz parte das lições mais comezinhas de Direito Constitucional que as cláusulas pétreas não poderão ser objeto de emendas que tendem a aboli-las.

Nunca antes haviam proposto qualquer emenda para suprimir direitos individuais. Nunca até o interregno, pois foi apresentada PEC no sentido de se reduzir o conceito da presunção de inocência que até chegou a ser pautada na CCJ da Câmara.

Na votação das ADCs 43, 44 e 54, Barroso posicionou-se em favor da prisão em 2ª instância. Em seu voto, chegou a declarar que “não foram os pobres que sofreram o impacto da possibilidade de execução da pena após a condenação em 2ª grau. Não foram os pobres que mobilizaram os mais brilhantes e caros advogados criminais do país. Não creio nisso.”. Sua crença contrastou com as intervenções das Defensorias Públicas da União, do Rio de Janeiro e de São Paulo, na qualidade de amicus curiae nesse julgamento. Não me consta que os assistidos das defensorias sejam os mais ricos.

Não obstante, houve ainda a apresentação de diversos dados mostrando que são as Defensorias quem mais provocam os Tribunais Superiores com recursos na defesa dos seus assistidos. Mas, mesmo esses dados, não foram suficientes para fazer com que Barroso refletisse sobre suas crenças.

Ele seguiu dizendo que o Brasil vivia uma epidemia de corrupção, afirmando que a decisão anterior do STF, que permitiu a prisão em 2ª instância, produziu resultados relevantes no combate à corrupção. E indagou “o que justificaria, diante desse quadro, o STF, (…) adotar uma posição que vai dificultar o enfrentamento dessa situação dramática? De que lado da história nós estamos?”. Certamente o lado de Barroso nesse caso não foi o da Constituição. Nesse caso transpareceu que ele a vê como empecilho no combate à corrupção. O certo é que corromper a Constituição para justificar seus devaneios não é a melhor alternativa.

ii) Homeschooling: Em tempos de Escola Sem Partido, onde os conservadores travam uma verdadeira cruzada contra a liberdade de cátedra e a educação, estes setores reacionários foram os que mais apoiaram a possibilidade de educar seus filhos em casa retirando-os das escolas, que eles julgam verdadeiros centros de doutrinação marxista, onde se aplica o “Gramscismo Cultural”.

A discussão sobre o ensino domiciliar surgiu de um Mandado de Segurança – onde se exige a comprovação de direito líquido e certo – impetrado pelos pais de uma criança que queria ensiná-la em casa, no município de Canela (RS). O caso chegou até o Supremo pelo RE 888.815/RS.

Enquanto relator da matéria, Barroso defendeu que o modelo de homeschooling é um método compatível com a Constituição e afirmou que “No Brasil, a despeito de a Constituição de 1988 não ter tratado expressamente do ensino domiciliar, a interpretação das normas que regulam o direito à educação leva à conclusão de que o texto constitucional permite aos pais e responsáveis escolherem o método pedagógico pelo qual seus filhos receberão a educação formal. Sendo a educação doméstica uma modalidade de educação formal, constitui ela alternativa legítima à matrícula na rede regular de ensino.”. Ainda bem que todos os demais Ministros do Supremo votaram contrários ao seu relatório!

Uma simples leitura da Constituição seria suficiente para Barroso ver que ela determina como competência do Poder Público, dentre outras, recensear alunos no ensino fundamental junto com seus pais ou responsáveis e zelar pela frequência escolar (art. 208, § 4º). Nesse sentido, o ECA (art. 55) e a LDB (art. 6º) também estabelecem, de forma cristalina, a obrigação dos pais e responsáveis em matricular as crianças na rede regular de ensino.

Coube ao ministro Marco Aurélio dar em seu voto um recado extremamente necessário a Barroso: “Os textos não permitem interpretações extravagantes. Há uma máxima, em termos de hermenêutica, segundo a qual, onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de reescrever-se a norma jurídica.”. Se quisesse Marco Aurélio poderia, inclusive, citar Brecht e arrematar “Que tempos são esses em que temos que defender o óbvio?”. No caso do Brasil, são tempos de interregno.

iii) Candidatura sem filiação partidária: Em mais uma das suas excentricidades, Barroso está movimentando a máquina pública para travar um debate onde o mesmo economizaria tempo e dinheiro se apenas se desse o trabalho de ler a Constituição.

