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BRASIL

Terrivelmente evangélicos: religião e mídia no Brasil

Prof. Dr. Lyndon de Araújo Santos, do Depto. de História da UFMA
idr/ divulgação

Não são muitos os autores e pesquisadores que tratam sobre a relação entre mídia, política, religião e mercado no Brasil. Embora poucos, há importantes produções que nos ajudam a compreender o atual fenômeno das mídias religiosas e a política no Brasil, principalmente os evangélicos.[1] Assim, o intento deste artigo será o de compreender os meandros da relação entre evangélicos, mídia e política no Brasil atual, e como esta relação afeta diretamente a democracia e reproduz a desigualdade social.

A relação entre religião e mídia não é nova, como diz Magali Cunha:

As igrejas em geral nunca rejeitaram as mídias, pelo contrário. Compreendendo mais o processo da comunicação como um movimento de convencimento do outro do que como possibilidade de interação/comunhão, as igrejas, tanto a Católica quanto as Evangélicas, desde a Reforma Protestante até a época da emergência das mídias eletrônicas, em especial do rádio e da televisão, baseavam-se no pensamento de que convencer pessoas a optarem pelo Evangelho, e consequentemente pela adesão a um determinado segmento cristão, geraria um efeito-chave: o crescimento do Cristianismo. Ao lado disso, a perspectiva da visibilidade também era elemento importante na aproximação igreja-mídias eletrônicas.[2]

A presença da religião nos meios de comunicação teve seu início no período do império com jornais e periódicos oficiais (católicos, evangélicos, espíritas), mas também com escritos e artigos confessionais nos periódicos seculares. Uma intensa disputa se deu no ascendente mercado leitor dos centros urbanos em expansão entre as crenças religiosas.

Acompanhando a origem e a difusão do rádio no Brasil na época varguista, a radiofonia evangélica teve seu início como um projeto proselitista a serviço da expansão das igrejas e das denominações, ainda muito minoritárias em busca de crescimento numérico e institucional. Junto com a mídia impressa, o rádio permitiu que os discursos religiosos restritos aos templos e às praças pudessem ter um alcance maior.

A partir das décadas de 1960 e 1970 com a expansão da indústria cultural, o rádio tornou-se também um instrumento de projeção religiosa de lideranças e de igrejas, adquirindo horários mais baratos com propostas populares. Pastores ocuparam espaços em programas pregando, aconselhando e fazendo dos estúdios uma extensão do culto da igreja, quando muito os cultos eram também veiculados em seus horários ao vivo. Uma discografia evangélica despontava com pastores cantores, corais de igrejas e conjuntos musicais gerando o que viria a se transformar mais adiante no mercado musical gospel. Inicialmente estava presa aos modelos litúrgicos transpondo para os discos os modos como se cantava nos ofícios religiosos.

No período do regime militar, tanto no rádio como na TV os modelos de programação eram infensos às críticas políticas. Por um lado, na sua maioria, os evangélicos fizeram um pacto de apoio ao regime. Por ouro, interessava aos militares um tipo de mídia que respeitasse a cartilha ideológica do civismo, do moralismo e da espiritualidade apolítica.

Segundo Fonseca (2003), o nascedouro da mídia evangélica se deu de forma paralela à própria história da TV brasileira. Tal ideia está bem apresentada por Ortiz em seus estudos sobre a evolução da sociedade brasileira e dos meios de comunicação. Pelas análises deste autor, é interessante notar que, mesmo precária e muitas vezes improvisadamente, a mídia que se formava fez parte do processo de modernização do capitalismo e da indústria cultural brasileira, e, assim como o rádio, desenvolveu-se com o uso da publicidade. Esta ideia é compartilhada por Fonseca, já que a televisão também se expandiu pela intermediação do desenvolvimento da máquina publicitária que, ao lado de inovações tecnológicas – como o uso do video tape – deram condições para que a TV se estabelecesse. (…) De acordo com Fonseca (2003), o primeiro programa evangélico na TV, assim como no rádio, foi apresentado pela igreja dos adventistas em 1962, na cidade do Rio de Janeiro. O programa se chamava Fé para hoje, apresentado pelo pastor Alcides Campolongo.[3]

