Um espectro (tenebroso) ronda a esquerda. A derrocada do projeto petista de conciliação de classes abriu caminho para uma situação reacionária que, dentre outras coisas, reavivou um anticomunismo rude e primitivo que só se viu com força semelhante quando da derrota histórica que sucedeu a restauração capitalista do leste europeu.
A gravidade da situação alimenta um justo sentimento (e uma necessidade real) de unidade para enfrentar o inimigo burguês comum, mas, dialeticamente produz pressões para a eliminação de diferenças, abordagens ecléticas e, sobretudo, silêncio sobre o que nos separa. Mas a tradição marxista é precisamente a que conhece a importância de golpear juntos, mas saber marchar separado quando um tema fundamental nos divide.
E esse espectro, o tema da reabilitação do stalinismo, não é algo qualquer. Queremos nos unir a todos os segmentos da classe trabalhadora dispostos a enfrentar a ultra-direita, o perigo do neofascismo, o ajuste neoliberal da burguesia e o bolsonarismo como máxima expressão atual de todo esse fenômeno regressivo no Brasil. Mas queremos também entregar às gerações seguintes uma perspectiva de futuro.
E a perspectiva de futuro nos separa dos que pretendem reabilitar o stalinismo justamente porque temos apreciações distintas sobre o passado. Que opinião temos do regime político de terror que se desenvolveu na antiga URSS? O que se revelou como contingência de condições históricas e o que esteve no campo das possibilidades de escolha? Aquilo é o que queremos para as revoluções e sociedades futuras? É sobre isto que este artigo pretende abordar, revelando que o (neo)stalismo possui – em perspectiva histórica – mais semelhanças com o bolsonarismo do que se pode imaginar.
O antistalinismo como “anticomunismo”: uma reprodução conceitual burguesa resultante da teoria do “socialismo em um só país”
Tem sido comum ouvirmos falar que uma suposta “resistência” ao que foi o stalinismo precisa ser superada e recentemente foi reacendido esse debate no campo da esquerda por alguns setores que tem se utilizado da noção de “anticomunismo” para se referir aos segmentos críticos do totalitarismo stalinista.
Antes de adentrarmos nos fundamentos que sustentam essa categoria apologética, se faz necessário um reposicionamento do conceito – que sagazmente é usado a partir de um referencial que não é o da teoria marxiana, senão burguesa.
É de fundamental importância destacar, antes de qualquer coisa, como definimos a sociedade comunista, que é, segundo MARX (2001, p. 138), “a eliminação positiva da propriedade privada como auto-alienação humana”, que “constitui portanto a eliminação positiva de toda a alienação, o regresso do homem a partir da religião, da família, do Estado, etc., à sua existência humana, ou seja, social“ (Idem, ibidem, p. 139, grifos do autor).
Ao afirmar que a “estrutura do processo vital da sociedade, isto é, do processo da produção material, só pode desprender-se do seu véu nebuloso e místico, no dia em que for obra de homens livremente associados [ausência de propriedade privada], submetida a seu controle consciente e planejado [economia planificada]” (Idem, 1975, p. 88, grifos e comentários nossos), Marx revela que é este modo de produção de livres produtores associados o verdadeiro objetivo emancipatório final de uma ordem sócio-econômica plenamente humana. Trata-se de uma fase do desenvolvimento histórico marcada pela planificação da atividade laboral em face a uma socialização completa dos meios de produção, desenvolvendo um processo de extinção das classes sociais que por sua vez conduz a um definhamento do Estado (e o conjunto de suas instituições), definido por ENGELS (2002, p. 203) como “um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar”.
Abolida a forma do Estado, todos os aparatos repressivos, sistemas punitivos legais e organizações de classe (como os partidos e os sindicatos) também desaparecem, uma vez que eliminadas as classes sociais, as superestruturas políticas que resultam da clivagem de classe perdem seu valor e perecem, em face de não mais existir um interesse antagônico de classe para enfrentar e/ou subjugar. Todo o controle social passa a ser feito por uma auto-gestão coletiva. A sociedade, então, se desdobra na sua forma mais plenamente desenvolvida: com as forças produtivas “disponíveis em quantidade suficiente” (MARX; ENGELS, 2003, p. 33) para garantir o atendimento de todas as necessidades humanas determinadas social e historicamente; e, com a divisão do trabalho e as funções sociais reguladas de modo coletivo, baseadas nos valores e nos costumes igualitaristas.
