Pular para o conteúdo
MUNDO

Bolívia: Entre a consolidação do golpe, massacres e novas eleições

Nericilda Rocha, de Fortaleza (CE)

Militares atacam cortejo com mortos nos protestos

O golpe na Bolívia está enfrentando a resistência dos camponeses e indígenas mas não tem conseguido mover os principais setores da classe trabalhadora organizada em sindicatos e na histórica Central Operária Boliviana (COB). Decerto, esse será o elemento decisivo na consolidação ou não do golpe. Por enquanto, o governo interino vai se consolidando, impondo um novo regime baseado na repressão com as Forças Armadas impedindo os bloqueios e manifestações. Já são mais de 32 mortos, centenas de feridos e outra centena de presos. Paralelo a isso, convocaram novo processo eleitoral excluindo a participação de Evo Morales. Assim pretendem consolidar o golpe. Usar as urnas para legitimar o que foi feito com as botas militares. Mas será que conseguirão?

A resistência contra o golpe tem protagonizado marchas gigantescas e já foi vítima dos massacres em Sacaba e Senkata, sofreu importante revés. O MAS, partido de Evo, aprovou por unanimidade na Assembleia Plurinacional, no último sábado 24, o projeto costurado com o atual governo interino, que convoca novas eleições presidenciais e legislativas, sem a participação de Evo, em um prazo de até 120 dias. Isso significa que podem realizar-se até abril de 2020.

Convocatória de novas eleições sem Evo e a farsa do diálogo para a “pacificação”

O projeto promulgado pela presidente interina, é resultado da mesa de diálogo instalada pelo governo, Igreja Católica, União Europeia, ONU, movimentos sociais do chamado Pacto de Unidade que envolve membros do MAS, setores de El Alto e a COB, com o argumento de gerar o “Consenso para pacificar o país”. A mesa demonstra uma mudança na tática do MAS que até então apostava na resistência direta ao golpe através das mobilizações e bloqueios dos cocaleiros, camponeses e indígenas.

Dos três temas debatidos na mesa, a convocatória das novas eleições, uma lei de garantias democráticas contra as prisões e processos de dirigentes do MAS, e a retirada do Decreto 4078 que isenta os militares de responsabilidades em caso de morte de manifestantes, o único consenso logrado foi o que queria o governo golpista, novas eleições sem Evo Morales.

Após o massacre na planta processadora de combustíveis em Senkata, cidade de El Alto, que os militares assassinaram a nove manifestantes, foram presos o filho de Evo, com acusação de que estaria com um áudio do pai incentivando o bloqueio à La Paz; o vice-presidente nacional do MAS por dirigir um veículo que pertence ao governo sem placa; o governador de Chuquisaca também do MAS; a deputada do MAS eleita por Santa Cruz nas eleições de outubro, Deysi Choque, acusada de participar no enfrentamento com grupos cruzenhos em Montero (Santa Cruz), ainda em outubro, que resultou na morte de duas pessoas opositoras a Evo; e um enfermeiro de El Alto que ajudou vários feridos durante o massacre de Senkata, acusado de proteger terroristas

Esse aprofundamento da perseguição, levou a bancada do MAS no Senado a apresentar um projeto de lei contra o que chamou “processos políticos”, a Evo, Linera, ex-ministros, e lideranças do MAS que estão sendo presas por participação nos protestos pelo Fora Añez. Tal projeto não foi aprovado, o que parece demonstrar uma divisão na própria bancada do MAS. Apesar de que Jeanine Añez, de forma preventiva, anunciou que se fosse aprovada ela vetaria, o Mas como maioria poderia ter aprovado ainda que a usurpadora vetasse. Não foi o que aconteceu.

Os golpistas não cederam quanto à reivindicação dos movimentos sociais de anulação do Decreto 4078, deixando evidente a farsa da  “pacificação” do país. Por outro lado, aceitam liberar alguns sindicalistas detidos e que o MAS participe nas eleições convocadas para ocorrer em 120 dias, sem a participação de Evo. O detalhe é que até lá, no ritmo que vai a perseguição aos dirigentes do MAS, essa sigla terá suas principais cabeças decapitadas para o processo eleitoral. Quando fechávamos esse artigo, a ordem de prisão de Juan Ramón Quintana, ex-ministro da Presidência do governo Evo, havia acabado de ser decretada sob a acusação de sedição. A mesma acusação que querem imputar a Evo.

