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TEORIA

Uma maldição ronda a esquerda marxista: a maldição do stalinismo

Gabriel Dayoub, de São Paulo (SP)
reprodução

A soviet propaganda poster featuring joseph stalin published by the iskusstvo publishing house, 1950 (?), ‘under the leadership of great stalin – forward to communism’. (Photo by: Sovfoto/UIG via Getty Images)

Vem sob diferentes disfarces. De “Stálin matou pouco” a “Stálin exagerou, mas, veja bem, venceu o nazismo”, passando pelo “toda essa coisa de ‘crimes do stalinismo’ é invenção do imperialismo”, “mimimi dos liberais”. Afirmações que mostram não apenas profundo desconhecimento do desenrolar da Revolução Russa, mas do próprio marxismo. 

Pois o programa histórico do marxismo não é a supressão da liberdade. Não se trata de esmagar as conquistas da civilização burguesa, mas de superá-las, de alargá-las. A democracia burguesa deve ser extinguida. Mas para ser substituída por uma forma política superior, que supere a dicotomia igualdade formal X desigualdade material. Que supere a contradição entre indivíduo e sociedade, garantindo a livre associação dos indivíduos sociais, não que suprima a individualidade em nome de um abstrato e ilusório “interesse geral”. O socialismo deve ser humanamente superior ao capitalismo. Do contrário, não valeria a pena lutar.

É verdade que um período mais ou menos longo de transição separa as revoluções sociais do socialismo. O que Marx podia apenas intuir foi claramente percebido por Lenin e desenvolvido por Trotsky e outros. As revoluções irrompem no terreno nacional e apenas sua permanência e expansão a outros países pode viabilizar a construção do socialismo. Revoluções isoladas estão sujeitas a pressões e contradições que se mostraram historicamente insuperáveis. O internacionalismo é condição de sobrevivência a qualquer organização revolucionária séria.

Essa transição continua sendo um dos enigmas do marxismo. Há todo um legado revolucionário que deve ser estudado e aprofundado e apenas a experiência histórica – oxalá possamos participar dela – poderá encerrar o debate. Mas stalinismo ensina o que não fazer.

Os bolcheviques erraram na previsão da iminência da Revolução Alemã. Não foi possível romper o isolamento. A guerra civil, simultânea à invasão por potências imperialistas, destruiu parte da capacidade produtiva da jovem União Soviética e consumiu o proletariado. Nessas circunstâncias – isolamento externo, extremo desgaste interno e perigo iminente da contrarrevolução – o Partido Bolchevique reduziu as liberdades democráticas como uma medida excepcional. Dentro do marxismo, há um debate sobre qual foi a eficácia das restrições, em que foram exageradas e o quão necessário foi prolongá-las. Ernest Mandel, por exemplo, histórico dirigente trotskista belga, considerou um erro o banimento do direito de tendência dentro do Partido Bolchevique em 1922, já quase vencida a guerra civil.

O stalinismo transformou essas medidas problemáticas em regra. Tornou permanente a supressão de frações internas e de outros partidos políticos do proletariado. Mas foi muito além das medidas excepcionais de Lenin. Antes de Stálin, não se pensava em expulsar membros do partido por divergências políticas. O “Homem de Ferro” trouxe o terrorismo como arma política central para manter a unidade do aparelho e executou sistematicamente opositores – reais e potenciais – dentro e fora do partido. Acabou com o que restava da já golpeada democracia nos sovietes e com qualquer grau de organização autônoma. Ao invés do progressivo definhamento do Estado, inchou-se ao máximo o aparelho estatal e este fundiu-se ao Partido, algo que Lenin tinha procurado conscientemente evitar. A burocracia ganhou poder de casta suprema.

Na economia, a posição centrista da burocracia, com Stálin à cabeça, primeiro capitulou aos camponeses médios, contra a Oposição de Esquerda; depois, girou e promoveu as tenebrosas “coletivizações forçadas” das terras, massacrando a população do campo. A economia cresceu, mostrando em parte a superioridade do planejamento centralizado à anarquia da competição capitalista; mas a planificação burocrática cobrou seu preço, evidente nas bizarras histórias de um país que produz um arsenal militar de ponta, em contraste com o atraso na produção de bens de consumo.

Como outra face da mesma moeda, a burocracia não buscou acabar com o isolamento soviético, mas, pelo contrário, levou à derrota insurreições anticapitalistas por todo o mundo, primeiro recusando a unidade das forças proletárias ante a barbárie fascista; e depois adotando uma política de seguidismo das chamadas “burguesias nacionais” – China, Espanha, França e tantas outras experiências de “Frente Popular”. Além, é claro, do extermínio puro e simples de vários dirigentes não alinhados à política soviética (com os trotskistas à frente, mas não só eles. Pensemos no bárbaro assassinato de Andrés Nin, dirigente do POUM durante a Guerra Civil Espanhola e que rompera com a Quarta Internacional, para ficar em apenas um exemplo).

Todas essas dimensões da degeneração da Revolução Russa e muitas outras foram criticadas, sistematicamente e em primeira hora, por Trotsky, e antecipadas, em parte, pelo próprio Lênin. Hoje, podemos contar também com o legado de figuras de outros matizes do marxismo que analisaram a degeneração stalinista, como István Meszáros.

O que significa, então, o “stalinismo tardio”? O camarada Henrique Canary acerta na mosca: um tipo de nostalgia reacionária e melancólica, resposta, em parte, à evidente derrota que significou a restauração capitalista. Fenômeno de uma geração que não viu, infelizmente, nenhuma experiência de expropriação da burguesia e procura romantizar o passado. Que esse sintoma mórbido de nossa etapa utilize como escudo o “lugar de fala” inatacável, tão caro à pós-modernidade, só mostra a urgência da construção de uma alternativa política efetivamente radical, revolucionária, feminista, antirracista e marxista.

O organizador de derrotas. O coveiro da revolução. Uma mistura de Luís Bonaparte e Iván, o terrível. Stálin foi um fenômeno individual, expressão de um impasse histórico e não se pode reduzir a degeneração burocrática da Revolução à sua figura. Mas os indivíduos fazem sua própria história. Diante de impasses, fazem escolhas. Stálin é responsável por crimes contra a revolução e contrarrevolucionários de todo o mundo. Sua figura nefasta ajudou a deturpar a história do bolchevismo e afastou milhares de ativistas honestos da causa socialista. Lutemos para que seu nome nunca mais seja associado àqueles que lutam pela humanidade.

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