O paradoxo do brasileiro

Complexo de pitbull, razão incentivos fiscais/colaboradores, tráfico de “cocaína digital” pelo governo, Orlando Lovers, “globalização polarizada”, mito da caverna … As redes sociais desnudaram o comportamento paradoxal da sociedade brasileira. Na iminência de uma “realidade distópica”, alguns deixaram a máscara cair, enquanto outros pegarão a máscara para lutar.

Cora Furtado, de Uberlândia (MG)

O Brasil tem uma história política, econômica e social de constante instabilidade. A diferença dos novos tempos é que, diante de uma realidade aumentada via redes sociais, em nenhuma outra época foi tão evidente questões paradoxais da sociedade brasileira. Contudo, como a busca da compreensão de um paradoxo acaba sendo um paradoxo em si mesmo, nos resta, então, indagar sobre alguns pontos cruciais da miscelânea comportamental incoerente do nosso povo.

1. Parte da sociedade brasileira, que elegeu Bolsonaro com entusiasmo, trocou de forma quase instantânea o “complexo de vira-lata” pelo “complexo de pitbull”. Para estes animais, é obrigatório por lei o uso de focinheira nas ruas. Impunidade explícita.

2. Elegemos um governo autointitulado liberal e conservador. Tão incoerente quanto um nazismo de esquerda.
3. Defender a ideia de Estado mínimo, em um país com deficiências econômicas estruturais onde só o Estado pode intervir a favor da sociedade, é o mesmo que entrar em uma competição sem árbitro. Ineficiência (do Estado) deve ser tratada com fiscalização, modernização e redução de privilégios.

4. Em um capitalismo globalizado e desregulamentado, dirigido pela vontade das grandes corporações que visam somente o lucro, o que faz o brasileiro acreditar que atrair empresas estrangeiras para o Brasil é a melhor solução para criação de empregos, justo quando a robotização de empregos (avançada em países desenvolvidos) nunca esteve tão real e presente como agora?

5. Os incentivos fiscais que grandes empresários recebem no país para investir, sem uma obrigatoriedade de geração de emprego, são, na verdade, uma clara transferência de dinheiro público para esses empresários. Com a robotização de processos e a reforma trabalhista (ambos com objetivo de redução da folha de pagamento), a razão incentivos fiscais/colaboradores só tende a crescer, diminuindo as externalidades positivas dos incentivos fiscais na economia e concentrando renda. Por que, então, apoiar a manutenção de incentivos fiscais para empresários, sem contrapartida de geração de empregos, quando, na verdade, a solução viável para nosso país seria sobretaxá-los para distribuir renda?

6. O real objetivo da grande maioria de votos a favor do governo eleito foi acreditar que um ministro liberal seria capaz de gerar empregos no país. Os eleitores buscarão incessantemente governos que possam gerar crescimento econômico e empregos (movimento pendular entre esquerda e direita), mas não vão encontrá-los. O mundo entrou em um regime de baixo crescimento estrutural, com intensificação da busca por ganhos monetários em detrimento de ganhos produtivos.

7. Apoiar a reforma trabalhista é incoerente pois o benefício individual (ao empresário) é simultaneamente um malefício coletivo (classe trabalhadora) que recairá sobre o próprio sistema. Sem renda, não há consumo.

8. Diferente do que imaginam os Orlando Lovers, o Brasil nunca vai se equiparar aos Estados Unidos com relação a desenvolvimento econômico. A elevada taxa de desperdício proveniente do consumismo nos países desenvolvidos não poderia ser replicada para todos os países do mundo, pois o planeta não conseguiria arcar com tal sobrecarga ambiental. O consumo deveria ser ambientalmente responsável, e os produtos deveriam precificar os impactos ambientais de produção, mas estamos longe desse patamar (ainda mais com “filósofo de direita” chamando ambientalista de mimada).

9. Classe média: a personificação exata do paradoxo do brasileiro, provavelmente diria Marilena Chauí. A) Acredita que está mais próximo da classe rica do que da classe pobre. B) Votou em um presidente boçal e ministros charlatões sem analisar o power point da campanha eleitoral (motivo foi o anti-petismo), e agora questiona determinadas medidas de governo. C) Canta o hino brasileiro nas ruas, mas ignora Bacurau nos cinemas e se vislumbra com Joker, ambos com um pano de fundo similar (estágio patológico do capitalismo). D) Se mostra patriota nas vestimentas mas fortalece o mimetismo cultural no consumo.

10. Entidades religiosas conservadoras ajudaram a eleger no Brasil um presidente com viés pro-armamentista, beligerante e que flerta com a ditadura. Conservadorismo religioso tem dois objetivos: a monetização da fé e o fortalecimento de medidas fascistas em prol de uma classe dominante.

11. Redes Sociais: “Redes” que não conectam, elas polarizam; “Sociais” em partes, pois estão repletas de robôs. Tornaram-se uma “cocaína digital” que destroça comportamentos, cujo próprio governo brasileiro é um dos grandes traficantes desse entorpecente moderno.

12. O setor de commodities é o único em que os países subdesenvolvidos tem chance de competitividade contra as nações desenvolvidas. É justamente nesse setor (carne, petróleo…) que há maior investimento em inovação nos centros mundiais, com o claro objetivo de diminuir a relativa dependência econômica destes países. Num futuro próximo, carnes sintéticas, baterias de íon-lítio em carros e outras inovações poderão culminar em uma “desertificação econômica” dos países periféricos, retraindo a economia global para um processo de “globalização polarizada”. Neste cenário, países desenvolvidos manteriam o comércio estável entre eles e usufruiriam dos benefícios da acumulação de capital ao longo dos anos (como a renda básica universal), deixando os países periféricos num estágio caótico de apartheid econômico e climático. Os excedentes financeiros do setor de commodities no Brasil deveriam ter sido revertidos em outros setores da economia, mas, novamente, beneficiou somente uma elite nacional. Uma nação com orgulho de ser Agro é uma incoerência estratégica e estrutural.

Temos acesso a uma gigantesca gama de informações em tempo real, mas continuamos presos a convicções ilógicas, discutindo diariamente Política (politicaria) ao invés de Economia Política. Escancarar nossas contradições e questionar os interesses privados por trás das redes sociais são passos importantes para a sociedade brasileira elucidar seus pensamentos e tomar posicionamentos mais racionais, de modo a excluir a possibilidade de governos liberais que só beneficiam o movimento predatório do capital com um discurso que, empiricamente, já não convence mais. De forma resumida, o paradoxo do brasileiro significa ignorar a iminência de uma realidade distópica em escala global, e não perceber que o único “mito” que se faz presente neste país é o mito da caverna, agora de cunho econômico.