Uma maldição ronda a esquerda marxista: a maldição do stalinismo


Publicado em: 23 de novembro de 2019

Marxismo

Gabriel Dayoub, de São Paulo (SP)

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

Marxismo

Gabriel Dayoub, de São Paulo (SP)

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

Compartilhe:

Ouça agora a Notícia:

Vem sob diferentes disfarces. De “Stálin matou pouco” a “Stálin exagerou, mas, veja bem, venceu o nazismo”, passando pelo “toda essa coisa de ‘crimes do stalinismo’ é invenção do imperialismo”, “mimimi dos liberais”. Afirmações que mostram não apenas profundo desconhecimento do desenrolar da Revolução Russa, mas do próprio marxismo. 

Pois o programa histórico do marxismo não é a supressão da liberdade. Não se trata de esmagar as conquistas da civilização burguesa, mas de superá-las, de alargá-las. A democracia burguesa deve ser extinguida. Mas para ser substituída por uma forma política superior, que supere a dicotomia igualdade formal X desigualdade material. Que supere a contradição entre indivíduo e sociedade, garantindo a livre associação dos indivíduos sociais, não que suprima a individualidade em nome de um abstrato e ilusório “interesse geral”. O socialismo deve ser humanamente superior ao capitalismo. Do contrário, não valeria a pena lutar.

É verdade que um período mais ou menos longo de transição separa as revoluções sociais do socialismo. O que Marx podia apenas intuir foi claramente percebido por Lenin e desenvolvido por Trotsky e outros. As revoluções irrompem no terreno nacional e apenas sua permanência e expansão a outros países pode viabilizar a construção do socialismo. Revoluções isoladas estão sujeitas a pressões e contradições que se mostraram historicamente insuperáveis. O internacionalismo é condição de sobrevivência a qualquer organização revolucionária séria.

Essa transição continua sendo um dos enigmas do marxismo. Há todo um legado revolucionário que deve ser estudado e aprofundado e apenas a experiência histórica – oxalá possamos participar dela – poderá encerrar o debate. Mas stalinismo ensina o que não fazer.

Os bolcheviques erraram na previsão da iminência da Revolução Alemã. Não foi possível romper o isolamento. A guerra civil, simultânea à invasão por potências imperialistas, destruiu parte da capacidade produtiva da jovem União Soviética e consumiu o proletariado. Nessas circunstâncias – isolamento externo, extremo desgaste interno e perigo iminente da contrarrevolução – o Partido Bolchevique reduziu as liberdades democráticas como uma medida excepcional. Dentro do marxismo, há um debate sobre qual foi a eficácia das restrições, em que foram exageradas e o quão necessário foi prolongá-las. Ernest Mandel, por exemplo, histórico dirigente trotskista belga, considerou um erro o banimento do direito de tendência dentro do Partido Bolchevique em 1922, já quase vencida a guerra civil.

O stalinismo transformou essas medidas problemáticas em regra. Tornou permanente a supressão de frações internas e de outros partidos políticos do proletariado. Mas foi muito além das medidas excepcionais de Lenin. Antes de Stálin, não se pensava em expulsar membros do partido por divergências políticas. O “Homem de Ferro” trouxe o terrorismo como arma política central para manter a unidade do aparelho e executou sistematicamente opositores – reais e potenciais – dentro e fora do partido. Acabou com o que restava da já golpeada democracia nos sovietes e com qualquer grau de organização autônoma. Ao invés do progressivo definhamento do Estado, inchou-se ao máximo o aparelho estatal e este fundiu-se ao Partido, algo que Lenin tinha procurado conscientemente evitar. A burocracia ganhou poder de casta suprema.

Na economia, a posição centrista da burocracia, com Stálin à cabeça, primeiro capitulou aos camponeses médios, contra a Oposição de Esquerda; depois, girou e promoveu as tenebrosas “coletivizações forçadas” das terras, massacrando a população do campo. A economia cresceu, mostrando em parte a superioridade do planejamento centralizado à anarquia da competição capitalista; mas a planificação burocrática cobrou seu preço, evidente nas bizarras histórias de um país que produz um arsenal militar de ponta, em contraste com o atraso na produção de bens de consumo.

Como outra face da mesma moeda, a burocracia não buscou acabar com o isolamento soviético, mas, pelo contrário, levou à derrota insurreições anticapitalistas por todo o mundo, primeiro recusando a unidade das forças proletárias ante a barbárie fascista; e depois adotando uma política de seguidismo das chamadas “burguesias nacionais” – China, Espanha, França e tantas outras experiências de “Frente Popular”. Além, é claro, do extermínio puro e simples de vários dirigentes não alinhados à política soviética (com os trotskistas à frente, mas não só eles. Pensemos no bárbaro assassinato de Andrés Nin, dirigente do POUM durante a Guerra Civil Espanhola e que rompera com a Quarta Internacional, para ficar em apenas um exemplo).

Todas essas dimensões da degeneração da Revolução Russa e muitas outras foram criticadas, sistematicamente e em primeira hora, por Trotsky, e antecipadas, em parte, pelo próprio Lênin. Hoje, podemos contar também com o legado de figuras de outros matizes do marxismo que analisaram a degeneração stalinista, como István Meszáros.

O que significa, então, o “stalinismo tardio”? O camarada Henrique Canary acerta na mosca: um tipo de nostalgia reacionária e melancólica, resposta, em parte, à evidente derrota que significou a restauração capitalista. Fenômeno de uma geração que não viu, infelizmente, nenhuma experiência de expropriação da burguesia e procura romantizar o passado. Que esse sintoma mórbido de nossa etapa utilize como escudo o “lugar de fala” inatacável, tão caro à pós-modernidade, só mostra a urgência da construção de uma alternativa política efetivamente radical, revolucionária, feminista, antirracista e marxista.

O organizador de derrotas. O coveiro da revolução. Uma mistura de Luís Bonaparte e Iván, o terrível. Stálin foi um fenômeno individual, expressão de um impasse histórico e não se pode reduzir a degeneração burocrática da Revolução à sua figura. Mas os indivíduos fazem sua própria história. Diante de impasses, fazem escolhas. Stálin é responsável por crimes contra a revolução e contrarrevolucionários de todo o mundo. Sua figura nefasta ajudou a deturpar a história do bolchevismo e afastou milhares de ativistas honestos da causa socialista. Lutemos para que seu nome nunca mais seja associado àqueles que lutam pela humanidade.


Contribua com a Esquerda Online

Faça a sua contribuição