O vergonhoso papel da COB

É um absurdo que os principais dirigentes do partido de Evo Morales e a COB tenham aceitado a negociação com os golpistas e assinado tal acordo. Primeiro porque a presidente atual é ilegítima. É resultado de um golpe de estado que derrubou um presidente legitimamente eleito em 2014 e que seu mandato só terminaria em 22 de janeiro de 2020. Negociar com o atual governo que emerge do golpe é uma traição àqueles que estão lutando nas ruas para derrotar o golpe, é uma traição aos que foram mortos pelos militares, e o pior, legitima o golpe. O que não está claro é se as bases aceitarão esses acordos. Somente nos próximos dias poderemos saber.

Temos profundas diferenças políticas com os 13 anos de governo de Evo Morales e todos os chamados “governos progressistas na América Latina”. Em essência pelas reformas parciais que apresentaram, marcadas pela ausência de mudanças estruturais, anticapitalistas, e consequentemente por seus projetos de colaboração de classes com setores da burguesia. Foram governos que trabalharam para impedir que surgissem organizações da classe trabalhadora independente de seus governos. Evo Morales, um dos governo que obteve maior apoio junto aos movimentos sociais, cumpriu o papel de cooptar a direção da COB e as principais direções dos movimentos sociais, e impedir o surgimento de alternativas políticas à sua esquerda. E quando não cooptava buscava destruí-las.

Mas essas diferenças sempre nos localizaram no campo dos interesses da classe trabalhadora, buscando que as organizações e movimentos sociais tivessem independência política e financeira frente ao governo e buscassem superá-lo. Nunca estivemos e nem estaremos, jogando água no moinho da burguesia. Uma coisa era derrotar Evo Morales pela esquerda, outra coisa é derrotá-lo com um golpe de estado encabeçado pela burguesia e oligarquias dos comitês cívicos, articulados com os militares e os governos de Trump e Bolsonaro. Que já usam o golpe na Bolívia para impor ataques à Cuba e Venezuela como ficou demonstrado com a agressão à Embaixada da Venezuela em Brasília.

É isso que a direção da COB, depois de tantos anos apoiando o governo, não consegue discernir. Há um governo ultraconservador na Bolívia, com um gabinete que é certamente a maior concentração de conservadores por metros quadrados no país, que já colocou em marcha algumas medidas econômicas que retrocedem nas limitadas medidas progressivas dos 13 anos de Evo Morales, como é o caso da liberação das exportações de soja e açúcar para os latifundiários de Santa Cruz; as negociações com as cooperativas mineiras que desde 2016 exigiam a Evo novas áreas de exploração, autorização para fecharem negócio com empresas privadas e flexibilização das normas ambientais; e o anúncio de auditorias nas estatais para prepará-las para privatização.

Um governo que nasce de um golpe, ou seja, uma ação contrarrevolucionária. E a COB reúne e negocia com esse governo em nome da “pacificação” e da promessa de liberação dos detidos nos protestos contra Jeanine Añez. Uma tragédia! A política deveria ser mover as bases da classe trabalhadora, derrotar o golpe e garantir que Evo concluísse seu mandato. Essa é a única forma de derrotar a classe inimiga que está comemorando o golpe.

A COB precisa mudar imediatamente sua política! A resistência ao golpe está sendo desarticulada com essa traição. Tanto a COB quanto a direção do MAS precisam olhar o que aconteceu com a classe trabalhadora brasileira. Após o golpe parlamentar de depôs a ex-presidente Dilma em 2016, as principais direções dos movimentos sociais acharam que não era necessário derrubar o governo golpista de Temer nas ruas, que ele se desgastaria com o tempo, e assim, a esquerda poderia voltar a vencer nas eleições presidenciais de 2018. Os golpistas prenderam Lula e nas eleições trabalharam eficientemente com fake news, Igrejas Evangélicas, discurso conservador, e o resultado foi a vitória de Bolsonaro. Na atual Bolívia, Evo não está preso ou morto porque está no México. As principais lideranças do MAS estão sendo perseguidas, ou se derruba os golpistas nas ruas, com as lutas de resistência ou se legitimará o caminho para a chapa Luis Fernando Camacho e Marco Pumari, presidentes do reacionário comitê cívico de Santa Cruz e de Potosi, ou mesmo Carlos Mesa, um candidato da direita que foi deposto pelas mobilizações populares de 2005.

Marcado como:
bolívia