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BRASIL

A polícia, a favela e a creche

Relato de um ex-professor de creche pública no ABC paulista

Venâncio Fávero, de São Paulo (SP)

Fui professor de creche numa comunidade por quase três anos. Sabem como os bebês ficam no dia seguinte na escolinha depois de uma “intervenção” policial na comunidade? Chorando o dia inteiro, mordendo os coleguinhas, com dificuldades para tirarem o soninho. Quando dormem acordam gritando e chorando com pesadelos. Não conseguem comer direito, alguns não comem o dia inteiro, outros comem tão rápido que gorfam tudo. Na hora da saída, quando a primeira mamãe aparece, começa um sofrimento generalizado, uma ansiedade em toda turma de bebês para cada mamãe que aparece e não é a deles. Eles ficam o dia inteiro querendo afeto, mas afeto em um nível que um educador com mais 20 bebês infelizmente não consegue dar sem negligenciar os outros bebês do ambiente.

Eu tive uma bebê que tinha medo de dormir, uma vez perguntei a mãe o porquê e ela me disse que tudo começou quando a polícia colocou fogo na favela como recado aos traficantes, e que na hora em casa foi uma confusão, muitas crianças, poucos adultos, nenhum adulto homem, duas mulheres com medo, e outras crianças com mais medo ainda. Ela só dormia se ficássemos cantarolando, e sempre se sentindo entre nossos braços. Demorava, demorava 40 minutos para ela dormir, o braço começava a doer, mas se trocasse de braço perdia todo trabalho que já tinha sido feito em tentar dizer pra ela: pode dormir meu bem, pode dormir. Uma bebê negra, que vai crescer e que pode daqui a 12 ou 13 anos vir a óbito pisoteada enquanto se diverte na comunidade em que nasceu e cresceu.

É essa a perspectiva que um educador tem que ter de um aluno? Eu queria sonhar outros futuros pra ela. Na verdade a gente sonha! Penso nela como uma médica, uma professora, uma astronauta. Mas o mundo material reserva estatisticamente outro destino para as crianças pobres e negras. Inventaram uma guerra contra uma planta para matar nossa juventude pobre. Por que não regulamentam a venda das drogas para acabarem com o tráfico e acabarem com essa guerra sangrenta? POR QUÊ? Enquanto o avião da Presidência da República transporta cocaína para a Europa, os professores precisam conviver com a tarefa de pegarem no colo crianças condenadas a morte, e as abraçarem e as beijarem para elas sentirem que está tudo bem, sendo que nada, nada está bem.

É por isso que ser professor e não lutar para a transformação radical dessa sociedade é uma contradição pedagógica.