No último dia 09/12/2019, Barroso, enquanto relator de um Recurso que pretende garantir que seja aceita a possibilidade de candidaturas sem filiação partidária, convocou audiência pública no STF para discutir a matéria. No inícios dos trabalhos deu uma declaração, no mínimo, temerosa quando disse: “Democracia se faz com debate público, plural. Que prevaleça o melhor argumento ou pelo menos o majoritário”. Ou seja, se o seu argumento não for o melhor, que ao menos seja o majoritário.

Como disse, antes de proferir seu voto Barroso deveria ler a Constituição. Lá ele verá o que determina o art. 14, § 3º, V, o qual transcrevemos:

“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

…………..

§ 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei:

…………..

V – a filiação partidária;”

Mais claro, impossível! Porém, caso Barroso resolva tentar inovar mais uma vez no ordenamento jurídico, poupará o trabalho de Marco Aurélio, que poderá aproveitar o mesmo voto supracitado no julgamento do homeschooling.

iv) Julgamento com base no sentimento social: Em mais uma de suas declarações absurdas que, certamente, jamais seriam proferidas em momentos de conjuntura normal, Barroso disse: “Você pode, eventualmente, ser contramajoritário, mas se repetidamente o Supremo não consegue corresponder aos sentimentos da sociedade, vai viver problema de deslegitimação e uma crise institucional”. Mas afinal quais seriam os sentimentos de uma sociedade ampla, diversa, complexa e composta por classes antagônicas? É possível apontar um sentimento social, não contraditório e que consiga abarcar toda esta diversidade?

O jurista Rubens Casara já mostrou que esse pensamento de julgamento com base na vontade do povo era o fundamento da justiça nazista. No seu texto “Vamos comemorar um tribunal que julga de acordo com a opinião pública?”, Casara destaca:

“O medo de juízes de desagradar a “opinião pública” e cair em desgraça – acusados de serem coniventes com a criminalidade e a corrupção – ou de se tornar vítima direta da polícia política nazista (…) é um fator que não pode ser desprezado ao se analisar as violações aos direitos e garantias individuais homologadas pelos tribunais nazistas. Novamente com o apoio dos meios de comunicação, e sua enorme capacidade de criar fatos, transformas insinuações em certezas e distorcer o real, foi fácil taxar de inimigo todo e qualquer opositor do regime.

(…) Não por acaso, sempre que para o crescimento do Estado Penal Nazista era necessário afastar limites legais ou jurisprudenciais ao exercício do poder penal, “juristas” recorriam ao discurso de que era necessário ouvir o povo, ouvir sua voz”

Por mais contorcionismo retórico que se tente fazer para justificar uma colocação absurda dessas, não há como se remontar a tempos sombrios onde qualquer direito era sacrificado em nome de uma pretensa vontade popular.

Esta fala de Barroso nos remete ao conceito de opinião pública e sobre isso, o próprio Gramsci nos ajuda a compreender como ela é formada: “O que se chama de “opinião pública” está estreitamente ligado à hegemonia política, ou seja, é o ponto de contato entre a “sociedade civil” e a “sociedade política”, entre o consenso e a força. O Estado, quando quer iniciar uma ação pouco popular, cria preventivamente a opinião pública adequada, ou seja, organiza e centraliza certos elementos da sociedade civil.”.

Superação do Interregno

Como se observa, no interregno muitas vezes o que é pretensamente novo, não passa de herdeiro do velho. Barroso citou Gramsci, mas não sabia ele que era o próprio sintoma mórbido, deixando isso claro na mesma fala quando sugeriu que a solução para a conjuntura onde temos “um Brasil polarizado, divido e raivoso”, é que “nós devemos nos posicionar para um caminho do meio.”.

Qual seria o caminho do meio entre a defesa da ditadura e os que defendem a democracia? Qual caminho do meio possível entre a censura e a liberdade? Entre a defesa da Constituição e sua mudança em nome do clamor da sociedade? Entre a guerra e a paz? Ou entre o ódio e a tolerância? Qual o meio termo entre os que defendem a vida e aqueles que defendem a liberdade para matar dos agentes de segurança do estado? Qual a mediação entre a tortura e os Direitos Humanos? Qual a solução mediada entre os que defendem a demarcação de terras indígenas e o desmatamento da floresta para o agronegócio?

Não há caminho do meio possível quando as opções são civilização ou barbárie.

  • Rodrigo Juazeiro é advogado sindical e militante do PSOL.
Marcado como:
barroso / stf