Fonteles fez um levantamento dos programas evangélicos pioneiros de TV entre 1962 e 1998, indicando as Igrejas Adventista, Igreja Nova Vida, Presbiteriana, Batista e Assembleia de Deus como responsáveis, tendo à frente apresentadores, alguns deles se tornaram famosos como Caio Fábio, Silas Malafaia, Roberto Maclister e Nilson do Amaral Fanini. As TVs Tupi, Bandeirantes, Record e Manchete eram as emissoras principais. Contudo, não se pode entender esta expansão sem a influência direta dos tele-evangelistas norte-americanos que formaram no início da década de 1980 grandes impérios transmitindo cultos pela televisão e criando uma audiência de fiéis que assistiam aos cultos transformados em espetáculos, centrados nas figuras carismáticas de suas lideranças com Rex Humbart, Pat Robertson e Jimmy Swarggart. Sobretudo este último, de forte apelo emocional e moralista, angariou grande sucesso como pregador pentecostal e criando um modelo de apresentador.[4]

Por sua vez e paralelamente, os programas de rádio estavam diretamente vinculados às vivências das igrejas locais, proporcionaram espaços de voz e de visibilidade a uma população marginalizada, por meio do acesso à fala, com o uso maciço de testemunhos de experiências pessoais, de milagres e de curas extraordinárias, uma linguagem que estava mais próxima das camadas populares. Um sem número de programas se espalharam pelo país em rádios abertas, comunitárias e até clandestinas ou piratas. Há que se registrar o sem número de templos com autofalantes colocados nos pináculos transmitindo ao vivo os cultos para um raio próximo e os veículos (Kombi e Rural) que circulavam nas ruas com o som divulgando as programações das igrejas. O pentecostalismo deve, em parte, seu crescimento e expansão à disseminação de programas nas periferias e nas zonas rurais, levando os momentos de cura outrora restritos aos templos para as ondas do rádio.

O período de Sarney na presidência foi marcado por centenas de concessões de rádio na base da barganha aos apoios parlamentares, à época do centrão e a favor do seu quinto mandato, quando uma bancada evangélica já havia despontado como força política na constituinte de 1986. Nesta época, a Rádio Esperança ligada às Assembleias de Deus no Maranhão, teve seu início como única rádio evangélica no estado. No mesmo compasso, com e após Collor, concessões a políticos, bispos e empresários seguiram a mesma lógica consolidando seus domínios no período da nova república. No geral, esta radiofonia caracterizou-se como proselitista, confessional, mercadológica e política, de algum modo instrumentalizada a favor dos interesses dominantes que se valem da religião como meio de controle e de reprodução de poder.

Magali Cunha aponta para uma significativa alteração do quadro que, até os anos 90, privilegiava o rádio, as publicações impressas e a presença ainda tímida em relação à TV e outras mídias eletrônicas.

Na virada para o século XXI, enquanto grupos católicos investiam em maior presença na TV e nas mídias digitais, pastores e líderes evangélicos, primordialmente do ramo pentecostal, tornavam-se empresários de mídia e detentores, do que se poderia chamar, “verdadeiros impérios” no campo da comunicação, buscando competir até mesmo com empresas não-religiosas historicamente consolidadas (caso das Igrejas Universal do Reino de Deus, Renascer em Cristo e Internacional da Graça de Deus). A ponto de alguns desses grupos religiosos (os acima citados e outros) já nascerem midiáticos – isto é, a interação com as mídias serem parte da sua própria razão de ser.[5]

Essa presença no controle dos veículos de comunicação foi discutida em fevereiro de 2018: “dos 50 veículos de maior audiência ou capacidade de influenciar o público, ao menos 9 são controlados por lideranças religiosas cristãs, católicas ou evangélicas”, num estudo que mostrou quem controlava a mídia no país com base na avaliação de 11 redes de TV aberta e por assinatura, além de 17 jornais diários e revistas semanais, 10 portais e redes de rádio. A IURD detém o maior controle sobre veículos de comunicação, começando em 1989 com o apoio a Fernando Collor. Atualmente, o grupo Record é o responsável pela RecordTV, pela RecordNews, pelo Portal R7 e pelo jornal Correio do Povo.

Entretanto, mesmo entre os veículos classificados como comerciais, a religiosidade ocupa significativa parte da grade. Das seis redes comerciais de TV aberta analisadas pela pesquisa, apenas o SBT não apresenta conteúdo religioso em sua grade de programação. De acordo com estudo da Agência Nacional de Cinema (Ancine) de 2016, as TVs abertas do Brasil dedicam 21% de sua grade a programas religiosos. A emissora campeã no tempo dedicado ao gênero é a Rede TV!, com 43%, do seu tempo destinado a programas religiosos. A RecordTV (21%), de Edir Macedo, a Band (16%), a TV Brasil (1,66%) e a Globo (0,58%) aparecem na sequência.[6]