É nítido, portanto, que não se pode falar sequer que até o momento tenha se desenvolvido uma sociedade comunista na história da humanidade. Por suposto, seria totalmente equivocado afirmar que na antiga União Soviética se tinha uma sociedade comunista. E pior ainda seria estabelecer uma relação entre um conceito de um sistema sócio-produtivo mundial (o comunismo) e um regime político.
A resultante, portanto, não poderia ser outra. Fundamentado na teoria (stalinista) de que o socialismo seria possível em um só país – e sendo a URSS a materialização dessa concepção –, qualquer um que questione o regime político (já que nele haveria uma relação de vínculo orgânico com a sociedade comunista) estaria sendo, por conseqüência um “anticomunista”. Se justificaria, portanto, classificar os antistalinistas de “anticomunistas”. Mas somente após uma operação audaciosa de deturpação do marxismo.
O mais interessante é que é concepção defendida pelo neostalinismo termina se revelando como reprodução conceitual burguesa no momento em que coincide com a operação ideológica (esta sim, anticomunista) da classe dominante e do bolsonarismo.
Embora com programas distintos (um de esquerda e outro de direita), o pressuposto é exatamente o mesmo: ambos partem do princípio que o comunismo se relaciona com um regime político, jogando água no moinho não apenas nos movimentos de vulgarização da idéia de comunismo (extremamente funcional a toda sorte de disseminação de preconceitos e confusões a respeito da nossa estratégia maior de sociedade), mas na mentira repetida mil vezes (e hoje tida como “verdade”) de que o comunismo fracassou.
Relativizar e ocultar barbáries: a falsificação da histórica une neostalinismo e pós-verdade
Os setores que tentam reabilitar o stalinismo não são meros agitadores do totalitarismo. É exatamente por essa razão que precisam ser levados a sério, pois invocam elaborações sofisticadas (e aparentemente coerentes do ponto de vista do método) para justificar o terror stalino.
Uma bastante interessante é a que busca relativizar o totalitarismo stalinista esgrimindo um “moralismo” e uma capitulação à democracia burguesa por parte dos contraditores. Evocando uma necessidade de combate ao “mito da não violência” (pois de fato, defesa de conquistas de revoluções não se faz sem conflitos), os neostalinistas se insurgem contra uma ode liberal a uma democracia (de valor universal) que não seria possível de ser garantida mediante uma situação de estado de guerra permanente imposto pelo imperialismo e pela necessidade de superação do subdesenvolvimento colonial.
Ou seja, busca situar o quadro histórico-concreto (em especial do isolamento russo ao longo do século XX) para, a partir daí, concluir que as ações adotadas pelo regime stalinista teriam sido produtos inevitáveis dessas mesmas condições. Frente a isso, é preciso – ao invés de condenar os supostos “erros” do regime político – justificar as medidas tomadas como de estrita defesa das conquistas revolucionária, ou melhor, do próprio comunismo – daí o enquadramento dos críticos stalinistas à condição de “anticomunistas”.
Antes de qualquer coisa, é preciso reafirmar que jamais se pode abstrair qualquer fenômeno (e o terror stalinista não está fora disso) das condições históricas e concretas. Como teoria e método, o marxismo se desenvolve a partir da análise da própria realidade e, portanto, existem vários elementos que influem no processo revolucionário e que, também condicionam a ação dos sujeitos.
Contudo, isto não pode ser tornado absoluto. Se assim fosse, as condições concretas incidiriam sempre de uma maneira tal que não permitiria aos sujeitos fazer escolhas, traçar caminhos e, como conseqüência dessa análise, viveríamos num mundo integralmente objetivista que em última instância não nos permitira realizar transformações.
Se por um lado é uma exigência entendermos como as determinações das condições concretas vão imprimindo obstáculos e condicionalidades, por outro não é menos fundamental apreender se determinada ação assumida pelos sujeitos se configuram como exigências da história ou como direção dada pelo papel que os sujeitos assumiram nessa mesma história.
