Não recordo se foi em 1978 ou 1979. Iniciava a dita “Abertura” e eu voltara ao Brasil. Militava na Convergência Socialista, no Rio Grande do Sul. Então, na semi-legalidade, a organização marxista-revolucionária ganhava força e influência. Eu era muito próximo do historiador Décio Freitas, referência da historiografia marxista brasileira. Estudávamos a escravidão colonial. Ele, com obra e renome consolidados, eu, preparando minha tese de doutoramento.
Visitava amiúde Décio, sobretudo nos sábados. Com Florence, minha companheira, encontrei algumas vezes o Dimitris, em geral entrando ou saindo. Troquei algumas frases com ele, a quem Décio se referia sempre com admiração. Mais ainda, me segredara que combatera, muito jovem, na insurreição comunista da Grécia. Um dia, o historiador me disse de supetão: – O Dimitris quer conversar contigo. Quer militar na CS! Foi um choque. Era algo inusitado. O grego era pintor renomado, intelectual de destaque. Contava então uns 48 ou 49 anos. Um ancião, considerando a idade média da nossa militância, sobretudo no Sul, onde eu fora chamado de velho por ter na época trinta anos.
Disse que não haveria problema. Era um imenso privilégio! Que marcaríamos discussão e integração imediata. Décio respondeu que Dimitris insistia em conversar comigo, antes. Marcamos na casa do historiador, na Independência, quase à frente da Santa Casa. Sentamos em um sofá, na sala. Cara a cara. Décio foi para seu escritório. Em uma parede, pendia um quadro que registrava a força artística do pintor. Uma periferia industrial, com suas casas operárias, chaminés de indústria, sob um sol abrasador e radiante. Imaginem minha alegria, de jovem organizador do partido revolucionário. “Ganhar”, como se dizia na época, um intelectual comunista de destaque e, ainda por cima, ex-combatente grego.
O problema é que o homem falava um português bastante complicado. O salto do grego para o tupiniquim não era coisa pouca, para quem chegara quase adulto ao sul do Brasil. Ensaiei o discurso que preparara, sobre a nossa honra de o termos como militante. Pretendia referir-me à obra dos muralistas Rivera e Orozco, que conhecera nos poucos meses em que vivi na cidade do México, após me refugiar na embaixada daquele país, para escapar do massacre que se seguiu ao golpe de Estado no Chile, em setembro de 1973.
Ele me interrompeu de saída. Nervoso, na sua falação enrolada, disse que eu devia saber que, antes, fora “estalinista”. Retruquei-lhe que não importava o que tinha sido, mas o que era, naquele momento. Que na CS havia companheiros maravilhosos chegados do PCB estalinista, que abraçavam agora o internacionalismo proletário e a revolução socialista. “Se non era vero, era ben trovato e opportuno”.
Ainda mais nervoso, me disse: – Mas eu fui muito, mas muito estalinista!
Ao tentar insistir que isso não era um entrave, em forma ainda mais confusa, ele verbalizou o que o angustiava. Pedi que repetisse, apesar de ter compreendido. Era como se o passado em forma de locomotiva chegasse apitando loucamente para nos atropelar enquanto trocávamos palavras, em uma discussão quase cerimonial.
– Eu fuzilei trotskistas! – disse o bom Dimitris, com os olhos marejando, o que me desequilibrou ainda mais. Não é fácil, sobretudo para um rio-grandense, ver um homem adulto expor seus sentimentos!
Ele lutara na Grécia quando da insurreição de 1946 a 1949. Era, então, um jovem estudante comunista, participando da guerra contra a burguesia, a monarquia e as tropas imperialistas inglesas. Sublevação abandonada pela Iugoslávia, quando da ruptura de Tito com Stalin, que pouco se esforçara no apoio concedido, já que a Grécia fora considerada parte da zona de “influência inglesa-ocidental”. Em 1931, antes da Guerra, com uns 1.400 ativistas, os trotskistas gregos superavam os militantes do PC oficial.
Um dia, me contou Dimitris, seu tenente lhe dissera para ir com companheiros fuzilar alguns trotskistas que haviam sido presos. Ele perguntara ao oficial o que eram “trotskistas”. Colaboradores contra-revolucionários dos ingleses, respondeu seu superior.
Dimitris me disse que, na hora e por longo tempo, seguiu se perguntando por que contra-revolucionários a serviços dos ingleses morreriam de braço erguido, de punho cerrado, cantando a Internacional que eles …. também cantavam!
O relato me deixou imobilizado. Falei que não importava. Que o determinante era o que ele era agora. Mas que consultaria a direção. Marcaria uma reunião, logo que recebesse a resposta. Enviei o informe oral -preferi não escrever- para São Paulo.
Jamais recebi resposta. No melhor dos casos, talvez esperaram para consultar Moreno e os argentinos, que decidiam tudo. Mas é mais provável que a direção sequer foi informada ou pouco se preocupou com a questão. O correio foi um estudante com uns 17 ou 18 anos, a idade de Dimitris quando disparou contra os comunistas internacionalistas.
Eram tempos malucos. Viajei para fora de Porto Alegre e, a seguir, mudei-me do Rio Grande do Sul.
O relato tem assombrado minha memória nos últimos quarenta anos. Quantos teriam sido os trotskistas fuzilados? Dois, três, quatro? Eram adultos, ou apenas jovens? Morreram em uma tarde de sol abrasador, ou sob o impiedoso inverno grego? Olharam, no último momento, para além dos seus executores, o verde-azul ofuscante do mar Jônico infinito? Ou caíram abraçados à terra dura das abruptas montanhas? Talvez tudo tenha se passado em um Dezembro de Sangue, nas barricadas de Atenas.
Seus nomes foram registrados pela história, ou apenas foram honrados pela lembrança dolorida de Dimitris, um combatente comunista que jamais se entregou?
Carrego neste quarenta anos sobretudo o peso de não ter procurado o pintor, como prometera. Ele viveu seus últimos anos em Porto Alegre, lutando pela sobrevivência, pintando, escrevendo, firme em suas convicções, dilacerado pelas derrotas sem fim que viveu no Novo e no Velho Mundo. Procurá-lo para lhe reafirmar que as balas que feriram os camaradas fuzilados também haviam sido dirigidas contra ele. Mesmo tardiamente, vão aqui, camarada Dimitris, minhas envergonhadas desculpas.
Embebedei-me,
Enamorei-me
Da bandeira flamejante
Passando de mão em mão
A cor do sangue,
Com os estivadores,
Operários, estudantes,
Nas barricadas invernais
De Atenas
O Dezembro Vermelho
Rompeu a Paz dos Mortos.
Da falsa liberdade
As pombas se tornaram corvos
Vestidos da noite assassina
Os pelotões de execução
Em cada esquina.
…….
Dimitris Anagnostopoulos
CREMER, M. (Org.) A trajetória de Dimitris Anagnostopoulos. Porto Alegre: Papel & Palavras, 1995. p. 8.
* Mário Maestri, 71, é historiador. [email protected]
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