Parte das distorções por trás do atual sistema de concessões no Brasil está no estreitamento do vínculo entre as igrejas e a representação política, pois muitos parlamentares evangélicos pertencem aos grupos de comunicação de suas igrejas. Como resultado, constata-se à concentração de veículos de comunicação com o avanço da influência religiosa e a interferência cada vez maior do jogo e dos interesses eleitorais. Além disso, a propriedade cruzada de meios de comunicação com os mesmos grupos que atuam em diversos tipos de mídias e controlam diversas formas de comunicação.[7]

A procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, entende que o controle de emissoras por grupos religiosos vai na contramão da determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir, em 2002, rádios comunitárias de fazerem proselitismo religioso. “No entanto, temos um sistema de concessão que permite que tenhamos uma grande mídia dominada por emissoras de caráter religioso”, afirma Deborah ao ressaltar a disparidade no tratamento entre os grandes grupos e as rádios comunitárias, que são fiscalizadas e punidas, com maior rigor. Subprocuradora-geral da República, ela observa que, no atual cenário, as religiões de matriz cristã se sobrepõem em prejuízo de outras crenças, como as de origem africana. Para Deborah e os coordenadores da pesquisa, a concentração da mídia nas mãos de grupos de interesses prejudica a democracia. Ela pretende ajuizar ações também contra políticos donos de emissoras de rádio e TV, prática vedada pela Constituição.[8]

Desta forma, a mídia religiosa evangélica tornou-se uma das forças mais poderosas no contexto midiático brasileiro, vindo a contribuir decisivamente nas últimas eleições presidenciais. Constitui-se de impérios político-empresariais-eclesiásticos a serviço da concentração de informações nas mãos de poucos e como instrumento de negociação e de barganha. Não sem razão, a bancada evangélica no congresso é proprietária de muitos sinais de rádio e de TV.

Com 69% de votos a Bolsonaro, os evangélicos, numa relação de mão dupla, veicularam o que ensinam e pregam em suas reuniões para os grandes meios de comunicação e estes mesmos meios reforçam os valores, as ideias, os moralismos e as intolerâncias. Parte das mídias sociais evangélicas estiveram a serviço da indústria das fakenews numa evidente contradição com os valores que pregam da verdade e da justiça.

Infelizmente, os espaços menos democráticos em nossa sociedade tem sido os templos evangélicos com sua decadente teologia da prosperidade e suas lideranças reacionárias na teologia e na política. No entanto, o mundo evangélico não se comporta à margem do social no tocante à cultura política brasileira e na questão dos seus valores e posturas, a contar que outros grupos religiosos como a Canção Nova católica, intensamente atuante em meios de comunicação, também veiculam seus fundamentalismos. Contudo, destes 69% a maior parte já declinou do apoio irrestrito ao atual desgoverno com sua demência, insanidade e fortes colorações fascistas.

Por um lado, a mídia evangélica acompanhou a democratização dos meios de comunicação na sua ampliação a reboque da indústria cultural, levando o seu discurso religioso para um ambiente com outros discursos seculares e religiosos também, de alguma forma sendo popular e popularizando seu modo de ser. Por outro, tornou-se um instrumento de controle que monopoliza e hegemoniza um tipo ideal de ser evangélico no Brasil definido como intolerante, homofóbico, conservador reacionário, raivoso, enfim, terrivelmente evangélico.

O PAPO DE CRENTE

O programa Papo de Crente foi pensado, dialogado e planejado como um programa evangélico para evangélicos no formato de rádio web, no espaço democrático e popular que a Agência Tambor proporcionou. Desde o contexto das últimas eleições presidenciais, a ideia foi sendo formada até o começo da experiência em março deste ano.

O espanto ante o próprio nome – papo de crente – está na possibilidade de evangélicos conversarem e dialogarem numa linguagem própria (bíblica, teológica, religiosa e política), mas remando contra a maré da homogeneização mercadológica do modo de ser evangélico no Brasil (o gospel).

Pois, se Walter Benjamim, num fragmento escrito em 1921, esboçou a ideia do capitalismo como religião, parte dos evangélicos brasileiros tornaram a religião como capitalismo, agregando os desejos do consumo, da acumulação, da conquista e do sucesso, elementos inerentes à sua crença e aos seus valores, numa inversão e negação da proposta de Jesus de Nazaré.

A experiência visa construir um diferencial na comunicação radiofônica evangélica, desde uma perspectiva protestante e progressista. Pois trata-se de algo que já existe na prática e no cotidiano por parte de muitos evangélicos, historicamente identificados com as correntes teológicas do Evangelho Social, da Teologia da Libertação e da Teologia da Missão Integral, cuja pouca visibilidade impede a sociedade de discernir e de distinguir os protestantes evangélicos destes gospels ou neo-evangélicos.