O fato de precisar ignorar esse papel do indivíduo na história em relação permanentemente dialética com as condições concretas para justificar suas ações estabelece mais um vínculo do neostalinismo com o bolsonarismo: a necessidade de falsificar a história.
Se por um lado o bolsonarismo se vale o tempo inteiro de deturpações históricas, revisionismos e pós-verdade para demonizar a esquerda e o comunismo – incluindo inclusive a falsificação de fatos históricos que visam apresentar a esquerda e o próprio stalinismo como “monstros” –, por outro, o rigor do neostalinismo para se opor às histórias mal contadas pela burguesia a respeito regime soviético é seletivo.
Se a checagem os números de mortos nos gulags são supervalorizados para fazer de Stalin (erroneamente referenciado no comunismo) um monstro maior do que ele foi, há uma série de perguntas intencionalmente não respondidas, que só se justificam por um movimento de relativização/ocultação de barbáries cometidas pelo regime que não foram necessidades históricas.
O que diz o neostalinismo sobre o apagamento político dos “elementos indesejados” da história? E os assassinatos da velha guarda do partido bolchevique? Zinoviev, Kamenev, Miliutin, Rikov, Bubnov, Bukharin, Krestinski: todos fuzilados a mando do regime stalinista. Trotski, perseguido e assassinado, estando em processo de exílio.
O silêncio não pode ser a resposta. E não tampouco o combate ao “mito da não violência”. Menos ainda situar esses assassinatos como uma “condicionalidade de condições concretas”. Todo processo revolucionário que instaura um estado operário (portanto, transitório) exige medidas extraordinárias (inclusive de restrições democráticas) para performar a sua defesa. Lenin e o próprio Trotski sabiam disso. Contudo, uma situação de guerra permanente pressupõe medidas de exceção contra os que atentam contra o estado operário resultante da revolução não dos que – sendo parte do movimento revolucionário em curso – venham a discordar politicamente dos rumos adotados.
Não há qualquer comprovação histórica que os dirigentes que tiveram seus registros apagados das fotografias (e depois foram eliminados fisicamente) eram agentes infiltrados do imperialismo. Trotski, aliás, o mais perseguido de todos, possuía salvo conduto em relação à defesa do estado operário soviético, pois mesmo após ser expulso do partido e perseguido pelo regime, lutou com todas as forças até mesmo contra parte do movimento trotskista norte-americano que não entendia a importância de constituir unidade militar com o stalinismo para derrotar o fascismo. Dizia Trotski (1970): “Na sua política atual, tanto interna como externa, a burocracia coloca em primeiro e principal lugar a defesa de seus próprios interesses parasitários. Nessa medida, travamos uma luta mortal contra ela; mas, em última análise, através dos interesses da burocracia, de uma forma muito retorcida, refletem-se os interesses do Estado operário. Nós defendemos estes interesses, com nossos próprios métodos. Assim, não lutamos de modo algum contra o fato de que a burocracia salvaguarde (ao seu modo!) a propriedade estatal, o monopólio do comércio externo ou se negue a pagar as dividas czaristas. No entanto, numa guerra entre a URSS e o mundo capitalista — independentemente dos incidentes que tivessem levado à guerra ou dos “fins” deste ou daquele governo — o que se debate é precisamente o destino daquelas conquistas históricas que nós defendemos incondicionalmente, quer dizer, apesar da política reacionária da burocracia. Conseqüentemente, a questão se reduz — em última e decisiva instância — à natureza de classe da URSS”.
Foi, portanto, o assassinato de dirigentes revolucionários uma “condicionalidade” das condições concretas? Calar-se é também um posicionamento e nesse caso o silêncio fala. A vergonhosa falsificação da história (por motivos diferentes) une neostalinistas e bolsonaristas. Vinculados pela prática de disseminação de “pós-verdades”, ambos ocultam fatos de suas análises (como o assassinato de revolucionários), criam outros (como acusações sem provas de dirigentes opositores na política) e revisam a história a partir de interesses próprios.