Porquanto, uma longa e enraizada tradição protestante evangélica não se identifica com os modos manipuladores, castradores, hipócritas e intolerantes, que uma parte desse segmento reproduz no cotidiano, sobretudo a partir de lideranças e de impérios que dominam e controlam os grandes meios de comunicação. Este legado foi historicamente capaz de lutar no Brasil pela liberdade religiosa, contra o regime escravista, pela república, pelo voto feminino, pela educação e pela alfabetização, pela democracia, pelos direitos humanos no período do regime militar, pelo ecumenismo e se mostra pronto ao diálogo inter-religioso, ao respeito às minorias e à diversidade étnico-racial e sexual.

Como uma experiência ainda em formação, o Papo de Crente insere, no contexto da mídia (seja religiosa ou não), um outro perfil e uma outra linguagem, que se pretendem críticos, políticos, tolerantes, abertos ao diálogo e radicalmente vinculados à proposta de Jesus de Nazaré, na sua relação com os pobres e com os poderes religiosos e políticos estabelecidos. A experiência todos os sábados pela manhã tem sido a de construir uma comunicação que demonstre a fome e a sede de justiça.

 

 

[1] CAMPOS, Leonildo S. Templo, teatro e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. CAMPOS, Leonildo S. “Evangélicos e Mídia no Brasil – Uma História de Acertos e Desacertos”. Revista de Estudos da Religião setembro / 2008 / pp. 1-26; FONSECA, Alexandre Brasil. Evangélicos e Mídia no Brasil. Bragança Paulista, São Paulo, Universidade São Francisco, IFAN Curitiba: São Boaventura Faculdade de Filosofia, 2003. Um “estudo sobre o mundo evangélico enfrentando embates e envolvimento com as mídias eletrônicas, em especial o rádio e a televisão; CUNHA, Magali. “Vinho novo em odres velhos”. Um olhar comunicacional sobre a explosão gospel no cenário religioso evangélico no Brasil. São Paulo: USP, 2004. Tese de Doutorado. CUNHA, Magali. “Interseções e interações entre mídia, religião e mercado: um objeto dinâmico e instigante”. Horizonte, Belo Horizonte, v. 12, n. 34, p. 284-289, abr./jun. 2014 – ISSN 2175-5841; BELLOTTI, Karina. Mídia presbiteriana no Brasil. BELLOTTI, Karina.  Delas é o reino dos céus. “o uso da mídia foi um fator importante para a constituição de uma cultura evangélica pós-moderna brasileira. Nela as tradições evangélicas são instrumentalizadas para a construção de múltiplas identidades e estilos de vida evangélicos como respostas aos desafios da pós-modernidade”. BELLOTTI, Karina. “Mídia, religião e cultura”.

[2] Magali do Nascimento Cunha. “Interseções e interações entre mídia, religião e mercado: um objeto dinâmico e instigante”. Horizonte, Belo Horizonte, v. 12, n. 34, p. 284-289, abr./jun. 2014 – ISSN 2175-5841, P. 284.

[3] A ascensão da mídia evangélica – uma (mútua) interferência política, econômica e tecnológica. Heinrich Araújo FONTELES. http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/encontros-nacionais/6o-encontro-2008-1/A%20ascensao%20da%20midia%20evangelica%202013%20uma%20-mutua-%20interferencia%20politica.pdf. Acessado em 12/9/2019.

[4] A ascensão da mídia evangélica – uma (mútua) interferência política, econômica e tecnológica. Heinrich Araújo FONTELES. http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/encontros-nacionais/6o-encontro-2008-1/A%20ascensao%20da%20midia%20evangelica%202013%20uma%20-mutua-%20interferencia%20politica.pdf. Acessado em 12/9/2019.

[5] Magali do Nascimento Cunha. Horizonte, Belo Horizonte, v. 12, n. 34, p. 284-289, abr./jun. 2014 – ISSN 2175-5841, P. 284.

[6] https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/igrejas-controlam-9-dos-50-veiculos-mais-influentes-do-pais/. Acessado em 10/9/2019.

[7] “Outros veículos com menor audiência ou com circulação gratuita – que não fazem parte da pesquisa – também mostram o crescimento da participação religiosa no controle da mídia. O semanário Folha Universal, por exemplo, tem tiragem de 1,8 milhão de exemplares, volume muito superior ao de jornais diários, como a Folha de S. Paulo, cuja circulação diária é de 300 mil exemplares”. https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/igrejas-controlam-9-dos-50-veiculos-mais-influentes-do-pais/. Acessado em 10/9/2019.

[8] https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/igrejas-controlam-9-dos-50-veiculos-mais-influentes-do-pais/. Acessado em 10/9/2019.