Mobilização de seguidores e o escracho moral: as amálgamas adaptadas ao século XXI
Tem sido corriqueiro nos últimos anos um modus operandi levado a cabo pela extrema direita em todo o mundo e que foi largamente utilizado no Brasil para avançar com as idéias neofascistas defendidas pelo bolsonarismo: a mobilização de uma base social com o objetivo realizar escrachos (em especial nas redes sociais da Internet) para, por meio da desmoralização alheia, conquistar audiência política.
Lamentavelmente, essa prática não tem sido exclusiva da direita. O neostalinismo está repaginando sua antiga metodologia das amálgamas (a mistura de acusações morais contra opositores para vencer um debate político) e adaptando-as à contemporaneidade. O recente caso envolvendo a publicação de um jovem historiador na revista teórico-política Jacobin revela que a adoção de práticas de linchamento público em função de diferenças políticas segue vigente e atual.
Diante do questionamento de dois professores universitários a respeito da presença de um artigo do referido historiador na revista em que ambos estavam publicando – pelo fato de classificarem o autor como stalinista, as redes sociais da “bolha” da esquerda brasileira se viram infestadas de ataques virtuais aos dois docentes, com afirmações que foram desde censura, passando por denúncias em tempo futuro de veto político a ingressos em programas de pós-graduação e chegando até a acusações de elitismo e racismo.
Não bastava fazer o debate sobre a defesa das posições neostalinistas do historiador e travar uma batalha de idéias – diga-se de passagem, totalmente legítima em se tratando de uma revista com linha editorial política passível de disputa. Imediatamente o método do bolsonarismo é evocado para achincalhar os adversários políticos com procedimentos que deixariam Stalin orgulhoso: acusação de censura quando todos estavam livres para se posicionar a respeito do tema; denúncia de desfavorecimento a ingresso em instituição de ensino sem que sequer a situação se configurasse; e acusação de elitismo e racismo (num peculiar flerte com o pós-modernismo que sugere critérios de opressão como elemento impeditivo a qualquer contraditório) quando objeto de conflito nunca foi raça, nem localização social, mas posições e tradição política.
Evidentemente, não se pode falar que os métodos stalinistas tenham algum dia sido superados na esquerda, contudo, é motivo de preocupação que se tenha perdido a vergonha de reproduzir (e repaginar) as práticas de seu maior mentor.
(Neo)stalinismo e bolsonarismo: diferentes, mas semelhantes
Evidentemente, o objetivo desde artigo não é o de produzir um artífice que iguale, numa relação de identidade, os (neo)stalinistas com uma corrente política com tendências fascistas. Afirmar isso provocaria uma desproporcionalidade no debate que o tornaria inverídico.
E esta não poderia ser uma afirmação correta, porque, como já dito anteriormente, os que tentam reabilitar o stalinismo não o fazem do ponto de vista de uma defesa aberta do totalitarismo daquele regime. E isto difere do bolsonarismo de maneira categórica: este é explicitamente totalitário.
Mais ainda, uma parte dos (neo)stalinistas não se reivindicam como tal, limitando-se a fazer uma denúncia do “moralismo”, do “anticomunismo” das posições “liberais” que demonizam Stalin “sem considerar as condições concretas”.
Contudo, o sentido da elaboração é alertar que existe uma aproximação que não pode ser desconsiderada. Sobretudo, porque, ainda que (neo)stalinistas não se reivindiquem como tal, isto não é o mais importante.
Como marxistas sabemos que assim como a essência do objeto nem sempre se expressa no aparente, não podemos tomar como verdade aquilo que se diz de si mesmo. E observar a existência de um movimento de reabilitação do stalinismo pressupõe, além de entender teoricamente que sua noção de “anticomunismo” repousa numa teoria stalinista (a do “socialismo em um só país”), que sua prática de relativização/ocultação da história e sua metodologia de destruição moral resgatam igualmente a maneira de agir do stalinismo.
E as semelhanças com o bolsonarismo se expressam não tanto pelo programa político (em muitos elementos se assemelham ao dos marxistas revolucionários), mas sobretudo pelo caráter/natureza de ambos. Ao serem (embora ao seu modo), ambos revisionistas do comunismo e despóticos, terminam aproximando-se e, conosco – os antistalinistas – delimitando tradições antagônicas, que se dividem entre os que aceitariam a repetição da tragédia e os que tiraram lições de um regime contrarrevolucionário.
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